quarta-feira, 18 de março de 2015

A verdadeira escolha


Há excelentes motivos para que a educação deva ser universal e gratuita, mas a tendência geral tem sido de retrocesso a esse nível. As conquistas dos estudantes chilenos devem inspirar-nos a invertermos esta tendência.

São muitas e boas as razões que justificam que o acesso à educação - e a todos os níveis de ensino - deva ser universal e gratuito. A primeira, mais imediatamente reconhecível pela economia dominante, é que a educação é caracterizada por aquilo que se costuma designar por "externalidades positivas". Isto é, os benefícios resultantes da aquisição de educação adicional não são exclusivamente apropriados pelos seus beneficiários directos: o resto da sociedade beneficia de inúmeras formas do facto de cada um dos seus membros apresentar um maior desenvolvimento cognitivo e cultural e competências interpessoais e técnicas mais desenvolvidas.
Como tipicamente sucede em presença de externalidades positivas, o mercado é incapaz, por si só, de assegurar o nível ideal de provisão do bem ou serviço em causa, uma vez que a disponibilidade ou capacidade para pagar de cada um dos indivíduos não tem em conta os benefícios externos que advêm a terceiros. As externalidades, positivas ou negativas, constituem aliás um dos exemplos clássicos das chamadas "falhas de mercado", precisamente devido ao facto da regulação mercantil da provisão resultar, mesmo num quadro de análise estritamente utilitarista, numa situação socialmente indesejável.
Mas há mais razões e não são menos importantes. Uma segunda razão consiste no facto do acesso diferencial à educação ser um dos mecanismos mais poderosos de reprodução intergeracional da desigualdade. Os filhos dos ricos têm tipicamente acesso a mais oportunidades de desenvolvimento cognitivo e cultural do que sucede com os filhos dos pobres, e esta dimensão da desigualdade interage e potencia com as outras dimensões (como a transmissão por herança da riqueza) de um modo tendente a perpetuar a desigualdade de geração em geração. O ensino público, universal e gratuito não consegue, por si só, compensar esta desvantagem, pois os filhos dos ricos continuam a ter, tipicamente, um melhor desempenho em consequência das vantagens adicionais de que beneficiam. Mas é uma das formas mais importantes de mitigar esta dimensão da desigualdade - e é uma forma tanto mais poderosa quanto mais efectivamente gratuita e universal for.

Um terceiro motivo é o facto do acesso gratuito à educação, financiado através dos impostos cobrados pelo Estado, constituir uma forma de salário indirecto, que acresce aos salários directamente recebidos pelas famílias. Para as famílias cujo rendimento advêm do seu trabalho, todo o co-financiamento da educação que lhes é exigido, toda a redução do financiamento público, é efectivamente uma redução do rendimento disponível, um corte salarial efectivo. As disputas em torno do (co-)financiamento da educação, como da saúde e de outros serviços públicos, são também, por isso, disputas em torno da repartição funcional do rendimento entre rendimentos do trabalho e rendimentos do capital. E sabemos bem como o desequilíbrio crescente desta repartição em favor dos rendimentos do capital está na origem de tantos dos flagelos que assolam as nossas sociedades, do alastramento da pobreza à erosão da coesão social, passando pelo poder desregrado da finança. Reforçar o Estado social é reforçar a coesão social directamente e os salários indirectamente. A educação pública, universal e gratuita é uma das suas componentes fundamentais.
E um quarto motivo, porventura o mais importante de todos, é que o acesso à educação é, pura e simplesmente, um direito humano fundamental, uma condição de emancipação individual e colectiva que deve ser garantida pela sociedade a todos os seus membros. Tal como o direito à vida e à integridade física, possui um valor intrínseco que é incomensurável face às preferências individuais e à distribuição da riqueza, o que tem como consequência que a sua provisão deve ser assegurada fora da esfera mercantil e numa base de verdadeira universalidade, o que por sua vez implica também gratuitidade.
O acesso universal e gratuito à educação é uma conquista recente em termos históricos, resultante das lutas pelo salário indirecto no contexto das sociedades industriais e das cedências por parte das fracções mais esclarecidas das elites e grupos dominantes. Mas é também uma conquista incompleta e sempre sujeita a retrocessos, como se vê facilmente pelos exemplos dos países onde a educação é mais profundamente mercantilizada ou pelo exemplo dos recuos registados no nosso próprio país, nomeadamente no contexto do desinvestimento público no ensino superior e do aumento do co-financiamento exigido às famílias.
Este último tem sido um processo evidente com alguns marcos que quase todos recordam. Primeiro, a introdução de propinas em todo o ensino superior no final dos anos '90, a coberto da insidiosa qualificação tendencial da gratuitidade. Mais tarde, a redução, de 4 ou 5 para 3, do número de anos do ensino superior que apesar de tudo continuam a contar com uma comparticipação pública maioritária, a coberto do processo de Bolonha, verdadeiro cavalo de Tróia do desinvestimento público na educação. Paga-se hoje - quem pode pagar, claro está - milhares de Euros pelos mesmos 4º e 5º anos do ensino superior (agora denominados "mestrados") a que os estudantes tinham antes acesso gratuito enquanto 4º e 5º anos das licenciaturas.
Se não enfrentarem resistência suficiente, estas são tendências que, claro está, não ficarão por aqui, tendendo sempre a expandir-se mais e mais, através da redução adicional das transferências do Orçamento de Estado para as universidades e do encorajamento a que estas fixem propinas cada vez mais elevadas, mas também, ao mesmo tempo, através do desinvestimento na provisão pública no ensino básico e secundário a par da promoção do cheque-ensino, seguida mais tarde pela redução do próprio cheque-ensino. A cartilha é conhecida e sempre vendida como promoção da escolha e da autonomia individuais; o resultado é precisamente o contrário. É o ensino universal e gratuito, e não a sua mercantilização insidiosa, que promove verdadeiramente a emancipação e a autonomia dos cidadãos. É essa a verdadeira escolha.
O desafio, para quem não desiste de viver numa sociedade decente, é não apenas resistir a estas tendências como invertê-las, reconquistar o terreno cedido. Isso está ao nosso alcance e há exemplos que podem e devem inspirar-nos - como o do movimento estudantil chileno, que ao longo de anos não desistiu de lutar contra a herança neoliberal do regime de Pinochet e que, nas últimas eleições, assegurou finalmente o compromisso governamental da reintrodução da plena universalidade e gratuitidade do ensino, financiada através do aumento dos impostos sobre as grandes empresas.
É sempre possível voltar a ganhar terreno no sentido da decência. Há passos que são grandes porquanto apontam o sentido do caminho.
(publicado originalmente no Expresso online em 11/03)

4 comentários:

Anónimo disse...

Vale a pena ler o que dizem eurodeputáveis do PS

http://causa-nossa.blogspot.pt/2008/09/trocar-propinas-por-bolsas.html

http://causa-nossa.blogspot.pt/2015/02/o-dinheiro-vem-do-ceu.html

para depois, não se diga que anda ao engano.

Mario disse...

(...) o acesso à educação é (...) uma condição de emancipação individual e colectiva que deve ser garantida pela sociedade a todos os seus membros" :

.
Concordo, mas so concordo porque tambem tenho uma visao da sociedade egualtarista (a nao confundir com a igualitaria)...

... Mas que (por exemplo) a ideologia neo-liberal considera anormal. A ideologia neo-liberal (que rejeita a igualdade) defende dogmaticamente (e teoricamente) a igualdade de direitos e oportunidades. Porém na pratica, (da visao neo-liberal) essa igualdade de direitos nao confere ao Estado (à sociedade) essa missao.

Substitui quanto possivel o publico ao privado.


As teorias nem sempre definem a pratica. Exemplo : Nos tratados de "unioes de naçoes" como a "uniao sovietica" (que jà explodiu), ou da "uniao eurocrata" (obviamente em vias de explodir), existe um preambulo que indica (com um humor que tem de ser elogiado), que a dita uniao é de essencia democratica !

Como se vê, teoria e pratica podem ser diametralmente opostas.

Aliàs nas naçoes de ambito neo-liberal, como os EUA ou a Inglaterra, podemos efectivamente constatar a realidade.

O acesso à saude e à logistica publica ligada à saude sao um caos. (Exactamente o mesmo caos que o mesmo neo-liberalismo està a criar nas naçoes refens da UE).

Quanto ao ensino, nomeademente o superior, so pode ser acessivel, ou a alunos de familias com meios financeiros importantes, ou atravès de emprestimos que pagam durante toda a sua vida.

A esmagadora maioria dos alunos que acederam ao ensino superior nas naçoes neo-liberais, têm uma divida que equivale a dezenas de milhares de dolars (ou Libras).


PS : Trata-se aliàs de algo, que como as bolhas imobiliarias, vai criar mais uma "crise financeira", com a possivel explosao (ou dificuldade) de varios bancos. Foram assim criados produtos financeiros toxicos baseados nesses emprestimos a estudantes, com a mesma articulaçao que os subprimes que os bancos US "enfiaram" (graças ao artigo 63 do TUE) aos bancos das naçoes refens da UE.

Com a imensidade dos emprestimos feitos nas duas ultimas décadas a alunos do superior, obrigados a se endividar a niveis irracionais, e cuja maioria nao consegue encontrar um emprego ou um salario à altura das pretençoes, para poder pagar os juros (e muito menos a divida) dos ditos emprestimos, os credores acabaram por criar listas "podres" de individuos, que os bancos consideram nunca se poderem livrar do crédito concedido.

Essas listas foram "embrulhadas" (nao hà outra palavra), em conceitos e produtos financeiros matematico-complicados (como os subprimes imobiliarios), e foram vendidas pelos bancos US a bancos europeus. Até agora o facto é mantido debaixo do tapete. Mas quando o momento M chegar, visto os montantes evolvidos, o facto pode gerar outra explosao praticamente do nivel da que aconteceu em 2008.

Podemos desde jà tentar imaginar o nome que darao à dita :), e que a oligarquia definirà como sendo uma "crise financeira" gerada "pelos que viveram acima das possibilidades". Um conceito de endoutrinamento mental que funciona em qualquer altura e contexto.

Mário R. Gonçalves disse...

"Filhos dos ricos", "Filhos dos pobres", que pobreza de análise a preto e branco.

Os estudantes da Venezuela, "filhos de ricos" se calhar, combatem na rua e arriscam a vida contra um sistema como o que aqui é defendido.

Anónimo disse...

os filhos de ricos venezuelanos são filhos de putas. nunca os vi manifestar quando havia miséria numa faixa bem grande e muito maior da população. quando lhes mexem nos privilégios os filhos da puta inquietam-se.

os governos venezuelanos bolivarianos erram mas mata a fome. os dos filhos ricos erram e matam de fome comas receitas do velhinho fmi.

como no brasil, onde os jornais se esquecem de denuciar a corropução do psdb no caso do metro, embora governe em sao paulo e campanhe para engrossar manifestações