segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015
Desequilíbrios
A abordagem dos balanços sectoriais não só revela a verdadeira origem dos desequilíbrios macroeconómicos portugueses, como mostra a impossibilidade de os ultrapassar no quadro da moeda única.
Existe uma identidade macroeconómica segundo a qual a soma do défice orçamental público com o acréscimo do endividamento privado é igual ao defice externo. No fundo, é uma forma desenvolvida da identidade mais simples segundo a qual a poupança é, ex-post, igual ao investimento: S=I. A diferença é, que na primeira formulação, a poupança e o investimento são decompostas nas suas componentes pública, privada e externa.
Trata-se de uma identidade, que é verdadeira por definição. Não é uma teoria, mas sim um resultado que se verifica e tem de se verificar sempre, dada a forma como cada um das variáveis é definida e se relaciona entre si. (A derivação matemática deste resultado, para os interessados, está disponível aqui).
Como corolário dessa identidade, podemos extrair algumas conclusões que são, também elas, verdadeiras por definição. Pegando em cada um dos três saldos, ou balanços, parciais e combinando-os entre si de diferentes formas, podemos concluir (de forma sempre válida por definição) que só é possível o estado e o sector privado reduzirem simultaneamente os seus níveis de endividamento se houver um superávite externo com a dimensão dessa redução do endividamento total. Ou que, dado um saldo externo equilibrado, qualquer aumento da poupança por parte do sector privado (famílias e empresas) só é possível mediante um agravamento do défice orçamental público. Ou ainda que, se o saldo orçamental for nulo, a poupança agregada das famílias e empresas é igual ao saldo externo.
Esta abordagem, que enfatiza a interrelação dos equilíbrios e desequilíbrios destes três sectores da economia e analisa a sua evolução conjunta, é conhecida como a abordagem dos balanços financeiros sectoriais. Como referi em cima, até aqui nada disto envolve qualquer teoria: é uma consequência lógica e inevitável do sector público, sector privado e sector externo constituírem, quando tomados conjuntamente, um conjunto fechado. Como tal, os três sectores não podem poupar, ou endividar-se, simultaneamente: as poupanças de uns são endividamento dos outros.
Alguns leitores poderão neste momento objectar: mas o conjunto do sector público e do sector privado, por si só, não é um sistema fechado. Pode poupar, ou desendividar-se em termos agregados, desde que assegure saldos externos sistematicamente positivos. É verdade. Mas sucede (e aqui saímos da esfera meramente dedutiva) que a capacidade de controlar o saldo externo é indirecta e muito limitada... quando se trata de um país sem moeda própria.
Saltemos então para o concreto e para o caso de Portugal no final dos anos '90: um país que apresenta os três saldos referidos em cima mais ou menos equilibrados mas que, de repente, ancora a sua taxa de câmbio às de um conjunto de economias estruturalmente mais robustas. Esta maior robustez do conjunto em termos do perfil de especialização e da capacidade exportadora vai fazendo com que, pouco e pouco, a taxa de câmbio do conjunto (que passou a ser também a de Portugal) vá divergindo daquela que seria a taxa de câmbio natural da economia portuguesa. A divergência é "para cima", no sentido de tornar as exportações mais caras e as importações mais baratas. O resultado é que o saldo externo entra em desequilíbrio crónico, começando a somar défices atrás de défices. E, como nos revela a abordagem dos balanços sectoriais, a contrapartida disso mesmo é o aumento do endividamento (a princípio, essencialmente privado - mais tarde também público).
Desencadeada esta dinâmica, haveria quatro formas principais de lidar com o problema: a primeira forma teria consistido em desvalorizar a moeda de modo a corrigir o desequilíbrio externo e limitar o endividamento interno. Se a taxa de câmbio fosse flexível, aliás, isso teria acontecido automaticamente, sem necessitar de intervenção estatal. Mas a taxa de câmbio não só não era flexível como, sendo fixa, deixara de poder ser alterada: era mais que uma mera ancoragem - era uma adesão, pensada como definitiva, a uma moeda única e comum.
A segunda forma de lidar com o problema teria consistido em limitar as importações através da imposição de barreiras alfandegárias ou outras medidas proteccionistas, mas também estas haviam sido entretanto proibidas na sua quase totalidade.
A terceira forma teria consistido em carregar a fundo nos travões, obrigando o sector público, desde logo, a assumir superávites orçamentais que compensassem o endividamento privado - fazendo assim com que, ao mesmo tempo, a limitação das importações induzida pela austeridade orçamental acompanhasse a limitação das exportações induzida pela inadequação da taxa de câmbio. Mas isso implicaria induzir a estagnação económica e o aumento drástico do desemprego de uma forma que a todos pareceria contra-natura: através da imposição de superávites orçamentais. Por outras palavras, teria implicado assumir claramente, logo nos primeiros anos da moeda única, que esta era um mecanismo de divergência e estagnação da periferia.
Pelo que a quarta forma foi a que efectivamente se verificou: deixar o problema arrastar-se. Isso quis dizer acumular défices externos sucessivos, cada vez mais elevados, a par de aumentos sucessivos e cumulativos do endividamento. Uma década e meia depois, Portugal é um dos países mais endividados do mundo, com uma dívida externa líquida superior a toda a produção realizada por todos os agentes económicos nacionais ao longo de um ano. É este o resultado cumulativo dos défices externos acumulados em resultado de uma opção cambial pouco ajuizada.
Chegados aqui, a abordagem dos balanços sectoriais mostra-nos agora que serão necessários muitos anos de superávites externos cumulativos e significativos para conseguir proceder à eliminação gradual da montanha de endividamento público e privado acumulado. Isto não é coisa pouca: no contexto da moeda única, alcançar o equilíbrio externo nos últimos anos envolveu reprimir a economia através da imposição de austeridade de uma forma que tem devastado a sociedade e comprometido seriamente as perspectivas de desenvolvimento futuro. Agora imaginem aprofundar esta mesma austeridade ao ponto de conseguir superávites externos consideráveis... e manter esse rumo durante várias décadas.
Como é óbvio, não vai acontecer - nem em Portugal ou na Grécia, nem, com diferentes matizes, em Espanha, em Itália ou em França. E é este o motivo para Greenspan, por uma vez, ter razão o Euro está condenado. E ainda bem.
(publicado originalmente no Expresso online em 11/02)
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8 comentários:
Tudo muito claro, menos quanto a uma questão.
Presumindo o pagamento da dívida, em que é que a austeridade induzida pela desvalorização cambial ganha vantagem à austeridade induzida pela realização de saldos orçamentais?
A análise feita pelo Alexandre Abreu é excelente.
A questão dos défices externos é importante porque o sector privado até se endividou mais do que o sector público até ao eclodir da crise.
Logo, a hipótese dos défices gémeos não se coloca.
Ou seja, mesmo que o défice público fosse reduzido a 0 seria pouco provável que a economia conseguisse apresentar superavites externos.
O problema sempre foi o sector privado e os incentivos de uma taxa de câmbio desajustada.
Na prática, enquanto existir financiamento Portugal será sempre um país com desiquilíbrios externos no quadro da UEM.
Tanto faz que os défices sejam públicos ou privados.
O exercício bate certo se os factores estiverem estáticos.E é esse o recado do sr Draghi = aqui vai o dinheiro reclamado, mas se o gastarem apenas, o problema volta pior; a gestão é da responsabilidade de vexas.
Há razão para receios= as tres bancarotas passadas em fase de grande "gastos" publicos.
Atenção. O jose fez uma pergunta com algum interesse académico.
Tem razão quando afirma que a identidade macroeconómica é verdadeira devido à forma como cada uma das variáveis é definida, mas já tem menos quando diz que não se baseia em nenhuma teoria.
A igualdade entre a poupança e o investimento, ou equivalentemente, entre a poupança do setor privado (rendimento disponível das famílias e empresas menos o consumo) e o défice governamental mais o excedente externo (exportações líquidas) não é nada que se possa garantir previamente – reparei que a descreveu mais apropriadamente como ex-post –, mas também não é nada que seja assegurado automaticamente, nem sequer a prazo demasiado curto, tendo em conta que é razoável esperar ciclos de ajustamento entre a oferta e procura agregadas de pelo menos três anos.
A utilização das identidades macroeconómicas, da poupança e investimento, da oferta e procura, dos balanços setoriais, a cada momento, só é válida com o truque contabilístico de incluir a variação indesejada dos inventários dentro do investimento, que em rigor deveria cingir-se ao investimento fixo pretendido e à alteração de inventários intencionada. Ou seja, de transportar o desequilíbrio para dentro de uma variável, de modo a obter, artificialmente, a igualdade.
Não basta repetir três ou quatro vezes que se trata de identidades para validar, de forma quase tautológica, as suas implicações, porque são identidades contabilísticas que, com o “truque” mencionado, acomodam quaisquer saldos dos três setores.
As implicações extraídas da consideração dos balanços setoriais são relevantes e pertinentes, mas é preciso, por assim dizer, dar tempo suficiente “para que funcionem”, com a gravitação da oferta e procura em torno uma da outra, ou, equivalentemente, com a oscilação dos inventários indesejados em torno de zero, que tem a sua morosidade.
A economia neoclássica, com o absurdo habitual, assume que o equilíbrio é instantâneo e permanente e a tradição keynesiana geralmente oferece a si própria o luxo de ignorar o problema.
Receio bem que discordaríamos muito mais quanto à ficção da taxa de câmbio natural da economia, se por isso se entender a que equilibra o comércio externo, com um saldo nulo, que nem sequer valor normativo tem, dado os fundamentos em que assenta (a irrealista teoria ricardiana das vantagens comparativas) e o flagrante desmentido empírico da persistência, longa persistência, dos défices (e inversamente dos excedentes) comerciais no mundo, seja em países que adotaram uma moeda comum, seja em países que têm moeda própria, qualquer que seja o regime de câmbio.
Não obstante, apesar das prováveis diferenças de análise, concordo com o absurdo, e a violência para a economia portuguesa, que significa manter uma moeda fundamentalmente ajustada, ao longo do tempo, à capacidade produtiva e exportadora, aos níveis de produtividade e ao perfil comercial, de países como a Alemanha.
HM
Mas o que tem o Euro a ver com os desequilíbrios macroeconómicos portugueses? Eles existiam tanto no tempo do padrão ouro como no das flutuações cambiais.
As formas de lidar com o problema estão todas fora dessas limitadas quatro. Desvalorizar a moeda leva ao Zimbabwe e no futuro à adopção unilateral do Euro ou Dólar ou qualquer outra moeda estável. Se as importações estão elevadas há é que aumentar as exportações. Estagnação económica é o resultado de défices orçamentais continuados. Défices orçamentais continuados não são resultado de opções cambiais mas sim de opções de gastar mais do que se angaria.
A continuada insistência em culpabilizar outros só desvia a atenção do verdadeiro problema, o da economia e administração portuguesas serem pouco eficientes e competitivas. Isso é que é preciso resolver.
No meu comentário acima, quando me referi à poupança do setor privado, especifiquei entre parêntesis que se tratava do rendimento disponível (isto é, após os impostos) das famílias e das empresas "menos o consumo", mas deveria ter dito "menos as suas despesas", de consumo e investimento.
HM
Caro António Silva, a moeda única é um colete que restringe políticas económicas. Disso não deve haver dúvidas.
E não vale a pena "chamar o Zimbabwe".
O que é que propõe para aumentar a competitividade da nossa economia? Aumentar as exportações não é uma coisa que dependa muito da nossa vontade...sobretudo a curto prazo.
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