terça-feira, 16 de março de 2021

A realidade é contraditória e por isso também esperançosa


Na semana passada, ficámos a saber que os EUA e os seus aliados lançaram 46 bombas por dia durante as últimas duas décadas e ficámos também a saber que o plano económico de Biden foi aprovado.

Este plano vai representar um estímulo orçamental de 14% do PIB norte-americano, o que adiciona aos estímulos orçamentais de Trump de montante similar, mas muito menos focados nas necessidades sociais de tantos norte-americanos do que no bem-estar do grande capital. O plano Biden irá, segundo várias estimativas, reduzir a taxa de pobreza de 14% para 8%. Não é a social-democracia, por causa do que falta na provisão social e na protecção do trabalho organizado, por exemplo, mas é uma mudança positiva, reconheço. O presidente norte-americano começou a romper com os chamados novos democratas de Clinton-Obama, ou seja, com o seu próprio passado. Não por acaso, no seu primeiro discurso depois da aprovação do plano de salvação, Joe Biden agradeceu em primeiro lugar a Bernie Sanders.   

Na semana passada, ficámos ainda a saber que o plano de vacinação dos EUA vai de vento em popa, beneficiando dos maciços recursos públicos canalizados para esta missão, ao mesmo tempo que não nos podemos esquecer que tal ocorreu num país onde, nos últimos anos, a esperança média de vida baixou devido às “mortes por desespero”, começando na presidência de Obama-Biden, num contexto de desigualdades só com paralelo no mundo de antes da Grande Depressão. A ausência de um serviço de saúde decente viu-se também na péssima prestação pandémica.  

A realidade contraditória do império em declínio relativo não pode nunca ser ignorada. Tal como acontece com o Estado desenvolvimentista cada vez mais mal-escondido, também o Estado keynesiano, militar e para os ricos, mas agora também para a gente comum, é aí cada vez mais difícil de esconder. Os efeitos ideológicos internacionais serão ponderosos, creio. 

O Tesouro e a Reserva Federal puxam na mesma direcção, garantindo a despesa pública que se transmuta em rendimento popular, em linha com o que antecipa a teoria monetária moderna, a mais realista das abordagens macroeconómicas.  

Um estado monetariamente soberano, endividado na sua própria moeda, não tem constrangimentos financeiros. O único constrangimento que enfrenta está relacionado com os eventuais efeitos inflacionários do activismo orçamental, mas estes só se manifestam macroeconomicamente quando se puxa para lá da capacidade produtiva instalada. Um estado semiperiférico, com soberania monetária, tem de atentar também no constrangimento externo, não se deixando endividar em moeda estrangeira, através de uma sábia combinação de política cambial e de controlos de capitais.  

Do ponto de vista internacional, é cada vez mais claro que se depende do activismo dos herdeiros de Roosevelt e de Mao, sendo que estes últimos discutiram recentemente mais um plano quinquenal, no quadro do grande sucesso no controlo da pandemia e da aposta numa maior autonomia económica, incluindo tecnológica. Devemos estar preocupados com a obsessão dos falcões norte-americanos e seus aliados com uma nova guerra fria, com mais bombas a serem lançadas por aí.

Entretanto, das vacinas e da pandemia à política orçamental, a UE hayekiana-ordoliberal é cada vez mais vez mais uma anacrónica e desastrosa gaiola de ferro neste mundo irreversivelmente multipolar e talvez, talvez, pós-neoliberal. Quando se olha para oriente e para ocidente, há alguma esperança.


2 comentários:

Jaime Santos disse...

Sempre a mesma insistência no gastar à tripa-forra como receita para os estados periféricos e com moedas que não inspiram confiança, João Rodrigues. Por isso é que o sistema se chama fiduciário. Até Peter Bofinger, um dos criadores da MMT, reconhece que a teoria só serve para quem tem economias com músculo. A dos EUA já viu melhores dias, mas ainda dispõe do petro-dolar...

Já Portugal dispôs de uma moeda soberana durante todo o século XX e não lhe valeu de muito, depois dos desmandos liberais e desenvolvimentistas do século XIX. A ideia de que se pode gastar dinheiro alheio (porque desde logo não produzimos muito do que necessitamos para nos desenvolver, nem nunca o faremos) nunca dá bom resultado porque um dia é preciso pagar a conta.

E fala de multipolaridade quando se avizinha uma nova guerra fria entre os EUA e a China, esse exemplo egrégio de respeito pelas liberdades individuais e coletivas? O estado de negação dos comunistas não remonta a 1989, remonta pelo menos a 1917, senão mesmo ao momento em que Bakunine lembrou que o único objetivo de uma ditadura (mesmo a do proletariado) é a sua própria perpetuação... Até Domingos Lopes, em artigo recente no Público, lembrava que as liberdades nos regimes comunistas não podem ser inferiores às dos capitalistas (mas são, by a mile)...

A conversa sobre o multilateralismo esconde um mundo sem regras em que nacionalismos para consumo interno se degladiam pela hegemonia imperialista a nível global ou regional, na velha luta do custome de todos contra todos...

Jose disse...

«Um estado monetariamente soberano, endividado na sua própria moeda, não tem constrangimentos financeiros» desde que tenha poder económico, político e militar para impôr a sua moeda como moeda internacional, e nessa condição transformada em moeda de reserva.
Privilégios imperialistas!