domingo, 18 de março de 2018

Habitue-se


“Custa-me a compreender que no século XXI ainda estejamos a discutir se o proteccionismo compensa, numa logica mercantilista, que pertence ao século XVII”, declarou esta semana ao Negócios o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva.

Eu sei que custa, sobretudo quando se deixou persuadir por ficções neoliberais destinadas a elites de países condenados a ficar para trás, mas se olhar para a história da economia política contemporânea com cuidado verá que custa menos. Aliás, não é por acaso que os mais consequentes oponentes de Trump, os da ala social-democrata do Partido Democrata, como Elizabeth Warren e Bernie Sanders, têm sido aparentemente cautelosos neste contexto, já que defendem algum tipo de proteccionismo.

O proteccionismo faz parte, segundo o economista Ha-Joon Chang ou o historiador Paul Bairoch, da história secreta da construção de qualquer sistema industrial do mundo contemporâneo. É preciso neste contexto relembrar que a história da formação dos EUA como potência industrial até à Segunda Guerra Mundial e mesmo para lá dela é a história do proteccionismo, em linha com os argumentos do primeiro Secretário do Tesouro dos EUA, Alexander Hamilton, e que incluíam questões de segurança, para lá do célebre argumento da protecção da indústria na infância.

Hoje em dia, e não por acaso, a China é um caso paradigmático de um país que se insere estrategicamente na globalização, escolhendo os fluxos a que se abre e os fluxos a que se fecha, as formas como o faz e os seus tempos. Trata-se de um exemplo em grande escala da lógica do Estado desenvolvimentista, mobilizando intensamente instrumentos de política com efeitos proteccionistas, da política de crédito e subsídios às condições que fixa ao IDE, passando pela política cambial e por um uso selectivo de tarifas. Ainda recentemente, a The Economist assinalava um plano chinês para 2025 e que passa pela criação deliberada de líderes em vários sectores industriais, com recurso a instrumentos de protecção.

É então preciso superar uma falsa dicotomia, que oporia comércio livre a autarcia económica. A realidade é sempre mais complexa. Até porque, como argumentou Friedrich List, o sempre selectivo comércio livre (as patentes o que são?) é tantas vezes o proteccionismo dos mais fortes, ou seja, o proteccionismo dos países que dispõem de empresas capazes de competir nos mercados internacionais. O Reino Unido, por exemplo, só deixou de ser proteccionista na segunda metade do século XIX, quando já tinha toda a força industrial.

Em geral, diria que nos dias de hoje temos mesmo de restringir as regras do comércio e investimento internacionais e alargar as boas e flexíveis práticas de protecção socioeconómica. A proposta de economistas convencionais como Dani Rodrik são sensatas: os países subdesenvolvidos devem poder copiar as práticas de protecção industrial selectiva dos países bem sucedidos; os países desenvolvidos devem poder evitar a erosão dos seus standards laborais ou ambientais, bloqueando formas de concorrência e de chantagem do capital consideradas ilegítimas. Isto para não falar do perigo económico e político da desindustrialização. Trata-se de reconhecer a necessidade de vermos surgirem modelos de desenvolvimento menos extrovertidos e menos desiguais. Desglobalizar é preciso.

20 comentários:

Jose disse...

«…os países subdesenvolvidos devem poder …»
Devem poder e podem em larga medida, nos termos de acordos e regras de comércio e dos limites da sua capacidade organizacional e política.
Acontece que Portugal não é subdesenvolvido.
«…formas de concorrência e de chantagem do capital consideradas ilegítimas»
A legitimidade define-se em tratados, e quem os assina ou os cumpre ou renuncia.

A moda por cá vai no sentido de que, face ao desastre da renúncia aos tratados, o lamento e uma ou outra perrice substituem a acção que levaria a que fossem cumpridos com vantagem.

Anónimo disse...

Bom texto!

Focando o essêncial dos "enjeux" do comércio internacional de forma muito sintética.

Para um comércio justo sem se ser comido por lorpa.
S.T.

Anónimo disse...

Os tratados não "se renunciam"!

Os tratados denunciam-se ou renegoceiam-se!

Só as azémolas se submetem a tratados iníquos e que ameaçam a prazo o futuro de uma nação.

Como aliás o demonstra bem Donald Trump com o NAFTA e a relação comercial com a China.
S.T.

Paulo Marques disse...

Já a jorna no século XXI não o incomoda, nem ao resto da direita.

Jose disse...

Denuncia é sem dúvida termo mais consentâneo com o blá-blá lamentoso de quem espera que lhe sirvam um qualquer maná que lhes permita manter a o rame-rame da sua mediocridade.
Quem denuncia sem possível renuncia provavelmente faz figura de parvo, o que não será problema para quem o é.

Anónimo disse...

Renunciar à decência, à soberania e à sobrevivência?

Eis a moda do faduncho dos apologistas da submissão a outros interesses

E em que raio de tratado foi definida a legitimidade daquele que mandava matar e morrer em África? Os lamentos idiotas nao carecem de serem cumpridos com idênticas vantagens

Anónimo disse...

De Augusto Santos Silva se poderá então dizer à italiana "furbo come un cervo".

Divirtam-se!

https://www.youtube.com/watch?v=5rFCqjEp2uM

Note-se como até o polícia tem pena dele. LOL
S.T.

Anónimo disse...

Um dos principais problemas do protecionismo em democracia é que rapidamente se pedem barreiras à entrada ... para as bananas da Costa Rica (ver dois posts abaixo). E a partir daqui ..

Anónimo disse...

Alguém já ofereceu um espelho ao jose para que este veja a figura que faz?

Apanhado pelo disparate da sua “ renuncia” aos tratados , assistimos a uma renuncia do próprio jose em relação à sua “ renuncia “.

Não tem outro remédio, o pobre.

Mas, insatisfeito por ter sido apanhado, rumina invocando o bla-bla lamentoso, o maná, o rame-rame e a mediocridade.

Estamos no domínio do seu vocabulário, quiçá copiado de algum “lúcido e claro discurso” à sua moda.

E de tal forma fica destrambelhado, que volta atrás na sua “ renúncia “, pespega-lhe uma possível e condiciona a sua denúncia.

Diz qualquer coisa sobre fazer figura de.

Mas isso francamente cabe aos outros decidir.

Que falta faz mesmo um espelho para Jose ver a figura que faz

Anónimo disse...

"Um dos principais problemas do protecionismo em democracia é que rapidamente se pedem barreiras à entrada ... para as bananas da Costa Rica (ver dois posts abaixo). E a partir daqui .. "

Por não haver condições climatéricas na Madeira para cultivar banana com a produtividade da Costa Rica, as bananas não deveriam ser a prioridade em matéria de taxas alfandegárias. Já como moeda de troca negocial tudo serve.

Mas há quem se preocupe até com a curvatura das bananas. Se são demasiado direitas ou demasiado curvas. As mentes ociosas dos eurocratas têm que se ocupar com alguma coisa enquanto coçam as micoses.

https://www.forbes.com/sites/timworstall/2016/05/12/to-properly-explain-the-eus-bendy-bananas-rules-yes-theyre-real/#740bced26fc9

E você? Também está preocupado com a curvatura da banana?
S.T.

Anónimo disse...

Há quem esteja desatento ao compasso que para o bem e para o mal a potência hegemónica marca.

"The massive German trade surplus has often been named as a factor of instability on the international stage. Still, the European Commission, the IMF, former US presidents and the rest of the EU members have failed to lessen it so far. Trump is going to do what everyone else did not have the courage to: punish Germany. He will wage a trade and currency war against the Eurozone, and the above-mentioned tariffs are just the first act."

https://gefira.org/en/2018/03/14/the-perfect-storm-for-2020-weidmann-at-the-ecb-trumps-trade-war-macrons-failure-italys-turmoil/

É suficientemente claro?
Quem fôr apanhado a apostar no cavalinho errado, olha, azar!
S.T.

Jose disse...

Pergunto-me se os excedentes da Alemanha são um problema quando só os excedentes do euro o deveriam ser para os USA.
Que aos Trump como aos Putin uma Europa aos bocadinhos seja o prato preferido, parece-me mais que provável.

Mas não faltam por cá Trumpistas que queiram outro tanto.

Anónimo disse...

Ó senhor José!

Claro que os excedentes da Alemanha são um problema para Portugal, para o resto da EMU (zona Euro), para todo o resto do mundo, para os USA, e óbviamente para Trump!
Até porque têm por origem uma batota cambial da Alemanha.

Apesar de partilharmos uma moeda comum ainda somos países distintos e Trump, que não é parvo, percebe o truque da Alemanha. Peter Navarro encarregou-se de lho explicar. Aliás, todos percebem o truque da Alemanha excepto os "ingénuos". E não é preciso ser trumpista para ter suficiente "esperto na cabeça" para perceber.

Esperemos tão sómente que a metodologia empregue por Trump seja decisiva e rápida para não arrastar Portugal e os outros "prisioneiros do Euro" ou melhor dizendo "reféns do Euro" para uma situação de guerra comercial com os USA em que possamos ser "vitimas colaterais".
S.T.

Anónimo disse...

Falta mesmo um espelho para o tal jose

Agora é este vestir da camisola alemã como se fosse a sua.
...suspeita-se que isso já ocorreu no passado

"Deutschland über alles" não era mesmo o refrão?

Anónimo disse...

Ainda respondendo ao José, mas para benefício de todos os circunstantes...

Os interesses geoestratégicos na Europa não mudaram muito desde há 60 anos:

À Russia a fragmentação interessa, enquanto aos USA interessa a união politica que sempre promoveram no contexto da guerra fria como forma de contenção do defunto Pacto de Varsóvia.
Com a presente Guerra Fria 2.0 não parece que esse aspecto tenha mudado.

O que definitivamente mudou foram os crescentes excedentes comerciais da Alemanha, fruto dos desequilíbrios internos do Euro. E mudou a percepção da administração americana relativamente aos seus deficits comerciais e à deslocalização da produção de empresas, sobretudo as que possam ter um valor estratégico. Está em preparação um pacote de tarifas para a China. Uma primeira versão de 30 biliões de dólares "não era suficiente". LOL

https://www.zerohedge.com/news/2018-03-19/trump-set-unveil-60bn-china-tariffs-friday

Pode-se dizer que a globalização está a enriquecer a finança norte-americana à custa do enfraquecimento do tecido empresarial americano. Trump está, de uma forma muito canhestra, a tentar reverter essa situação. Para isso tem que conter a homorragia da balança comercial onde assumem particular relevo as importações da China e da Alemanha. E é por isso que a Alemanha e a sua vigarice cambial não vão passar impunes.

Resta saber qual a forma de que se vão revestir as medidas de Trump em relação ao problema alemão. Isto porque idealmente deveriam visar a mercantilista Alemanha e poupar as suas vítimas e reféns no interior da EMU, o que não é fácil dados os subterfúgios de que a Alemanha poderia lançar mão para fugir às sanções. Nesta guerra comercial somos reféns e escudos humanos.

Mais uma vez agradeço ao José por suscitar estas respostas.
E repito, é um excelente troll. Se eu tivesse um blog também quereria ter um ou dois assim como ele.
S.T.

Anónimo disse...

Já que vem a talhe de foice lembro um artigo do Voci Dall'Estero, infelizmente em italiano que creio que poucos portugueses dominam:

"Eurointelligence – Non è una guerra commerciale che la UE possa vincere. E per gli USA la Cina non basta."

"Eurointelligence – Não é uma guerra commercial que a UE possa vencer. E para os USA a China não chega."

http://vocidallestero.it/2018/03/21/eurointelligence-non-e-una-guerra-commerciale-che-la-ue-possa-vincere-e-per-gli-usa-la-cina-non-basta/

Muito sucintamente: O grosso do défice comercial dos USA já não é com a China. É com países aliados, com a EU à cabeça. E mais precisamente com a Alemanha, que é o contribuinte numero um para um superavit de 3,5% do PIB da EMU. E se 3,5% não parece muito, em volume é qualquer coisa como cerca de 450 biliões de dólares anuais (para os quatro últimos trimestres de dados conhecidos). E mesmo tratando-se de saldos globais e não bilaterais isso significa que a EU "enxuga" toda a procura a nível mundial, deixando aos USA uma fatia cada vez mais reduzida e entravando as exportações americanas. A China só aparece em terceiro lugar.

Como se trata de países com taxas alfandegárias relativamente baixas o factor macroeconómico que provoca o desequilíbrio só pode ser monetário. Logo, não é uma questão de se a Alemanha vai levar ripada é quando, porque anda a abusar dos parceiros e dos USA há tempo demais. Parece óbvio, não?
S.T.

Jose disse...

Comovente esta ambição de se verem a sós com o imperialismo USA liderado por Trump.
Será que esperam um Marshal mais generoso que os Fundos europeus.

Apesar de saberem que os USA querem exportar os seus transgénicos e tudo mais que é liberalmente desregulado, esta cambada come tudo desde que lhe assegurem câmbios para enganar o Zé Pagode.

E com o euro a valorizar-se face ao dólar, acham de menos. Nada os contenta que não uma crise para os mais de 130.000 portugueses residentes na Alemanha, mais os que cá beneficiam do sucesso das empresas alemãs.

Anónimo disse...

Comovente esta preocupação do José com os transgénicos.

Claro que sabemos das tentativas dos USA de vender toda a porcaria biotécnológica que produzem.
É pena que a EU, Comissão e demais tralha eurista não tenham sido capazes de proteger os consumidores e o ambiente na Europa do Roundup, que apesar de comprovadamente cancerígeno obteve licença para ser comercializado na EU. E é ver as câmaras municipais a pulverizar essa porcaria nos passeios para "controlar as ervinhas". Portanto quanto a "protecções" ambientais da EU estamos conversados.

E devemos regozijar-mos com a valorização do Euro face ao dólar? Deve ser óptimo para as exportações portuguesas... LOL (sarcasmo grátis!)

E qual é o problema dos emigrantes? Se o governo alemão até está disposto a acolher sírios e afegãos com muito menos afinidades culturais, qual seria o defeito dos portugueses?
Com os problemas de baixa natalidade que a Alemanha tem até rezam para que mais portugueses para lá vão. E pelo menos não consta que portugueses tenham estado na origem de atentados terroristas. Dão menos trabalho ao BND... LOL
S.T.

P.S.
Obrigado pela ajuda camarada José!

Anónimo disse...

Primeiro queria matar uma gralha.

Onde se lê "E devemos regozijar-mos com a valorização do Euro face ao dólar?"

Deve ler-se "E devemos regozijar-nos com a valorização do Euro face ao dólar?"

Segundo, ainda reflectindo acerca da porcaria do Roundup, interrogo-me se o facto de a Monsanto ter sido adquirida pela Bayer não terá pesado na decisão de autorizar a sua comercialização. É que as negociações de aquisição decorriam ao mesmo tempo que se discutia se o Roundup deveria ser autorizado ou proibido. E sendo a Bayer uma conhecida empresa alemã...
Daquelas que são muito honestas, até serem apanhadas em dieselgates ou a dar luvas para facilitar a venda de submarinos...
S.T.

Anónimo disse...

De facto um bom pretexto para ir esclarecendo os assuntos, um a um