domingo, 14 de março de 2021

Fôlegos


Já não sei quem disse que pode haver nas derrotas uma dignidade que escapa às vitórias, às grandes e às pequenas. Quem tem essa dignidade sabe que nada está garantido, mesmo quando se ganha politicamente alguma coisa ou quando não se perde tudo. Lembro-me disto ao reler o livro de Carlos Brito, Álvaro Cunhal - Sete Fôlegos do Combatente

Não tenho por hábito reler livros. Este é um livro de memórias políticas que já li e reli desde o seu lançamento, em 2010. Conheço, por exemplo, poucas clarificações tão cabais do posicionamento comunista durante o PREC, um dos sete fôlegos de Álvaro Cunhal. Um posicionamento que de resto parece indicar um padrão: a história escrita por supostos vencedores pode ser pura ideologia, enquanto ofuscação, incluindo quando se trabalha com palavras como “totalitarismo”. 

Esta palavra só serve para ofuscar o fascismo e apoucar o antifascismo, ao colocar os comunistas num caldo pouco recomendável em termos da verdade histórica. Aposto que futuros historiadores, com ainda maior distância, irão corroborar empiricamente mais aspectos da versão comunista da nossa história recente do que de outras versões políticas, dado o trabalho que já foi feito até ao 25 de Novembro e depois. 

A revelação da surpresa que Álvaro Cunhal teve pelos resultados do trabalho constituinte, fazendo de 1976 um marco unitário com novo fôlego estratégico, num momento de refluxo, é um dos vários momentos que nos dá a ver a acção política como um exercício de filosofia da conjuntura com impactos na estrutura, mesmo quando a correlação de forças já mudou dramaticamente. Tinha ficado uma cristalização institucional de outra correlação e de convergências político-ideológicas típicas dos anos setenta, a Constituição da República Portuguesa, e era necessário fazer dela uma trincheira para enfrentar o que aí vinha. Somos filhos dessa visão na esquerda, incluindo as várias propostas de convergências consequentes feitas ao PS, quer reconheçamos tal facto, quer não. Fez-se o que melhor que se pôde. 

O Álvaro Cunhal que emerge da pena clara de Carlos Brito, sem acinte, nem ajustes de contas, é engrandecido, incluindo pela revelação elevada da política como trabalho de e para humanos falíveis, com os quais se concorda e com os quais se discorda, por vezes dolorosamente, como na parte final do percurso. E pode chamar-se hegemonia também à capacidade de reintegrar os perdedores. 

Há no livro uma destreza analítica que também é a do intelectual tarimbado por décadas de política. Nunca conheci melhor combinação, independentemente das convergências e das divergências, com as quais de facto se aprende sempre. Nestas últimas, está a mais recente demonstração de preocupação da associação política Renovação Comunista com o PCP, que não é nada fácil de compatibilizar com o apoio dado anteriormente ao PS, bem como com a participação noutros projectos partidários. Diria que a preocupação consequente pressupõe um apoio que é muito diferente deste tipo de manifestações públicas. 

No fim deste texto, fica o que mais me importa: Cunhal e Brito são dois dos muitos que têm um lugar nas melhores páginas da nossa História Política comum, assim com h e p grandes. Devemos tanto a esse H e P que tantos escreveram nas mais difíceis circunstâncias. Haja combate pela memória, até porque História haverá certamente. Sabemos bem que não terminou.

3 comentários:

Jose disse...

«a acção política como um exercício de filosofia da conjuntura com impactos na estrutura, mesmo quando a correlação de forças já mudou dramaticamente. Tinha ficado uma cristalização institucional de outra correlação e de convergências político-ideológicas típicas dos anos setenta»

Pelo meio destes termos não cristalinos deve pairar um Conselho da Revolução só extinguido em Setembro de 1982.

Anónimo disse...

Gostei muito do texto e também li o livro. Gostei que Carlos Brito relembrasse o sentido de humor de Álvaro Cunhal, patente na ocasião em que um dos representantes do Partido não queria usar gravata numa visita a Marrocos.

Anónimo disse...

Nestes tempos duros para as esquerdas,as eleições autárquicas podiam ser um momento de convergência.