Se tiverem paciência e não se importarem em receber um email de vez em quando, subscrevam aqui: https://nunoteles.substack.com/. Tudo será replicado, no entanto, no Ladrões. Fiquem então com o segundo artigo, que sintetiza a minha intervenção no participado debate Marx-Piketty desta semana:
Novos e velhos Marx
São raros os livros de economia, sobretudo quando têm mais de setecentas páginas, que conseguem o estatuto de campeão de vendas. “Capital no século XXI” de Thomas Piketty conseguiu essa proeza, denunciando o aumento global das desigualdades através de um trabalho de recolha de dados de 15 anos. Contudo, a ambição e recepção do trabalho de Piketty foram para lá da questão das desigualdades económicas e formas de as debelar. O autor foi-nos apresentado como um “novo Marx”, capaz de deslindar os mecanismos do capitalismo contemporâneo, condenado o velho das barbas a ser um importante pensador, mas para o século XIX.
Não pretendendo negar a importância do trabalho de Piketty ou recensear todo o seu livro de um ponto de vista marxista (outros já o fizeram), importa revisitar o seu conceito de capital e confrontá-lo com a tradição marxista. Tentarei mostrar como concepções de capital, à la Piketty, revelam os limites de um certo entendimento do capitalismo e da actual crise pandémica e resultam em propostas políticas desadequadas, por contraponto às vantagens de adoptarmos uma perspectiva de economia política marxista.
Capital é o que cada um quiser?
A definição de capital de Piketty é bastante simples. Capital é a riqueza líquida individual, igual ao produto das poupanças no longo prazo. O capital é, por um lado, uma coisa homogénea, que se pode medir e comparar através do seu preço, sendo, por outro lado, coisas diferentes: terra, imobiliário, activos financeiros (títulos), activos industriais (máquinas). É assim assumido por Piketty que esta definição de capital é susceptível a “fugas”: a minha conta bancária é capital, mas se comprar um carro com essa conta, o meu capital desaparece.
Esta forma de tratar o capital, mais do que procurar uma definição, assenta sobretudo na conveniência do seu tratamento estatístico, recorrendo a inquéritos e balanços de empresas, ultrapassando algumas das ficções sobre estimação do stock de capital. No entanto, se a abordagem de Piketty ao capital facilita a medição do seu pretenso stock – equivalendo entre 6 a 8 vezes o PIB de cada país – ela é, na verdade, próxima da noção de capital neoclássica, que reduz a categoria à de recurso durável (mais de um ano) utilizável na produção.[1] Ora, esta forma de o conceptualizar vai ter implicações para o entendimento de Piketty da desigualdade, resultado de acumulação de riqueza em poucas mãos, cuja rendibilidade, quando superior ao crescimento económico, resulta em maior desigualdade.
A concepção de capital de Marx é radicalmente diferente. Os três livros de O Capital são dedicados a entender como o capital pode ser coisas diferentes: moeda, mercadoria, força de trabalho, meios de produção. As suas diferentes formas definem-se enquanto capital, não pelas características físicas de cada uma das suas formas, mas sim pela sua posição e relação num modo de produção particular, o capitalista. Assume-se então um modo de produção marcado pela circulação generalizada de mercadorias monetarizadas e pela separação do trabalhador em relação à propriedade dos meios de produção, condição para a sua exploração. Classe e poder aparecem como condições para a definição de capital. As diferentes formas que o capital pode tomar e sua necessária valorização ficam bastante claras nos esquemas dos circuitos do capital, apresentadas por Marx no segundo livro de O Capital: D-M-...P...- M’-D’, sendo D moeda, M mercadoria, e o apóstrofe sinalizando a expansão e valorização do capital conseguida no momento da produção (P), através da mais-valia. Simplificando, em relação à definição de Piketty, capital pode ser moeda, mas nem toda a moeda é capital - o dinheiro do meu salário que uso para comprar um carro não é, nem nunca foi, capital.
Capital e Desigualdade
Partindo da sua definição de capital enquanto riqueza, Piketty explica-nos a sua famosa fórmula para o aumento das desigualdades r>g, sendo r a taxa de rendibilidade do capital e g, a taxa de crescimento económico. Assim, com o capital atingindo entre 6 a 8 vezes o PIB, num regime de crescimento baixo, onde r ultrapassa g, os rendimentos dos mais ricos que detêm a riqueza, sobretudo herdada, irá permitir um fácil acúmulo de nova riqueza, aumentando a divergência em relação a quem tem rendimentos do trabalho, conquanto estes também estejam sujeitos a maior dispersão. Para Piketty, a questão da desigualdade resume-se a três variáveis, stock de riqueza, seu retorno e crescimento económico, interpretando períodos de redução das desigualdades (dos anos 20 aos anos 70) como tendo sido marcados por destruição de riqueza (Guerras e Depressão) e taxação e redistribuição de rendimento (New Deal e o Estado-Providência em nações europeias).
Dadas as diferenças na definição de capital, a desigualdade em Marx não é função de mais ou menos riqueza. É, à partida, uma questão de classe objectivamente definida: a burguesia e os trabalhadores distinguem-se na sua posição em relação à produção capitalista, no seu acesso a meios de produção. Mais, não só temos um ponto de partida desigual, como a produção capitalista, nas diferentes rotações de capital nos seus circuitos, ao valorizarem o capital, amplificam a desigualdade. Esta permanente pulsão de acumulação do capital é, por sua vez, necessária num contexto de competição de mercado e entre capitais, conduzindo a uma crescente centralização e concentração deste. O combate à desigualdade implica aqui a luta pela superação do modo de produção capitalista. Estas são pistas que me parecem essenciais para entendermos a dinâmica de desigualdade hoje.
Capital e a crise pandémica
Piketty tem muito pouco a dizer sobre as causas desta crise, como aliás neoclássicos e mesmo pós-keynesianos. Esta crise é entendida como tendo uma causa exógena, um vírus que perturba os mercados, como se de um meteorito se tratasse. Este ponto de partida é estranho à economia política marxista. Recusando a identidade entre capital e terra (ou recursos naturais), onde a segunda não é produzida, embora esteja sujeita à dinâmica do primeiro, conseguimos obter um quadro analítico da dinâmica de acumulação de capital e do seu carácter predatório sobre terra e recursos naturais. Ora, é a exaustão de solos, a desflorestação ou a industrialização da produção animal – factores que potenciam o contacto humano com espécies selvagens, como os morcegos, recipientes naturais de vírus – que explicam como o risco de novas pandemias tem crescido nas últimas décadas, algo a que numerosos cientistas sociais e naturais, marxistas (por exemplo, Mike Davis, Rob Wallace) ou não, já há muito nos tinha alertado.
Além de fornecer um quadro analítico para as origens da pandemia, a economia política marxista oferece-nos vários mecanismos para compreendermos a crise económica e social que agora enfrentamos. A presente crise não pode ser reduzida a um problema de procura (M’-D’), causado pela destruição de emprego e capital. A dificuldade de M’, com os seus valores de uso específicos, em se metamorfosear em D’, o equivalente universal, diz respeito também à forma como os nossos hábitos de consumo mudaram. Tal explica então que, embora a queda da procura agregada e seus efeitos deflacionários sejam inegáveis, certas mercadorias, sobretudo os bens alimentares, viram o seu preço aumentar significativamente neste último ano em países tão diferentes, como o Brasil ou Portugal, com efeitos redistributivos negativos (os mais pobres consomem relativamente mais alimentos).
Não assistimos só a uma ruptura no circuito do capital na fase M’-D’. A primeira fase D-M, onde se compram meios de produção e trabalho, sofreu dificuldades, com as cadeias globais de valor a entrarem em ruptura em muitos dos seus nós. Ainda no mês passado, ouvimos como o preço do transporte de mercadorias entre a Ásia e Europa disparou, devido aos diferentes tempos de retoma de produção entre os dois blocos regionais, com os contentores no eixo Europa-Ásia a viajarem vazios. Esta é, pois, uma crise de novo tipo. As velhas receitas do passado não são necessariamente a melhor solução para a atacar.
Quando só se tem um martelo, tudo é prego
Chegados aqui, como entender os efeitos da pandemia nas desigualdades e as formas de debelar? Piketty ao valorizar a destruição de riqueza provocada por anteriores guerras e pandemias, como a Peste Negra, afirmava numa entrevista recente ser cedo para avaliar. É verdade que se a miséria de milhões de pessoas é certa, o aumento das fortunas de bilionários parece um pouco artificial, insuflada por uma política monetária expansionista e por bolhas especulativas destinadas a rebentar. Para Piketty, os efeitos políticos são ainda indeterminados e, portanto, o melhor que podemos fazer agora é retomar as suas propostas de correcção de desigualdades pela taxação da riqueza e rendimento.
O seu quadro analítico continua o mesmo, focado na questão da redistribuição de rendimento e ignorando a distribuição primária deste, entre trabalho e capital, e as transformações que o atravessam neste momento. Este entendimento da política tributária como panaceia para qualquer tipo de problema de desigualdade é infelizmente bastante comum nas esquerdas, apesar de Piketty ter avançado um pouco em direção às relações de propriedade, defendendo uma versão reciclada de socialismo utópico, através de redistribuição de activos, em Capital e Ideologia.
Numa perspectiva de economia política marxista, se é certo que temos destruição de capital e desemprego de massas, este não é um fenómeno, como já vimos, igualmente distribuído. Se é certo que as fortunas dos mais ricos podem estar parcialmente insufladas, também é verdade que observamos lucros recorde em muitas grandes empresas (por exemplo, Amazon). Estes não são só motivados por mudanças nos padrões de consumo, mas também pela aceleração dos processos de concentração e centralização de capital neste momento.
Assim, se queremos reduzir desigualdades temos que defender a intervenção pública para lá da taxação. Do esforço de investimento público à desmercadorização do trabalho, passando pelo reforço dos serviços públicos. Os sectores estratégicos devem estar sob o controlo público (da energia aos bancos), não como mera “lista de compras” da esquerda, mas como alavancas para uma reestruturação da economia que responda às emergências do nosso tempo. A superação do capitalismo é o melhor guia para debelar esta crise e não cairmos na, tantas vezes repetida, mas agora particularmente pertinente, formulação de Fredric Jameson de que é mais fácil imaginarmos o fim do mundo do que o fim do capitalismo.
[1] É certo, que, no caso da teoria neoclássica, ao contrário do que acontece em outras correntes de pensamento e no próprio trabalho de Piketty, esta definição permite a integração do conceito de capital humano, competências e escolaridade dos trabalhadores, reduzindo a ideia de capital a um recurso distribuído por todos os indivíduos (uns mais, outros menos), mistificando assim a desigualdade no seu acesso. E, claro, quem diz capital humano, pode falar de capital social, cultural, etc, conceitos infelizmente adotados de forma acrítica por muitos cientistas sociais.
Livro recomendável e que ajudou à elaboração deste texto: Corona, Climate, Chronic Emergency, Andreas Malm, Verso Books.
Noutros temas e meios:
Para quem quiser ouvir uma discussão sobre o suposto problema da dívida pública em tempos de pandemia, participei há uma semana neste podcast do Jornal do Negócios.
7 comentários:
A definição de capital de Piketty é feita, Nuno Teles, num quadro de um modelo limitado e falsificável (e é quantificável, como bem nota). A de Marx é totalizante, explica tudo, o que de facto quer dizer que é uma definição pseudo-científica, a sua intenção não é a mera análise do capitalismo, mas sobretudo a justificação da sua superação por um sistema particular, o do socialismo marxista.
Mas como esse modelo já foi testado e falhou vezes sem conta (já agora, a interação progressiva dos seres humanos com ecosistemas de onde podem provir as zoonoses não se deve ao carácter capitalista das sociedades per si e sim à expansão económica sem limites, algo que o socialismo também defende, sendo incapaz de defender o decrescimento, pelas implicações que terá na perda de poder de compra da população, aliás cabe notar que a pandemia aparece numa sociedade supostamente socialista, a chinesa, sobre cujo sistema se cantam loas neste espaço), julgo que podemos classificar esta análise simplesmente como ideologia com o rabo de fora...
Percebi, o assalariado que não comprou o carro e investiu em acções com esse dinheiro, tem capital mas só é capitalista se mudou de classe.
Um ponto de desacordo que nada tem a ver com o tema do texto, que está muito bom.
Tem sido recorrente em certo discurso dito ambientalista a alegação de que 'a desflorestação ou a industrialização da produção animal (são) factores que potenciam o contacto humano com espécies selvagens' e aumentam o risco de pandemias. Não há qualquer prova disto. Todo o século XX, caracterizado por isto, foi de poucas pandemias, e quase se extinguiram várias antigas pragas.
A transmissão de doenças entre animais e humanos foi sempre um risco e logicamente é tanto maior quanto mais população vive em contexto rural. A urbanização ao longo de épocas recentes pelo contrário distanciou humanos e animais selvagens. A desflorestação que extingue ou quase espécies também reduz esse contacto.
Na ausência desta desflorestação e urbanização, no mundo antigo da criação e uso de animais pre-industrial, o contacto era omnipresente. Inclusive nas cidades onde tudo dependia de tracção animal. Uma fracção muito maior da população humana tinha esses contactos, e epidemias como o hiv que veio duma época e zona subdesenvolvida só não se espalhavam rapidamente porque as viagens longas eram lentas e raras.
Se quer apontar alguma coisa da modernidade como potenciador do risco de pandemias, é unicamente a facilidade de viajar.
Há muitos motivos legítimos para protestar contra desflorestação ou industrialização excessiva da agricultura. Não se invoquem falsos motivos.
E ao José, o assalariado é um dos muito poucos sortudos que vive ao lado do trabalho? Ou viaja sentado num tapete mágico de certificados de acções?
Mas nem isso pode ter, o pobre assalariado, porque o único meio que tem para investir em acções é pagar a um dos vários grupos parasitas financeiros que o encaminham para um fundo e lhe ficam como depositários das acções e com os direitos de voto que teriam. É o capitalismo realmente existente: és plebe tens direito a especular, pagas pelo direito ao parasita financeiro que escolheres,e não tens direito a exercer qualquer poder.
É perfeitamente clara a fronteira de classe entre quem exerce o poder é quem é suposto ser consumidor, sujeito passivo. Invista em acções ou em carros.
Ao das 22:26: o 'pobre assalariado' suporta a ideologia que sempre aproveita ao 'rico assalariado'.
@Anonimo de 14 de março de 2021 às 22:17
Identifica, e bem, que o tema e muito mais complexo do que aquilo que o Nuno Teles aflora mas depois parece-me que a sua analise fica tambem ela excessivamente simplificada.
Em primeiro lugar, um erro importante: se e verdade que durante o sec XX a Humanidade deu largos passos no sentido de controlar e erradicar quase todas as velhas pragas e tambem insofismavel o facto de que os episodios de emergencia de novas epidemias aceleraram em numero e em frequencia. A tendencia e visivel ao longo de todo o sec XX mas e particularmente pronunciada no ultimo quarto de seculo. Outro fenomeno que se torna cada vez mais claro em especial nas decadas mais recentes e que 75% nestes episodios de novas emergencias sao agentes zoonoticos.
Em segundo lugar na analise destas questoes da emergencia de novos patogenos e a capacidade para causarem epizootias ha muitos factores a ter conta, uma caixa de comentarios e inadequada para os elencar todos e atribuir importancia de forma adequada mas deixo-lhe algumas pistas que o anonimo se esqueceu de enunciar no seu comentario:
1) urbanizacao significa concentracao na densidade de populacoes o que facilita sempre cadeias de transmissao
2) o fosso que se cria entre populacoes urbanas e vida selvagem, cria largas bolsas de populacao imunologicamente nao expostas ("immunologically naive") aos patogenos que circulam nos animais
3) se na era pre-industrial as comunidades Humanas eram mais rurais e portanto em maior contacto com animais, como o anonimo bem aponta, tambem e verdade que tinham menos capacidade para penetrar globalmente em todos os habitats - havia largas porcoes do mundo natural que eram efectivamente inacessiveis a actividade Humana - isso e cada vez menos verdade nas ultimas decadas.
Já agora a conselho a lerem, "A nossa Estratégia é o Marxismo" Tudo tem de ser de novo posto em equação de Arnaldo Matos...
Estamos na altura de apreender com os erros...
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