A ofensiva austeritária tem sido protegida por um conjunto de cortinas de fumo, ardilosamente tecidas, que não só dificultam uma percepção clara e generalizada das evidências do seu fracasso como impedem uma discussão séria, aberta e democrática das alternativas para sair da crise.
Uma dessas cortinas é ideológica e materializa-se na capacidade de influência, nos espaços de decisão, de um pensamento económico que continua a sacralizar os mercados e que tem no neoliberalismo a sua mais eficaz e contundente expressão política. Uma segunda cortina de fumo, decisiva para assegurar a persistência da narrativa austeritária, forma-se no espaço comunicacional e traduz-se na sua colonização pelo discurso da inevitabilidade dos sacrifícios, que um coro disciplinado e monolítico de economistas se encarrega de repetir sem cessar, protegido do confronto de ideias e do pluralismo de opinião. Assegurado o domínio do espaço mediático, a terceira cortina ergue o muro da desinformação, transportando consigo a ofensiva contra o Estado, a protecção social e os serviços públicos de educação, saúde e transportes.
É este denso manto de ocultação e bloqueio que permitiu converter a crise financeira resultante da desregulamentação dos mercados numa crise das dívidas soberanas, criando a ilusão de que reside no Estado e na despesa pública a responsabilidade pela situação económica e social em que as periferias europeias se encontram. É no colo desta retórica que os cidadãos têm sido embalados, com a melodia inquinada do «viver acima das possibilidades», das «gorduras do Estado» e da engenhosa falácia de que este «consome» em demasia o que a economia produz. Como se as infraestrutruras e equipamentos públicos, a saúde, a educação, a segurança e a justiça não fossem igualmente economia e não beneficiassem, decisivamente, as condições necessárias ao funcionamento do sector privado. Como se o crescimento anémico da última década não fosse uma das causas centrais de um modelo económico assente no endividamento, enquadrado por uma moeda única que é interessante para a Europa desenvolvida, mas catastrófica para as economias do sul.
A auditoria cidadã à dívida é por isso um passo crucial para rasgar uma brecha de luz na atmosfera carregada das deturpações, encobrimentos, mitos e mentiras de que a narrativa austeritária necessita para se conseguir impor e sobreviver. Por imperativo elementar numa sociedade democrática, mas também por exigência basilar de transparência, há perguntas que não podem ficar sem resposta. Porque devemos e porque nos endividámos? A quem e quanto devemos? Que juros comportam as abnegadas «ajudas» que nos prometem a salvação? Quanto representam no total da dívida? Que parte deve afinal ser imputada aos serviços públicos, tomados de assalto pelos selváticos cortes orçamentais?
Quando o desconhecimento deliberado é a principal força do embuste austeritário, a exigência de verdade e transparência é a primeira arma para devolver à democracia o seu mais pleno sentido.
(Publicado originalmente na página da Iniciativa para uma Auditoria Cidadã à Dívida)
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2 comentários:
Em ultima análise o que está em causa é sempre o mesmo, salvaguardar o poder instituído e todos os que estão protegidos por este, a hipocrisia é tão grande que os insuspeitos alvos da austeridade parecem querer o mesmo sistema que tinham antes, parecem poucos os que de facto querem uma fractura com a realidade injusta e imoral que temos presenciado.
Afinal quando é que começa a auditoria?
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