terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Preparados?


Depois do acordo de dia 20 e das medidas apresentadas hoje pelo governo grego, já é mais fácil desenhar alguns cenários sobre o que se irá passar durante os próximos 4 meses. Poder-se-ia dizer que o próximo combate será em Junho mas, se se quiser ser mais exato, o combate será um braço-de-ferro permanente, de baixa-média intensidade, durante os próximos 4 meses.

Antes de mais, o acordo. A Grécia partia para estas negociações com uma fragilidade. A única fonte de poder negocial de que o Estado grego dispunha (e dispõe), a ameaça de incumprimento e ruptura, era, no contexto das negociações, pouco ou nada credível. Por duas razões:

- Em primeiro lugar, o governo grego ainda se está a instalar, a por ordem nos ministérios que o governo anterior sabotou cuidadosamente e a tentar domar o aparelho do Estado grego. Um processo nada fácil, sobretudo quando se dispõe de poucos quadro com experiência governativa.

- Em segundo lugar, este governo foi eleito com um claro mandato: romper com a política de austeridade, mantendo o país no euro. Uma quadratura do círculo, dizem muitos, e as instituições europeias parecem querer dar-lhes razão. Mas é esse o mandato do governo e, assim sendo, o cenário da saída só poderia ser explorado em face da evidência da inviabilidade de uma “saída por dentro”.

Perante isto, o governo enfrentou estas negociações com fortíssimas restrições financeiras, económicas e políticas. Mesmo assim, a tentativa anterior por parte da Alemanha de proceder a uma pura extensão do memorando de entendimento foi recusada e acabou por sair da mesa em benefício deste acordo. O saldo é um documento críptico, ao bom estilo das instituições europeias, cheio de ambiguidades e silêncios habilidosos. Desse documento resultam vitórias e derrotas de parte a parte e alguns empates. Os empates são as partes pura e simplesmente imperceptíveis.

O governo grego fez neste processo várias concessões, nomeadamente o facto de o empréstimo ter passado a ser de 4 meses e condicionado à aprovação prévia das medidas a aplicar. Ao mesmo tempo, o Governo grego compromete-se a não reverter medidas aprovadas no âmbito do programa de ajustamento, embora haja excepções neste domínio. O acordo admite a flexibilização da meta do excedente primário, mas apenas para 2015.

Por outro lado, os gregos conseguiram desativar o acordo deixado por Samaras e pelo Eurogrupo para o corte das pensões e o aumento do IVA. O BCE irá desbloquear os lucros obtidos com a dívida grega, que ascendem a 1,9 mil milhões de euros, cerca de 1% do PIB grego. Apesar da regra de não-reversão das medidas do anterior governo, o governo grego irá reintegrar 2100 funcionários públicos ilegalmente despedidos e proceder a um aumento faseado do salário mínimo.

As medidas apresentadas pelo governo grego (e, presume-se, previamente acordadas com quem interessa) apontam para o fim das medidas de austeridade e incluem algumas medidas com impacto na receita fiscal (na maior parte dos casos, não imediato), bem como medidas que poderão constituir um pequeno estímulo económico. A lista é dominada por medidas de baixo ou nenhum custo mas, ao mesmo tempo, o governo grego reclama para si próprio áreas de soberania no plano de salários, pensões e investimento. As instituições europeias terão, obviamente, outras ideias.

O empréstimo só será concretizado em Abril. Adivinha-se até lá muita guerra de bastidores. O governo grego tentará esticar a corda das políticas de estímulo económico, a Alemanha tentará limitá-las ao máximo. Apesar disso, e ao contrário de muitos aqui e na Grécia, penso que o governo grego conseguiu condições aceitáveis para os próximos meses. Se este programa for implementado, a Grécia ganhará alguma margem de manobra orçamental e poderá até ter algum crescimento, embora sem criação relevante de emprego. E responderá diretamente ao desespero de centenas de milhares de famílias, o que só poderá aumentar a sua base de apoio político.

A questão decisiva é qual é que será a atitude do governo grego nas negociações de Junho, essas sim, absolutamente decisivas. O presente acordo não fecha a porta, mas também não diz nada de concreto sobre reestruturação da dívida. Por outro lado, a flexibilização do excedente primário é apenas para 2015, o que faz adivinhar um novo confronto a esse nível para os anos seguintes. Se a estratégia de ganhar tempo serve para este pequeno prolongamento e para uma resposta de curto prazo à emergência social, em Junho a discussão será outra. Tratar-se-á de saber se o novo Governo consegue impor soluções para os problemas estruturais e aí já não vai ser só uma questão de tempo.

Ou seja, a próxima vai ser pior. O que significa que o governo terá de trabalhar em várias frentes. Por um lado, terá de empurrar ao máximo os limites deste acordo para chegar nas melhores condições possíveis (económicas, sociais e políticas) às negociações de Junho. Por outro lado, terá de preparar um pacote negocial sólido para apresentar nesse contexto, que lhe permita assegurar um apoio popular esmagador e responder a sério aos problemas da sua economia. Finalmente, terá de preparar metódica e afincadamente um cenário de saída do Euro.

Este último elemento é decisivo. A questão da saída do Euro não é um debate sobre possibilidades longínquas. Podia ter acontecido agora, pode acontecer em Junho, pode até acontecer entretanto, se as interferências das instituições europeias se mantiverem e agravarem. Num cenário de radicalização dessas negociações, um governo grego que não esteja preparado para incumprir e sair no dia seguinte é um governo desarmado. E se há alguma coisa de que as atuais instituições europeias e a Alemanha já deram provas é da sua espetacular insensatez. A Grécia precisa de um Governo que "esteja à altura do que lhe acontecer". O que quer que isso seja.

11 comentários:

João disse...

José Gusmão, concordo sobretudo com o seu último parágrafo. Não porque esteja propriamente em frontal desacordo ou oposição com o restante do que escreve, mas sobretudo porque não acredito - e aqui a questão não é de fé, mas de apreciação dos factos políticos, que são o vector determinante de análise que tem de ser utilizado - que não há saída por dentro, como lhe chama. O projecto de integração europeia é, inequivocamente, um projecto de integração e expansão capitalista. E o capitalismo não é reformável, como o provam até à saciedade, todas as experiências e arranjos que vêm já desde finais do séc. XVIII, para só considerar a sua fase industrial. E, não sendo o capitalismo um sistema reformável, também, no espaço europeu (que não apenas da zona Euro), não o serão as exigências orçamentais, pilar indispensável de sustentação da moeda única que é um dos seus elementos determinantes e não apenas no plano económico-financeiro. Por isso, importa cada vez mais reunir forças capazes de levarem ao poder governos preparados para tudo em matéria das rupturas que indica, os mesmos que (também subscrevo sem reservas) gozarão do respaldo do apoio popular que lhes permitirão promover a mudança de paradigma que é, a cada dia que passa, uma urgência maior.

Joaquim Tavares de Moura disse...

O José Gusmão escreve que a Grécia "terá de preparar metódica e afincadamente um cenário de saída do Euro". Outros aqui neste blog, já escreveram coisas semelhantes defendendo "uma saída ordenada do Euro"-
Sejamos claros. A saída do Euro não é uma opção para o actual governo grego. Como disse, recentemente, Varoufakis ao The Guardian:
“It’s one thing to say you shouldn’t have gotten into the euro, it’s quite another to say you should get out of the euro. If we backtrack, we fall off a cliff. This is my argument to everyone.” Europe, he insists, is stuck with Greece because Athens is never going to ask to leave the euro."
Sejamos claros, como Varoufakis já explicou, detalhadamente, não existe nenhuma "saída ordenada do Euro". Para lançar uma nova moeda são tecnicamente precisos quatro (4) mêses. Mal se soubesse que o governo grego estava a trabalhar nesse cenário (e seria no dia seguinte), o José Gusmão consegue imaginar o que se iria seguir? Por mais medidas de controle de capitais que fossem implementadas não é dificil imaginar que iria haver uma corrida desenfreada aos bancos. Nenhum governo seria capaz de gerir a situação provocada pelo simples anúncio dessa medida. Como diz o Varoufakis seria uma "queda no precipício".
Todos podemos defender o que muito bem entendermos. Mas gostava que os que defendem que tal medida seja ponderada explicassem como se pode implementá-la sem criar o caos e sem custos incalculáveis para os gregos.
Tem a palavra o José Gusmão, o Jorge Bateira e todos os demais.

Anónimo disse...

Que o governo grego negociava em posição de fragilidade é uma evidência a que fecharam os olhos todos os que, até à semana passada, vaticinavam uma gravíssima crise imediata com a União Europeia, incluindo a saída do euro, com base no pressuposto de que aquele não cederia.

E, no entanto, como seria de esperar quanto mais não seja por essa grande posição de fragilidade, cedeu. Cedeu porque, neste acordo, abdicou no fundamental da rutura com a austeridade e com a troika (perdão, das instituições). A rutura que, com algumas fanfarronadas desnecessárias à mistura, anteriormente tanto exaltara.

A leitura que se faz no post é demasiado benigna. Basta confrontar o programa eleitoral ou os anúncios do recém-eleito governo Syriza e a listagem das reformas que propõe agora.

Dois exemplos importantes, entre vários outros.

Primeiro era o cancelamento, senão mesmo a anulação, das privatizações. Agora é o compromisso de não reverter privatizações, de prosseguir as que já foram lançadas e de rever as que ainda não o foram, mas para obter melhores condições.

Primeiro era simplesmente a elevação do salário mínimo para 751€, dos atuais 586€. Agora é uma longa paráfrase: “o alcance e oportunidade das alterações ao salário mínimo serão feitos em consulta com os parceiros sociais e as instituições europeias e internacionais, incluindo a OIT, e levando plenamente em conta o parecer de um novo organismo independente de se as alterações nos salários estão em linha com a evolução da produtividade e a competitividade”.

[Ufa! Note-se também a referência às instituições europeias e confronte-se com a ingénua observação do post sobre a “área de soberania” do governo no plano dos salários.]

A assinatura deste acordo seria um mal menor se o governo Syriza extraísse a grande lição de tudo isto, que para vencer a austeridade e não mantê-la, ou na melhor das hipóteses aliviá-la um pouco, e sobretudo que para recuperar e desenvolver o país, é necessário romper com a União Económica e Monetária e voltar a emitir moeda própria.

Não estava no programa eleitoral? Pois não, mas o prosseguimento no essencial da austeridade ainda estava menos.

É a tal quadratura do círculo, ou uma ou outra. Trabalhe-se com a população, apresente-se-lhe com clareza as alternativas, decida-se com ela.

Em vez de adiar o problema, provavelmente para ser de novo confrontado com ele em condições ainda piores, como começam a mostrar os inquietantes sinais de quebra das receitas fiscais, aproveite-se este tempo que (na mais benevolente das perspetivas) se ganhou para começar a resolvê-lo.

Francisco disse...

"Apesar da regra de não-reversão das medidas do anterior governo, o governo grego irá reintegrar 2100 funcionários públicos ilegalmente despedidos"

Onde é que isto está definido no documento acordado? E sobre as privatizações que são afinal para avançar, nem uma palavra?

Esta nova fase da Crise "Grega/Europeia" tem a grande virtude (entre outras) de ir fazendo o debate à Esquerda avançar. Uma questão onde estamos à beira de passar o "cabo das tormentas" é o Euro. Neste momento, qualquer pessoa ou instituição, que de forma honesta queira romper com a "austeridade/neo-liberalismo" assume que a questão da saída não pode ser um tabú e tem de ser posta em cima da mesa.

Outra questão, mais directamente relacionada com a realidade Grega, onde neste blog ainda não se disse uma palavra é sobre o papel dos movimentos de massas. É aí que está o busílis de toda a questão. Parece-me mais que óbvia que a tendência destas negociações é o recuo das posições do governo Grego. Ou seja, tudo o resto sendo igual, cada dia que passa o Governo Grego irá ceder cada vez mais, em cada discussão mais detalhada, em cada novo documento haverá sempre uma nova cedência. A única forma de impedir que isso aconteça é se emergir um movimento independente da direcção do Syriza, não necessariamente oposto ao governo, mas também não capturado pelo governo, que pressione no sentido inverso da Troika.

Sem a emergência desse movimento o que irá acontecer é mais do que previsível. A total "Hollandização" do Tsipras e do Syriza.

João disse...

O Francisco e o anónimo que o antecede chamam à colação dois aspectos nucleares do problema. Sobre o primeiro (permanência na UEM), já expressei a minha opinião; Sobre o segundo, afirmo agora que não tenho nenhuma dúvida de que será a mobilização e o envolvimento das massas (agora como dantes e lá como noutro lugar qualquer), a determinar o rumo da História. No caso Grego, a questão é tão mais pungente quanto é certo que a uma hipotética "Hollandização" do Syriza, se segue um escancarar de portas à extrema-direita do Aurora Dourada, como de resto em França, os sucessivos governos alternadeiros (expressão deliciosa de que aqui abusivamente me aproprio) propiciam que segundo sondagens destes dias, a FN de M. Le Penn tenha perspectiva de vitória em todos os próximos actos eleitorais.

Anónimo disse...

"A Grécia partia para estas negociações com uma fragilidade"
Tem a certeza?
Quem ouviu os dirigentes gregos nas últimas semanas sabe que não é assim. A Grécia não é um capacho da Alemanha, é uma nação soberana, e por isso tem toda a liberdade para tomar todas as decisões que bem entender.

Anónimo disse...

O governo grego não foi a negociações sem responsabilidade, presumo!
Não é qualquer governo e qualquer ministro que, logo após ser eleito, e tomado posse, enfrenta com galhardia um papão chamado Troika.
Quem faz estremecer as estruturas petrificadas dos governos da U.M.E. tem de ser, por isso mesmo, forte e conhecedor das tramas que possa a vir enfrentar.
Quem vai negociar tem de estar munido e municiado de perspectivas técnicas, científicas e sociais, e, e, e acredito que os gregos me vão dar mais umas alegrias.
De Adelino Silva

Anónimo disse...

O governo grego não foi a negociações sem responsabilidade, presumo!
Não é qualquer governo e qualquer ministro que, logo após ser eleito, e tomado posse, enfrenta com galhardia um papão chamado Troika.
Quem faz estremecer as estruturas petrificadas dos governos da U.M.E. tem de ser, por isso mesmo, forte e conhecedor das tramas que possa a vir enfrentar.
Quem vai negociar tem de estar munido e municiado de perspectivas técnicas, científicas e sociais, e, e, e acredito que os gregos me vão dar mais umas alegrias.
De Adelino Silva

Argala disse...

"Onde é que isto está definido no documento acordado?"

Não só não está, como está exactamente o contrário.

A capitulação do Syriza poderá ter efeitos muito graves para as eleições no estado espanhol, e colocam ao movimento operário duas questões: a UE e o poder. Abrir a pestana, estudar história e não estar sempre a cometer os mesmos erros, nem a alimentar as mesmas ilusões.

Não há nada de substancialmente diferente na relação de forças que se possa alterar até junho, a não ser um 'plano z' grego, cozinhado na sombra, para a introdução do drachma depois de umas férias bancárias, assim como um plano de reorganização brusca das relações comerciais, com Rússia e China a servir de estabilizadores. Ou é isto, ou o Syriza vai apenas de capitulação em capitulação até se desintegrar nos diversos grupos que lhe deram origem.

Parece que a louca voltou à carga, com mais um texto europeísta: "Porque em última análise, é sempre a democracia que está a ser julgada: podemos decidir? Somos donos de nós próprios?". Por favor acendam-lhe uma velinha..

http://www.sharenet.co.za/news/Greek_finance_ministers_letter_to_the_Eurogroup/a5355a49a2cef5f13135e5825046336e

Cumprimentos

septuagenário disse...

4 meses de vida para um povo que é GREGO há milénios, é de rir até às lágrimas.

Rir para não chorar, ao estado que chegou esta Europa caduca!

Anónimo disse...

J.Gusmão....Concordo com quase tudo o que dizes mas...a Grécia sair do euro e ficar na UE? Penso que esta será a última cartada do Siryza, se nos empurram do euro saímos da UE!!!...e a NATO??? Aí é que o caldo vai entornar. Obama já segredou aos tecnocratas europeus ....cuidem-se, problemas já os tenho na Síria, no Iraque, na Turquia, na Líbia, no Afeganistão, na Ucrânia e agora vcs a arranjarem mais um. Nem pensem ou vcs resolvem isso a bem ou a colónia grega nos USA (eufemismo) vai ajudar a Grécia. Tens toda a razão....o pior está para vir.... mas honra aos gregos que tiveram a coragem de dizer NÃO