terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

O syriza e o luto da direita


Negação, raiva, negociação. A direita tem reagido à vitória do Syriza com o atordoamento de quem faz um luto. É o luto pela sua própria hegemonia, enfim contestada.

O que ainda há pouco tempo parecia impossível aconteceu. O Syriza ganhou mesmo as eleições gregas, formou mesmo governo e começou mesmo a aplicar o seu programa. As medidas anunciadas nos primeiros dias quiseram-se simbólicas: congelamento das privatizações; recusa de negociação com os emissários técnicos da troika; aumento do salário mínimo; remoção das barreiras de segurança à frente do Parlamento; concessão de nacionalidade grega aos filhos de imigrantes nascidos na Grécia; reposição do 13º mês das pensões abaixo de 700€; reposição das pensões mínimas para os camponeses que não descontaram ao longo da vida; eliminação da taxa de 1€ sobre as receitas médicas; reintegração gradual dos funcionários públicos despedidos, especialmente nas escolas e universidades.

Do ponto de vista macroeconómico, o que o novo governo grego tem anunciado como posição negocial (saldos primários equilibrados ou até ligeiramente positivos, serviço da dívida em função do crescimento da economia) não tem nada de radical, como aliás muitos comentadores têm referido. É um mínimo de bom senso. Os enormes cortes na despesa pública levados a cabo nos últimos anos provocaram uma tal contracção da economia que o fardo da dívida pública não parou de aumentar: andava pelos 125% do PIB em 2010, quando tiveram início os programas de austeridade, anda actualmente pelos 175%. Não apesar da austeridade, mas por causa dela.


Neste plano, o governo grego não pretende mais do que o fim da insistência num absurdo: a imposição ao longo das próximas décadas de superávites primários constantes num país com uma economia deprimida e uma sociedade devastada. Uso o termo devastada com propriedade: trata-se de um país em que, entre 2008 e 2013, a percentagem da população em situação de privação material grave aumentou de 11,2% para 20,3% (em Portugal também aumentou, mas de 9,7% para 10,9%) e em que a austeridade deixou um milhão de pessoas sem acesso a cuidados de saúde, fazendo disparar a taxa de mortalidade infantil. É disto que falamos quando falamos da Grécia, mesmo que muitos não o saibam ou não o queiram saber.

Mas não é no plano macroeconómico que as propostas do Syriza constituem uma ameaça para as elites europeias. É que a dívida é um instrumento e não um fim. Aquilo que de mais central está em causa não é a dívida e o seu reembolso, mas a sua utilização como instrumento de dominação. O que não pode ser posto em causa do ponto de vista das elites não é o montante da dívida ou o seu calendário de pagamento: a esse nível, como se tem visto nos últimos dias, pode sempre haver cedências. O que não pode ser posto em causa, em contrapartida, são os eixos centrais da dominação: a compressão dos salários e pensões, as "reformas estruturais" no mercado de trabalho, o esvaziamento do Estado social, as privatizações.

Sucede, porém, que é precisamente isso que o novo governo grego ameaça pôr em causa. E é precisamente por isso que, pela Europa fora como em Portugal, a direita e os seus porta-vozes - os intelectuais públicos dos grupos dominantes - não suportam o Syriza e o que ele representa, e têm reagido à sua subida ao poder na Grécia com o choque e atordoamento com que se faz um luto ou reage a uma tragédia.

Primeiro foi a negação, a construção de uma realidade fantasiosa mas mais suportável. O Syriza está mais moderado, já não é o que era há dois anos. A sua retórica é meramente simbólica. Tsipras não passa de um novo Hollande. Em todo o caso, só ganharam devido à desorientação do eleitorado.

Em seguida, a raiva desorientada. Não tiveram mais que 36% e a abstenção foi superior. Aliaram-se à extrema-direita, vêem? Não têm mulheres no executivo, tão progressistas que eles são. Tsipras não merece respeito: chamou Ernesto ao filho.

E depois a negociação, à medida que a nova realidade começa aos poucos a ser aceite como inevitável, ainda que não na plenitude das suas implicações: Muito bem, podemos até acabar com a troika. Ceda-se nos juros, nos prazos e, quem sabe?, até mesmo no montante total da dívida. Desde que o Sr. Tsipras deixe cair o seu socialismo lunático, claro está.

Negação, raiva, negociação. Que luto é este que as elites europeias e os seus porta-vozes estão a fazer?

É o luto pela sua própria hegemonia no momento em que esta começa a ser seriamente contestada. Habituadas nas últimas décadas a uma História de sentido único, à constitucionalização das suas estruturas de dominação nos tratados europeus, à irrelevância das escolhas democráticas, ao sucesso na persuasão da maioria de que "não há alternativa", as elites reagem agora em choque perante a constatação de que a sua capacidade de produção de consensos em torno da sua própria dominação não é absoluta ou eterna e começa afinal a ser contestada. Há alternativas, que não só reúnem apoio popular crescente como até já começam a conquistar o poder.

Entendamo-nos, pois: a direita não podia estar menos preocupada com a participação da suposta 'extrema-direita' no governo grego ou com o número de mulheres no novo executivo. E também não está preocupada com as políticas do Syriza por achar que são melhores ou piores para os gregos, cujo bem-estar seguramente não lhe rouba o sono. Aliás, as elites europeias nem sequer estão preocupadas com o Syriza por causa do receio de sofrerem maiores ou menores perdas enquanto credores de uma dívida que em termos europeus representa pouco e que, em qualquer dos casos, todos sabem que não será reembolsada.

A direita está preocupada, isso sim, porque o governo grego é o primeiro a confrontar directamente os mecanismos de subjugação a que tem vindo a ser sujeito o seu povo e porque o seu exemplo tem um enorme potencial de alastramento. Não é por acaso que a maior hostilidade em relação às propostas europeias do governo grego provém precisamente das elites e governos servis de Portugal e Espanha, que estão precisamente na linha da frente desse potencial de alastramento. O novo governo grego tem de fracassar, custe o que custar, não vá dar-se o caso de mostrar às pessoas que é possível governar com elas e para elas em vez de contra elas.

É isto que está neste momento em causa na Grécia e na Europa - e é por isto que espero que o governo grego não tenha ilusões ingénuas sobre nobres ideais europeus que transcendam os interesses de classe. Pelo contrário: espero que o optimismo da disponibilidade para soluções cooperativas que os governantes gregos têm manifestado nos últimos dias se faça acompanhar, pelo menos em privado, pelo pessimismo racional da preparação dos cenários de confronto. Varoufakis é, entre outras coisas, especialista em teoria dos jogos: saberá por isso com certeza que não deve esperar que as elites europeias contribuam voluntariamente para minar as bases da sua própria dominação.

(publicado originalmente no Expresso online em 04/02/2015)

13 comentários:

Anónimo disse...

Excelente post!

'Aquilo que de mais central está em causa não é a dívida e o seu reembolso, mas a sua utilização como instrumento de dominação' - Esta é a essencia da dívida e é isto que os cidadãos da europa e do mundo precisam de entender.

Tenho esperança que o Syriza faça desaparecer a densa cortina de fumo que oculta a realidade, e mostrar que tudo não passa de uma guerra de classes.
É possivel retirar uma carta da base da pirâmide e faze-la desmoronar. Mas há que ser cauteloso quanto a julgamentos, pois quem domina não quer perder a posição. Vejo a situação grega com muita cautela mas também com esperança.

JF

Jose disse...

Quem se pode atordoar é uma social-democracia que gosta de se dar ares de Syriza quando sabe que é o caminho da direita que está a ser construído.
Mas atordoado ou não quem vai cair é a parvoeira grega, e quanto mais depressa melhor.

Luís Palma Gomes disse...

Apoiado.

Os politólogos de direita só pensam em bancos e mercados e ficam nervosos com estas mudanças. Eles não estão habituados a comentar política verdadeira, mas a política de "diretores gerais". Aqueles que como escreveu Lampeduza: "Que algo tem de mudar para que tudo continue na mesma".

Unknown disse...

Não é avisado fazer disso um campeonato. A vida das pessoas merece que se seja mais fino e que se defenda com animo mas prudencia as ideias legitimas que se tenha. Acho que o perigo da vida dos gregos terminar em maior tragédia do que já está é grande demais para tanto entusiasmo antecipado.
Fazer conta que os "outros" desejam o mal é redutor demais para ser sério.

Anónimo disse...

não se pode arriscar tanto. é preciso chegar a um mal menor para os gregos. o dimar - congenere da tempo de avançar na grécia - defende que é importante chegar a consensos. é irrealista pensar que se pode mudar tudo de uma só vez. aliás, o próprio daniel oliveira refere isso num post seu muito importante.

Anónimo disse...

"Grécia vai (afinal) avançar com a privatização do porto de Pireu"
http://observador.pt/2015/02/10/grecia-vai-afinal-avancar-com-privatizacao-porto-de-pireu/

e-ko disse...

dívida, credores, abafadores, denunciadores e outros pensadores:

http://www.voxeurop.eu/fr/content/article/2977791-pourquoi-j-ai-publie-la-liste-lagarde

http://blogs.mediapart.fr/blog/cadtm/100215/swiss-leaks-hsbc-une-banque-au-lourd-passe-et-au-present-sulfureux

http://blogs.mediapart.fr/blog/cadtm/070115/thomas-piketty-et-la-dette-publique

a direita que se cuide e que se cure!...

Anónimo disse...

A vitória do Syriza nas eleições gregas é uma esperança para os povos dos países da Europa do Sul.
O Governo de direita radical que governa o nosso País acolheu essa vitória com uma grande hostilidade, como já seria de esperar.Trata-se de um Governo de colaboração total com os países dominantes da UE, e com os seus instrumentos de dominação,o BCE ,o FMI e a eurocracia de Bruxelas.

vernon disse...

Excelente post.

Alexandre Abreu enuncia bem os instrumentos de ‘bdsm’ impostos pela Alemanha e restante Europa, e aplicados cá e na Grécia pelos executores locais.

O plano de Juncker e as compras de Draghi não passam de leopardos, e o que a UE estará disposta a ceder, para já, não permitem repor e firmar os interesses de classe aqui referidos por A.A. Aliás, as condições para o saque mantêm-se (a menos que). A Grécia tem condições históricas para fazer desequilibrar, dentro e fora, essa relação de interesses.

Jose disse...

Fica bem expresso que o saque é um valor de esquerda e cabe à direita ser solidária.

L. Rodrigues disse...

O Jose devia fazer o exercicio de olhar para as economias do norte e do sul para ver quais é que foram/estão a ser saqueadas.

António Pedro Pereira disse...

Senhor José:
O que fica bem expresso, mais uma vez, é a imbecilidade dos seus reiterados comentários.
Diga lá quantas latas de Pedigree é que o seu dono Passos lhe paga para estar aqui de guarda e latir a cada post que aqui é colocado?
Eu dobro a parada só para você desaparecer e ainda poupa os latidos.

vernon disse...

A vitória do Syriza deixou os parasitas e preguiçosos locais em alvoroço, enraivecidos e a espumar.

A descompressão e reposição total dos salários e pensões, as "reformas estruturais" no mercado de trabalho deitadas para o caixote do lixo, a recuperação e o fortalecimento do Estado social, o fim das privatizações em curso, e a reversão dos bens públicos e comuns, para o controlo público são interesses de classe, da maioria, que importa repor e firmar.

A intenção patética de sugerir a inversão inverosímil, impossível, recorrendo a exercício ridículo, tem como resultado expressar a aceitação da mesma inversão, com o reconhecimento assumido e consciente da prática de saque organizado por classe minoritária sobre uma maioria imensa, em Portugal e na Grécia.

É também, por essa inversão, finalmente reconhecido pelo pulha que o caminho construído pela classe saqueadora da UE, com o apoio da local, tem na dominação imposta aos povos os instrumentos para se apropriarem dos interesses da maioria, e da qual dependem para se alimentarem como parasitas que são. A encenada caridade (gestão de stocks e outros artifícios) é também um instrumento de dominação, da dependência imposta pela classe parasitadora.