Fala-se muito da "regra-travão", mas já nos esquecemos quando isso foi discutido.
Há pouco mais de nove anos, em Março de 2012, Passos Coelho queria fazer "revoluções tranquilas", numa segunda vaga do ideário neoliberal.
A primeira fora desempenhada com duas maiorias absolutas de Cavaco Silva, mas com a ajuda dos socialistas, dada cirúrgicamente por Vítor Constâncio, secretário-geral do PS, ao fazer o PS aceitar rever a Constituição em 1989, no sentido de eliminar a irreversabilidades das nacionalizações. A partir daí, iniciou-se um vasto programa de privatizações, com o objectivo - falhado - de criar grupos económicos nacionais. Cavaco Silva acabaria mesmo a queixar-se nas suas memórias políticas dos empresários nacionais, que preferiram vender os activos a grupos estrangeiros. Um deles, foi o próprio Champalimaud a quem Cavaco Silva e Braga de Macedo deram secretamente - repito: deram! - 10 milhões de contos (qualquer coisa actualmente como 90 milhões de euros!) e a quem permitiram comprar sem ter gasto um tostão (dando como garantia as acções adquiridas). Passado o período de carência, Champalimaud vendeu as suas participações no sistema financeiro nacional que acabaram nas mãos dos donos do Banco Santander. As mais-valias serviram para criar a Fundação Champalimaud.
Passada essa fase e vivendo-se já sob o manto institucional da moeda única, uma das reformas em vista visava garantir e institucionalizar a austeridade orçamental, esvaziando a função democrática dos parlamentos e governos nacionais. E mais uma vez é essa a função do PSD: seduzir os socialistas, imbuídos que estão de uma lógica cegamente europeísta.
Escrevia Maria José Oliveira a 27/3/2012, no Público:
Só há duas soluções para a chamada “regra de ouro” – a cláusula-travão ao défice que consta do tratado intergovernamental de reforço e convergência económica da zona euro – vir a ser aplicada em Portugal. Ou é inscrita na Constituição, exigindo a aprovação de uma maioria de dois terços no Parlamento. Ou é realizado um acordo de cavalheiros entre PSD, CDS e PS para que a norma seja incluída na Lei de Enquadramento Orçamental (LEO) e para que não seja permitida qualquer alteração por uma maioria simples. A breve prazo são estas as suas opções que terão de ser tomadas pelos partidos que suportam o Governo e pelo PS. Isto porque o Tratado sobre Estabilidade, Coordenação e Governação na União Económica e Monetária, que consagra a adopção de uma regra de equilíbrio orçamental e a possibilidade de sanções pecuniárias em caso de défice excessivo, deu entrada no Parlamento na sexta-feira e hoje a conferência de líderes deverá agendar o debate para 12 de Abril. No dia seguinte, os deputados votam este tratado europeu e, caso seja aprovado, será remetido para o Presidente da República, a quem caberá ratificar ou não o documento.
No passado domingo, no encerramento do 34.o Congresso do PSD, Passos Coelho defendeu que a consagração da regra de ouro deve ser feita “de forma o mais dourada possível”, tendo de seguida desafiado o PS a dar “força constitucional” à norma.
“Espero que o PS seja sensível à ideia de que a regra que queremos adoptar, se não estiver na Constituição, mas na Lei de Enquadramento Orçamental [LEO], possa ter força constitucional”, disse o primeiro-ministro. A “força constitucional” sublinhada pelo primeiro- ministro pode implicar alterações na própria LEO, uma vez que esta lei exige apenas uma maioria simples (e não uma maioria qualificada) para realizar mudanças.
Assim, se os três partidos acordarem que a regra fica inscrita na LEO e que só pode ser alterada com uma maioria de dois terços, terá necessariamente de ser feita uma revisão da Constituição, mesmo que pontual. Isso mesmo foi já destacado por Passos, quando, em Dezembro, no Parlamento, notou que será necessário “mexer” na Constituição para atribuir à LEO um valor reforçado. Tal como explicou ao PÚBLICO, o constitucionalista Tiago Duarte, “não há leis de valor paraconstitucional” em Portugal e o valor reforçado da LEO traduz-se apenas no seu conteúdo, que pode ser alterado ou revogado por uma maioria simples. Por isso mesmo, o PSD defende que a regra de ouro deve “ficar imune” a quaisquer alterações por um partido, afirma Tiago Duarte. O constitucionalista aponta ainda o “equívoco” da direcção do PS nesta matéria, sobretudo quando defende que a regra de ouro deve apenas ficar na LEO, porque esta é uma lei de valor reforçado. “A LEO é de valor reforçado apenas no seu conteúdo e somente porque as leis dos orçamentos têm de lhe obedecer”, esclarece Tiago Duarte.
Ontem, questionado sobre o assunto, o líder do PS, António José Seguro, repetiu o erro. E acrescentou outro, ao dizer que a LEO exige “uma maioria absoluta de votos”: “Todos os orçamentos do Estado devem obediência à LEO e nesse sentido é uma lei que exige uma maioria absoluta de votos”, afirmou. Contudo, Seguro acabou por especificar que o PS não aceita que o limite ao défice venha a ser regulamentado “com uma maioria de dois terços”. Rejeitou pois a possibilidade de ser feita uma revisão constitucional para alterar a LEO. “Por que razão essa regra de ouro deveria exigir dois terços?”, questionou ontem. Em Dezembro, num debate quinzenal, Passos respondeu a essa pergunta: “[Para evitar] o arbítrio de qualquer executivo.”
4 comentários:
Sim, a conversa do costume sobre os atropelos à CRP, mas de 1976. Azar dos Távoras, a regra é a de que uma maioria de 2/3 pode mudar a dita CRP e ela foi sempre alterada dentro da legalidade.
Em Portugal, ainda manda a maioria e quem enche a boca com soberania popular deveria saber que a única soberania que conta é a da Lei. E poderiam ao menos evitar o triste espetáculo, esse sim, de andarem a puxar de uma CRP, qual Bíblia exibida por um evangélico, com a qual de facto não concordam.
Hum. O contorcionsimo expresso no post é similar ao contorcionismo do Marcelo, promulgando algo que sabe ser inconstitucional, qualquer que seja a "bondade" da iniciativa aprovada por esta coligação negativa. Donde se confere que, realmente, os extremos se atraem.
Caros Jaime e Lúcio,
É verdade que a lei-travão consta da CRP de 1976. E que o post deveria ter feito essa leitura mais didáctica. Saltos no raciocínio apenas revelam alguma pressa na vontadde da escrita que poder ser mal conselheira. Agradeço o alerta. E não volta a acontecer.
Mas na verdade, se bastava a lei-travão, de nada valeria todo o edifício que foi montade a jusante dessa regra, com a institucionalização dos esforços de convergência nominal, que pressuõem um visto prévio bruxelense, ao mesmo nível dos próprios deputados nacionais. Aliás, a própria Lei de Enquadramento Orçamental veio condicionar de forma quase hospitalar a forma como esses deputados poderão não intervir, tendo sempre subjacente uma dada teoria económica que nunca foi discutida nem julgada na sua eficácia.
E fê-lo através de diversos artigos.
"Artigo 6.º Política orçamental. 1 - O quadro jurídico fundamental da política orçamental e da gestão financeira, concretizado na presente lei, resulta da Constituição da República Portuguesa e das disposições do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, do Pacto de Estabilidade e Crescimento em matéria de défice orçamental e de dívida pública e, bem assim, do disposto no Tratado sobre a Estabilidade, Coordenação e Governação da União Económica e Monetária". .
Art 20: 1 - O objetivo orçamental de médio prazo é o definido no âmbito e de acordo com o Pacto de Estabilidade e Crescimento. Art 22 e art 23 sobre desvios e correcção de desvios.
Art 27: obrigatoriedade de saldos nulos ou positivos;
Art.32 e seguintes sobre processo orçamental e obrigariedade de apresentação de PEC; Art 36 Obrigatoriedade de apresentação em Bruxelas;
E omissão na LEO de qualquer possibilidade de apresentação de medidas fora do processo de elaboração do OE.
Quando se julga da capacidade de os deputados poderem determinar algum destino às contas públicas, é todo este quadro que lhe cai em cima.
Talvez, tenha dado um salto no raciocínio e perdido parte do conteúdo. E valha então o contributo dos mais críticos. Agora, há-de concordar, caro Lúcio, que nunca os "extremos" se tocaram porque a própria definição de "extremo" é, já em si, um "programa" de amnistia e de omissão de responsabilidades. Apenas surge na visão mais ligeira de quem pode achar que, lá porque o dinheiro é o mesmo, todas as políticas orçamentais e todas as ideias sobre políticas orçamentais são iguais.
Qual a relevância dos antecedentes históricos da norma constitucional conhecida como lei-travão?
Essa norma radica no principio basilar de qualquer estado de direito democrático que é o da separação de poderes entre os orgãos de soberania, que consta da generalidade das constituições dos estados democráticos.
A norma é que, a proposta e gestão do orçamento é uma competência exclusiva do orgão executivo (Governo) e a sua aprovação do parlamento. Assim depois de aprovado o orçamento só o Governo tem o poder de iniciativa de apresentar propostas de alteração de outro modo a sua execução e gestão tornar-se-ia impossível.
As leis em causa, violam não só a lei travão, mas mais que tudo violam o princípio fundamental da separação de poderes.
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