quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Quando a corrupção é tão visível

Álvaro Santos Pereira, ex-ministro de Passos Coelho, no seu mais recente livro em que fala da sua experiência como ministro da Economia e do que não é politicamente correcto, nomeadamente a ideia de que o PAEF (Programa de Assistência Económica e Financeira) é tão ineficaz como perverso:

Berlim e outro caso de uma moeda unificada
1) "Eu próprio tive alguns colegas de Governos europeus a relembrarem-me ser importante não nos esquecermos da solidariedade que tínhamos recebido da Europa, solidariedade que devia ser reconhecida nos processos de privatização."
(Claro, a face perversa dos PAEF é precisamente a venda ao desbarato de activos nacionais, vidé casos como EDP, REN, cedência da golden share na PT, e TAP na calha).

2) “Outro dos dossiês que fui aconselhado por muita gente a deixar de lado foi o das contrapartidas militares. Porquê? Porque o tema das contrapartidas foi sempre bastante controverso, envolvendo inúmeras suspeitas e acusações de corrupção e de financiamento partidário. Por isso, para muitos, esse era um assunto era proibi­do.
(Como está o inquérito criminal? Houve corruptor, mas não corruptos?)

3) "um dos membros da minha equipa foi abordado por um representante dos produtores da energia lhe disse que como sabia que estávamos muito ocupados e não tínhamos recursos, eles próprios poderiam fazer as transposições de directivas e que depois nos entregariam as leis para fazermos o que entendêssemos. Pelo que parece isso já tinha acontecido no passado."
(Veja-se Código do Trabalho, 2003. As tais gorduras orçamentais que se perpetuam).

4) "É igualmente fundamental que uma estratégia anticorrupção seja proposta e consensualizada entre os principais partidos portugueses, de forma a acabar com os com­portamentos menos transparentes, por vezes altamente lesivos do interesse público."
(Não se importa de elaborar mais sobre o que se passa? Talvez o MP o queira ouvir...).

5) "Não é com os programas de ajustamento actuais que vamos lá (...) Como poderá ser resolvido todo este elevadíssimo endividamento? Sinceramente, penso que a crise da dívida europeia só será resolvida com um reescalonamento a longo prazo da dívida dos países europeus mais endividados.
(Pois, mas quem foi que abraçou a camisola dos PAEF...?)

Ranking de escolas: três perguntas simples


1. Por que continua o Ministério da Educação e Ciência a não exigir, aos colégios e demais escolas do ensino particular e cooperativo, informação de natureza socioeconómica sobre os alunos que as frequentam (nível de escolaridade dos país e percentagem de alunos beneficiários de Acção Social Escolar, por exemplo), à semelhança do que sucede com os estabelecimentos de ensino básico e secundário do sistema público de educação?
Como concilia o ministro Nuno Crato esta duplicidade de critérios com a proclamação e defesa de uma concepção una e abrangente de sistema educativo, que não diferencia o público do privado na relação com o Estado, ao qual caberia unicamente assegurar o cumprimento do direito à Educação, no matter how?

2. Por que continuam os órgãos de comunicação social a elaborar rankings que misturam, de forma superficial e leviana, resultados de escolas públicas e do ensino privado, quando toda a gente sabe que o principal factor explicativo das hierarquias obtidas decorre das diferenças de contexto socioeconómico, não sendo por isso sério nem credível elencar estabelecimentos de ensino a partir da simples arrumação de resultados dos exames?
Não deveriam os meios de comunicação social que se dedicam a estes exercícios (e unidades de investigação que se lhes associam) recusar-se a produzir rankings conjuntos (com escolas públicas e privadas), até que o Ministério da Educação se digne assegurar a disponibilização de dados que permitam calibrar adequadamente, para os dois sistemas, os resultados nos exames com os dados de caracterização da origem socioeconómica dos alunos?

3. Que explicação minimamente aceitável tem Nuno Crato para justificar que as bases de dados com os resultados dos exames (e respectiva informação complementar), fornecidas aos órgãos de comunicação social, não se encontrem disponíveis online (na página do MEC ou da DGEEC, por exemplo), de modo a permitir que quaisquer investigadores, unidades de investigação ou simples cidadãos a elas possam ter acesso, não ficando assim dependentes das análises e exercícios de construção de rankings efectuados pelos órgãos de comunicação social?

Há uma resposta relativamente simples para estas três questões: é que o segredo, deliberado ou cúmplice, é parte integrante da alma dos negócios privados em Educação.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

A economia política também é um desporto de combate*

1. Usando como pretexto o lançamento do livro A Economia Política do Retrocesso, José Reis, Miguel Cadilhe e Nuno Teles tentarão responder amanhã à pergunta: “Da instabilidade bancária ao risco do colapso?”. O debate será na sede do Montepio Geral em Lisboa às 18h30m. Mais detalhes aqui. O ponto de partida deste debate é o livro, em geral, e um dos seus capítulos, que se debruça sobre as origens europeias do processo de financeirização nacional, escrito por José Reis, Ana Santos, Nuno Teles e por mim, prolongando e aprofundando reflexões que temos desenvolvido sobre estes e outros temas de economia política (ver aqui, aqui ou aqui).


2. Entretanto, também amanhã, mas em Coimbra, estarei a debater com outros, pelas 21h30, um livro absolutamente notável, precedido de leitura pública de excertos. Chama-se Tempos Difíceis e é uma compilação de artigos que têm saído mensalmente no Le Monde Diplomatique – edição portuguesa numa série com este nome. Tratou-se de dar voz aos que não têm voz, de histórias de vida e de trabalho recolhidas por quem sabe ouvir o outro num tempo cada vez difícil por causa, defenderei eu, da tal economia política do retrocesso. É um tempo cada vez mais difícil em concreto para a “manipuladora de aves”, para a operária têxtil com 55 anos, para o jovem professor precário numa escola “difícil”, para o habitante do bairro que não é elegante, para os de baixo. Graças a vários sociólogos e antropólogos empenhados e competentes, os últimos desta economia política são neste livro os primeiros.


*A sociologia, garantiu-nos Pierre Bourdieu, é um “desporto de combate”

O desafio de António Costa às esquerdas portuguesas

No discurso de encerramento do XX Congresso do PS, confirmou-se que António Costa quer apresentar-se aos eleitores como líder de um partido de esquerda.

Já não está apenas em causa a defesa do Estado Social, que sempre fez parte da agenda dos socialistas – independentemente de como esta foi sendo, na prática, interpretada pelos sucessivos governos em que marcaram presença. O discurso de Costa foi mais além do que as lideranças do PS nos habituaram, seja em questões de valores (como a adopção por casais do mesmo sexo) ou na postura em relação à Europa (como na referência crítica à união monetária).

O líder socialista não se limitou a desafiar o espaço de afirmação programática dos partidos à sua esquerda: António Costa desafiou-os a “sair do conforto do protesto” e a serem “parte da solução”.

PCP e Bloco de Esquerda reagiram mal ao desafio – e têm bons motivos para isso. Em primeiro lugar, porque a esquerda não pode menorizar o papel do protesto. Mesmo em contextos históricos em que a esquerda governa, ter um forte movimento social disponível para o protesto em defesa dos interesses gerais da população constitui uma defesa fundamental contra as múltiplas pressões a que qualquer governo está sujeito e que têm pouco a ver com a defesa do bem comum. Isto é ainda mais importante num contexto em que países como Portugal enfrentam uma chantagem sem precedentes das instituições europeias, as quais vêm como única saída para a situação actual a delapidação do Estado Social, a perda de direitos sociais e laborais, e a contínua degradação de salários e pensões. Dado este contexto externo, PCP e BE afirmam não ver qual “a solução” de que deveriam estar disponíveis para fazer parte em conjunto com o PS.

Dito isto, o desafio de António Costa não deixa de ser politicamente eficaz. Por muito que se reveja nos diagnósticos que a esquerda vem fazendo, a maioria das pessoas anseia por respostas. Quando PCP e BE afirmam que não há soluções com o PS, estão apenas a dizer a quem os ouve que não há soluções à vista. Face a isto, restam duas possibilidades a grande parte dos eleitores: ou desistem de votar, ou votam no mal menor.

No entanto, o desafio lançado por António Costa é também, necessariamente, um desafio às próprias fileiras socialistas. A partir do momento que o líder socialista sugere que as pressões europeias inviabilizam o desenvolvimento do país, as pessoas querem saber o que pretende o PS fazer em relação a isso. Por outras palavras, Costa expõe-se ainda mais à crítica da falta de clareza sobre as soluções que preconiza. E também desafia o PS a analisar criticamente as opções políticas que fez ao longo das últimas décadas.

O desafio maior, porém, é dirigido a todas as pessoas que se revêm nos princípios de uma sociedade decente e que não desistem de procurar as melhores soluções, sem se resignarem perante a força das pressões externas. A estratégia de António Costa tem a vantagem de tornar mais claro que Portugal e os portugueses vão enfrentar no futuro próximo escolhas muito difíceis. Cabe-nos a todos, enquanto cidadãos, ajudar as explicitar essas escolhas e as suas implicações – e tomar decisões sobre os riscos que estamos ou não dispostos a assumir.

Estes ainda podem vir a ser tempos interessantes.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

O motor mudou mesmo?

O primeiro-ministro deu uma entrevista à RTP na passada quinta-feira. Digo "deu" porque, de facto, não houve muito contraditório consistente. E houve várias afirmações de Pedro Passos Coelho que mereciam contestação. Uma delas foi:

"O modelo económico que era prosseguido até à intervenção externa era um modelo gerador de desemprego. E nós temos de mudar o paradigma de crescimento em Portugal (...) E penso que já estamos a inverter isso" (ver, ao minuto 42:40).

Na verdade, o primeiro-ministro acabou por não elaborar muito sobre esse novo modelo. Mas supõe-se que a ideia seja a repetida longamente pelo Governo e que pretende mostrar que, afinal, estão aí os resultados da austeridade virtuosa, que visou alterar o défice de competitividade da economia portuguesa e prepará-la para os enormes desafios da globalização. Algo assim:


O gráfico representa a variação homóloga (em valor nominal) das várias componentes do PIB.

Leitura oficial: a contração da procura interna fez cair as importações, acabou por criar um superávite comercial que puxou para cima o PIB, o investimento, e com ele o emprego e o consumo privado.

Mas é um pouco mais complexo.

Em primeiro lugar, parece haver uma relação entre o crescimento da produção e a procura externa e interna, como é visível no saldo das respostas extremas nos questionários de opinião aos empresários, compilados pelo INE e que dão uma ideia das suas expectativas.


Algo aconteceu no final de 2012 e que marcou o andamento da economia. E esteve relacionado com a procura externa. Foram as nossas mercadorias que se venderam melhor, houve um aumento abrupto da competitividade a ponto de termos conseguido penetrar tão rapidamente nos mercados externos ou foi apenas uma subida da procura externa? Ou foi o aumento da produção de refinaria petrolífera? O certo é que parece ter se reflectido igualmente na procura interna. Foram as pessoas que pouparam menos, depois de um primeiro choque? Foi o Tribunal Constitucional? Era importante analisar melhor esta alteração.


E depois, um pouco depois, já no 2º trimestre de 2013, acabou por se reflectir no andamento do emprego. E teve um comportamento parecido no início de 2014, após uma ligeira inflexão na procura externa e interna.

É "isso" sinal de mudança de paradigma?

A situação que se vive em 2014 nem tem um perfil distinto da vivida antes da intervenção externa. Veja-se o contributo de cada componente da procura agregada para o crescimento do PIB, estimadas pelo INE, mas desta vez em volume (expurgado o efeito dos preços):

Ou seja, desta vez a recuperação do PIB parece ser explicada, antes, pela subida do consumo privado e do investimento (em menor grau) e que essas componentes acabam por prejudicar aquilo que - para Passos Coelho, Paulo Portas e a direita - seria um sinal de uma retoma mais saudável, com um equilíbrio das contas externas. Em volume, o saldo comercial já é negativo e é explicado pela elevada componente importada do consumo e do investimento. Ou seja, nada parece ter mudado em três anos, desse ponto de vista.

O que fica pelo caminho desta terapia é antes um enorme "exército de reserva" de desempregados e da delapidação do capital fixo (outro bom tema a abordar) que puxa a retribuição salarial para baixo, agrava os efeitos do envelhecimento populacional e com ele da estabilidade das contas da Segurança Social e do próprio âmbito da cobertura do Estado Social. Algo que, por acaso, nem está fora da estratégia da direita em Portugal. Só entre 2011 e 2014 foram destruídos 209,9 mil postos de trabalho, dos quais 42 mil na indústria, 147 mil na construção e 82,4 mil na agricultura. Os serviços criaram 73 mil.

Mas a recente subida do emprego não parece ser um sinal de mudança de paradigma. É mais o regresso ao velho modelo que Passos Coelho tanto condena e que finalmente, e malgré lui, está a respirar melhor. Mas que ainda se constipa quando a procura externa espirra e que se expande e encolhe consoante a procura interna. Será, antes, um sinal de que o Governo mudou de política e nem vê que isso está a acontecer diante dos seus narizes?

A prova é que, quando comparamos a estrutura do emprego por ramos de actividade (ainda que tendo em conta a alteração do inquérito ao emprego a partir de 2011), antes da crise e depois da intervenção externa, não se vêem mudanças significativas.

Veja-se onde estão a ser criados os novos empregos entre o 2º trimestre de 2013 e o 3º trimestre de 2014 (dados coligidos pelo INE, já revistos em 2014):

Por outro lado, quando se analisa as variações homólogas, verifica-se a recuperação dos "velhos" sectores, até dos ligados à construção e dos serviços com ele relacionados.

Estamos a voltar ao "velho" modelo "gerador de desemprego" porque a questão de fundo - a cambial - ainda não foi tratada como deve ser e tem sido omitida sistematicamente.

domingo, 30 de novembro de 2014

E agora?


Agora há um vazio. Partidos políticos que estão no lugar que há muito ocupam embora tenham perdido a confiança de grande parte dos seus apoiantes. Um governo que está a usar a proteção da União Europeia e das suas troikas para transformar a sociedade portuguesa em benefício de uma ínfima minoria.

Agora há uma maioria no poder que nas próximas eleições deverá ser afastada, mas nada de sólido e confiável para a substituir.

Agora queremos diferentes coisas. Coisas contraditórias. Segurança, por um lado. Mudança, por outro. Não queremos correr riscos. Queremos corrê-los para que tudo não fique na mesma. Sabemos que a política não é pêra doce, nem nada que seja sempre bonito de se ver. Não queremos meter-nos na política. Queremos meter-nos porque se não haverá outros (eventualmente os menos recomendáveis) que o farão por nós. Sabemos que a política nesta União Europeia deixou de ser a arte do possível. Sabemos que se não houver quem queira arriscar o (quase) impossível, outros continuarão a fazer o que dizem ser a única possibilidade.

Agora há um vazio político que começa a preencher-se. Vemos nascer novos movimentos políticos, partidos, candidaturas, muitos deles exprimindo sincera vontade de mudança. Vemos gente que se mobiliza e organiza. Alguns trazem consigo experiências anteriores. Outros chegam agora. Concordam, discordam, discutem, unem-se, dividem-se, aprendem. Não são super-homens, nem super-mulheres com estômago para tudo. São frágeis como é normal. Ainda bem que assim é. Talvez haja lugar para muito mais gente nessa política de gente frágil. Dessa forma não ficamos dependentes de heróis com estômago de aço.

sábado, 29 de novembro de 2014

Austeridade, emigração e desemprego

Na linha de declarações como as proferidas há uns meses por Maria Cavaco Silva ou Joaquim Azevedo, Passos Coelho garantiu recentemente ser «falsa» a ideia de que «o desemprego só baixa porque as pessoas emigram», acrescentando que Portugal tem sido um país de emigração desde há muitos anos e que a situação de «hoje não é muito diferente de 2007 ou 2008».

Num ponto o primeiro-ministro tem razão: não é «» a emigração que contribui para gerar a ilusão de que o desemprego está a baixar de forma relevante. Como procurei demonstrar aqui, uma estimativa minimamente consistente dos verdadeiros níveis de desemprego há-de somar, ao número oficial de desempregados, os «desempregados ocupados» e os «desencorajados», bem como as estimativas de «expatriados» (ou seja, da emigração de população activa). O que faz com que a diferença entre os valores de «desemprego oficial» e de «desemprego real» daí resultantes aumente de quatro pontos percentuais (Junho de 2011) para treze pontos percentuais (Setembro de 2014).


Mas concentremo-nos na relação entre emigração e desemprego. De acordo com as estimativas disponíveis mais credíveis, não é verdade - ao contrário do que diz Passos Coelho - que Portugal seja, há muitos anos, um país de emigração. De facto, a inversão mais recente do saldo migratório (segundo o INE), ocorreu apenas em 2011, quando o número de saídas (emigrantes) passou a superar o das entradas (imigrantes), agravando-se desde então até se atingir, em 2013, uma perda líquida de -36 mil pessoas (sendo que o saldo migratório ainda era positivo em 2010, em cerca de 4 mil).

Mas há mais: também não é verdade que a emigração tenha estado a aumentar ao longo dos últimos anos. De facto, o seu valor até diminuiu entre 2007 e 2010 (ano em que se estima tenham saído do país cerca de 70 mil pessoas), para acelerar desde então até às cerca de 110 mil saídas, em 2013. Uma explicação plausível para esta inversão é aliás dada pelo próprio Observatório da Emigração, que associa a descida dos valores, entre 2008 e 2010, aos «impactos da crise financeira global» (não sendo portanto uma originalidade portuguesa, no contexto da União Europeia) e o seu recrudescer, a partir dessa data, à «assimetria da crise das dívidas soberanas na Europa». Tornando pois sobejamente evidente a estreita relação que existe entre fluxos migratórios e políticas de austeridade.


E nem de propósito, uma investigação recente, no âmbito do Projecto «Generation E», vem confirmar o que há muito se suspeita: que os dados oficiais não contam tudo, estimando-se que «o número de jovens que emigraram dos países do Sul da Europa seja o dobro do registado», sobretudo pela falta de assentamentos oficiais das saídas e pelo facto de muitos dos que emigraram (cerca de metade, em diferentes países) não terem alterado a sua residência. A título de exemplo, é referido que «só o número de entradas registadas nos três países com mais imigração portuguesa em 2013 - Reino Unido, Suíça, Alemanha, num total de 55.910 indivíduos - é mais elevado do que aquele que é apontado pelo INE para as saídas permanentes no mesmo ano para todos os destinos (53.786)». Ou seja, um exemplo do que Saskia Sassen designa por «eventos invisíveis».

Mas há ainda um outro dado desta investigação que importa reter. Dos jovens emigrantes portugueses abrangidos pelo estudo, cerca de 86% referenciam as «questões laborais» entre os factores que estiveram na base da decisão por emigrar, o que reforça, novamente, a ideia de que a recente sangria de quadros qualificados é indissociável da escolha, empobrecedora, inútil e fracassada, pelas políticas de austeridade como forma de sair da crise.

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Nobre povo



Tempo de viragem


Portugal enfrenta uma grave conjuntura política que é parte da crise global em que nos encontramos. Em poucos dias, vários altos quadros da administração pública, assim como um ex-primeiro-ministro e pessoas que lhe são próximas, foram detidos e constituídos arguidos de crimes de corrupção e(ou) fuga aos impostos e lavagem de dinheiro. Acresce a escandalosa violação do segredo de justiça, que tem sido explorada pela comunicação social para melhorar o negócio. Isto pouco depois da constituição como arguido do presidente do BES, aquele que passava por ser o "dono disto tudo". Por estes dias, os portugueses tomaram consciência de que o crime de colarinho branco pode ter chegado ao mais alto nível do Estado, em articulação com o sistema financeiro. Agravando a situação, temos o novo líder do PS atingido pelo clima de suspeição associado a José Sócrates, seu apoiante de primeira linha, a que se juntam os fumos de corrupção há muito também perceptíveis no campo político do actual governo. Está em causa a saúde da nossa democracia.

Esta crise da política portuguesa emerge das relações promíscuas entre partidos, Estado e sistema económico financeirizado. Ao contrário do que os neoliberais querem fazer crer, não se trata apenas de delitos criminais e de falhas de regulação a resolver com melhor legislação. É o sistema neoliberal que funciona assim, e hoje só pode funcionar assim. Em Portugal, as políticas agressivamente promovidas por ideias e interesses ligados à finança, não só produziram um enorme desastre social, económico e financeiro como agravaram os problemas estruturais do país. Além do ataque imoral aos rendimentos de funcionários públicos e pensionistas, além da degradação criminosa do Serviço Nacional de Saúde e da escola pública, o neoliberalismo tem destroçado as vidas de centenas de milhares de desempregados, empobrecido a classe média, feito emigrar os seus jovens, delapidado o investimento feito em ciência, congelado o investimento público e privado e desprezado a cultura. O neoliberalismo inscrito nos tratados da UE é uma armadilha mortal para o país, mas os partidos do arco da (des)governação são parte integrante dessa mesma armadilha.

A saída deste desastre não será conduzida por estes partidos, nem pelas elites que prometeram o desenvolvimento do país com a sua participação no "pelotão da frente" da UE. Venderam tranquilamente a nossa soberania a troco de "fundos estruturais", disfarçando o negócio com a retórica da "soberania partilhada" e da Europa "social". Na verdade, foram responsáveis pela desindustrialização do país, o subdesenvolvimento da agricultura, das florestas e das pescas, assim como da desertificação do Interior. O dinheiro fácil comprou a sua submissão à globalização sem freios, facilitou o investimento público sem critério, financiou a especulação imobiliária, deixou em roda livre o sistema financeiro e conduziu o país a um dramático endividamento externo. Os partidos que governaram o país foram, no mínimo, cúmplices do saque dos recursos do Estado. Toleraram a criminalidade económica e fecharam os olhos à pequena e grande corrupção, dentro e fora dos partidos, nas autarquias e no poder central. Pior, contribuíram para a desmoralização geral porque garantem aos cidadãos que, qualquer que seja o partido eleito, no essencial a política será a mesma.

Estes partidos decepcionaram o povo e degradaram a nossa democracia. Portugal precisa de uma proposta inovadora e de novos protagonistas dispostos a recuperar o sentido de serviço público na acção política. Uma proposta que formule um novo horizonte para Portugal: um país soberano, aberto ao mundo, exigente na sua democracia, profundamente solidário, respeitador do ambiente natural, preocupado com a qualidade de vida dos seus cidadãos.

O povo português não se dá por vencido e não baixará os braços enquanto não recuperar o controlo do seu destino. Portugal precisa de uma alternativa, não apenas de alternância. Vivemos um tempo de viragem.

(O meu artigo no jornal i)

Aqui D’El Rei que é preciso investimento (público)


Apesar de ter presidido ao eurogrupo que arrasou a Grécia, Juncker, não empalidece, não cora, não pestaneja, quando diz ao Parlamento Europeu: “Vejo crianças em Tessalónica a entrar numa sala de aula nova em folha, cheia de computadores”.

O mesmo Juncker que em 2010 presidiu ao “aqui D’El Rey que é preciso acabar com o despesismo”, vê, como se só os burros não tivessem visto sempre, a necessidade de um impulso público ao investimento. Tem visões: fala de um novo Fundo Europeu para o Investimento Estratégico capaz de financiar investimento no valor de 315 mil milhões de euros sem gastar um cêntimo que seja de recursos públicos.

Como é que isto é feito? Juncker explica: Pega-se em 8 mil milhões do orçamento comunitário para apoiar uma garantia do tipo “se houver azar a gente paga” de 16 mil milhões, acrescentam-se outros 5 mil milhões do Banco Europeu de Investimento (se calhar também em garantias), mistura-se tudo e põe-se em reserva. São 21 mil milhões. Com estes 21 milhões em reserva, o Banco Europeu de Investimento pode emprestar 63 mil milhões para financiar projetos de investimento.

Mas para os 315 mil milhões faltam ainda 252 mil milhões? Ah, explica Juncker, isso é dinheiro de investidores privados.

Se bem entendo, e não é fácil entender, uma instituição financeira qualquer (se calhar o tal Fundo Europeu para o Investimento Estratégico) irá emitir títulos no valor de 252 mil milhões que serão adquiridos por privados para juntar aos 63 mil milhões do BEI e financiar os tais projetos do plano de investimento. Estes títulos – e isto é parte mais mal explicada - estão certamente cobertos por garantias públicas passíveis se de serem acionadas caso os projetos de investimento corram mal e não consigam remunerar os investidores financeiros privados.

Nesta engenharia catastrófica, o dinheiro público serve mais uma vez para anular o risco de investimento que é privado. Não há dinheiro público agora. Rezamos para que não haja no futuro. Uma gigantesca PPP.

É preciso investimento e tem de ser assim, diz Jucker, “porque o dinheiro não vai cair do céu. Nós não temos uma máquina de imprimir dinheiro. Temos de atrair dinheiro e fazê-lo trabalhar para nós”. Falso. A eurozona tem uma máquina que faz cair dinheiro do céu. Chama-se Banco Central Europeu. Essa máquina de fazer dinheiro está a comprar lixo tóxico aos bancos e outras instituições financeiras em grande quantidade. Esse dinheiro não é transformado em investimento produtivo (que cria emprego), mas canalizado de novo para ativos financeiros.

Desta forma o valor dos ativos mantém-se ou aumenta apesar da economia continuar estagnada. Os donos dos ativos agradecem. Juncker espera agora atrair parte desse dinheiro que circula na esfera financeira para o seu fundo, limpo de risco pelas garantias públicas e bem remunerado. Os donos do dinheiro agradecem.

E que tal se essa máquina de fazer dinheiro financiasse diretamente o investimento necessário? “Ah isso não pode ser porque senão os bancos e as instituições financeiras privadas ficavam sem as margens que alimentam o seu negócio parasitário”. “Ah isso não pode ser porque nós proibimos isso nos tratados da União”. “Ah isso não pode ser senão os orçamentos ficavam menos comprimidos e os trabalhadores e pensionistas ainda se iam lembrar de exigir a reposição dos salários e das pensões e se os salários e pensões são repostos lá aumentam os custos de trabalho e diminuem os nossos lucros que nós não utilizamos em investimento produtivo porque como os salários e pensões são baixos não há mercado para produtos e serviços e nós somos obrigados a “investir” em ativos financeiros e a alimentar bolhas especulativas que um dia vão rebentar de novo fazendo ir tudo pelo ar”. “Ufff. Desculpem lá, se calhar o que fazemos não faz nenhum sentido, mas não sabemos fazer outra coisa e entretanto ficamos ainda mais ricos”.

Leituras


«Na sua obra monumental, O Capital no Século XXI, Thomas Piketty identifica e caracteriza pormenorizadamente os processos que levam não só à persistência e à intensificação das desigualdades económicas como à sua reprodução a favor de um conjunto muito limitado de pessoas e de grupos. Os trajetos de mobilidade social ascendente tendem a cristalizar-se e a inverter-se. Uma das consequências mais preocupantes reflete-se na reemergência da sociedade de herdeiros no contexto de uma Europa envelhecida e profundamente em crise.»

Renato Miguel do Carmo, Para matar de vez a desigualdade

«Os dados do INE vieram dizer-nos que, em 2012, 18,7% da população portuguesa estava em risco de pobreza. Em 2009, esta percentagem era de 17,9%. Mas, se esta diferença parece curta, isso resulta de a quebra dos rendimentos das famílias ter conduzido à diminuição do limiar de pobreza e, consequentemente, a que muitas famílias deixassem de ser estatisticamente pobres, ainda que a sua situação não se alterasse. Se ancorarmos a linha de pobreza em valores de 2009, o risco de pobreza em 2012 é de 24,8%, o que aponta já para um aumento significativo deste indicador nos últimos anos.»

Ana Rita Ferreira, Pobreza, desigualdade e políticas sociais hoje

«A alegada insustentabilidade financeira da Segurança Social é justificada pelos governantes com a redução dos saldos do sistema previdencial nos últimos três anos. Ora, neste período, a desvalorização salarial e o aumento do desemprego significaram uma perda de cerca de 3.000 milhões de euros para a Segurança Social, pelo crescimento da despesa global com subsídios de desemprego, apesar dos cortes, e pela redução da receita. A perda de recursos para o país representada pela massiva emigração e a mais baixa taxa de natalidade das últimas décadas, inseparáveis da instabilidade e da falta de futuro sentida pelas gerações mais jovens, têm também evidentes repercussões negativas.»

Grupo de Trabalho da Segurança Social do CDA, Há futuro para uma Segurança Social pública, universal e solidária!

«Numa altura em que a (suposta) insustentabilidade da Segurança Social tem servido de pretexto para cortes nas pensões e nas prestações de pobreza, e em que se multiplicam os grupos de trabalho nomeados para resolver o desequilíbrio financeiro da Segurança Social, a promoção de mais um vale isento de TSU não é justificável nem coerente com esse mesmo discurso. No entanto, se olharmos para lá do discurso e dos sound bites concluímos, com relativa facilidade, que este tipo de medidas serve na perfeição uma estratégia de descapitalização e de descrédito da Segurança Social pública, universal, tal como a conhecemos.»

Mariana Trigo Pereira, Vale mais um rombo nas contas da Segurança Social?

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Não é defeito, é feitio – Liberdade de circulação de capitais

Embora as informações não sejam oficiais, vou dar um pequeno “salto de fé” em relação aos diferentes casos de crime económico que têm assolado o nosso país nos tempos que correm (BES, Vistos Gold, prisão de Sócrates) e assumir que as notícias que temos correspondem a uma realidade não muito longínqua. O que é que estes casos têm em comum? Todos eles emergem de uma complexa arquitectura financeira que potencia o seu aproveitamento para múltiplos fins ilícitos. Estes casos vão bem para lá de uma qualquer discussão sobre a idoneidade individual. Neste post limito-me ao provavelmente mais saliente pilar desta arquitectura à luz dos recentes casos de polícia: a livre circulação de capitais.

O fim dos controlos de capitais em Portugal recua à adesão à CEE e à criação de um mercado único europeu de capital que veio a desembocar na moeda única. Para lá dos argumentos sobre uma acrescida eficiência na afectação de capital no espaço europeu, o argumento de expansão das liberdades foi essencial à promoção desta agenda política. Não só as empresas podiam transferir fundos de um lado para o outro, como os indivíduos deixavam de estar obrigados ao registo e taxação dos seus movimentos, para além do fim dos limites de acesso a moeda estrangeira nas viagens internacionais. Um argumento posteriormente reiterado para nos convencer das vantagens do Euro.

No entanto, a liberdade de circulação de capitais, além de promover os fluxos especulativos que saltam de pouso em pouso num “ai” e contribuem para a instabilidade financeira, entrou em claro conflito com as diferentes jurisdições nacionais. Hoje, é fácil e barato ter contas no Luxemburgo, Suíça ou Portugal, sem grandes perguntas de cada Estado. Não só se pagam poucos impostos, mas é sobretudo difícil seguir o rastro do dinheiro em relação à sua origem (lembrem-se de Carlos Costa, quando este dizia que o que se passava no Luxemburgo com o GES estava fora da sua jurisdição). Mas a perversidade da liberdade de circulação de capitais não acaba aqui. Os Estados não só não conseguem saber a origem e o destino dos capitais que circulam nas suas jurisdições, como se vêem compelidos a entrar numa “corrida para o fundo” na sua capacidade de os atrair. No caso português lembremo-nos do off-shore da madeira, do RERT, aqui escrutinado pelo João Ramos Almeida, ou da venda dos vistos Gold. Tudo vale, tudo está à venda.

Neste “regime de economia política” as estruturas e incentivos corroem a ética e os alicerces morais. Se queremos discutir politicamente o que se está a passar, então precisamos de atacar esta economia política. Acabar com a irrestrita circulação de capitais é dinamitar um dos principais pilares que a sustém.

 PS: Num mundo onde as transacções são cada vez mais electrónicas, onde a moeda deixa ter qualquer manifestação física, é curioso observar como a circulação de notas e moedas subsiste e cresce ao longo dos anos nas principais economias. Os motivos podem ser vários, mas a fraude é obviamente uma das explicações mais convincentes para esta permanência sistémica.



Populismos, confrontações e regimes


Um dos “facilitadores” de uma das alas do bloco central, António Vitorino, acompanhado por um dos “facilitadores” da outra ala, Marques Mendes, abrilhantou o congresso da associação portuguesa para o desenvolvimento das comunicações, um grupo de interesse capitalista reunido na semana passada. Só refiro este evento banal porque retive uma formulação, lida no Negócios, que Vitorino aí usou: “[A] linha entre populismo e cosmopolitismo é a grande confrontação na Europa. E chegará a Portugal inevitavelmente”. O que tem de ser tem de ter muita força.

Calma, não se enervem, aceitemos estes termos e vejamos por que é que convenientemente reinterpretado Vitorino está sem querer a dar um bom conselho às esquerdas facilitadoras da vida do povo e dificultadoras da vida dos que vivem em cima das possibilidades da maioria (ai, a opção populista…).

Em primeiro lugar, Vitorino sabe o que as regras e dispositivos da integração económica e monetária impõem: austeridade permanente. Vitorino também deve saber para que serve isto: desvalorização interna por via da residualização do Estado social, da fragilização da posição do trabalho organizado, com entradas dos negócios nas esferas não-transaccionáveis associadas ao Estado social (os incentivos perversos são um detalhe a que não se liga). Aposto que Vitorino sabe bem que este processo socioeconómico politicamente requer, dada a crise de hegemonia, uma consolidação de toda a força do bloco central. É evidente que a designação “cosmopolita” ofusca tanto quanto revela, não deixando, no entanto, de chamar a nossa atenção para um facto decisivo: a força que tem evitado crises terminais de hegemonia está hoje sobretudo lá fora, entre Bruxelas e Frankfurt, e pressupõe o esvaziamento continuado da soberania, uma rendição a um processo de globalização que aumenta a nossa dependência.

Em segundo lugar, o populismo que desassossega Vitorino, que se serve desta expressão com as costas demasiado largas, pode ter em Portugal, como de resto já tem noutras periferias, traduções bem progressistas e bem necessárias no presente contexto, como Nuno Ramos de Almeida tem argumentado: trata-se de criar uma alternativa que construa uma identidade popular, com vocação hegemónica, a partir da fusão da questão nacional com a questão social. Uma identidade que, como todas as identidades políticas, se construa contra algo e a favor de algo.

Contra algo. Contra as duas lógicas em curso, a da neoliberalização e a da neocolonização, e contra o que delas resulta: a transferência de recursos de baixo para cima da pirâmide social e de dentro para fora de um “país” com instituições públicas cada vez mais deslegitimadas. A podridão tem de se interpretada como colonização das instituições políticas pelo poder do dinheiro, passando este a definir as prioridades. É fácil, dada multiplicação de exemplos, concretizar esta abstracção.

A favor de algo. A favor de todas as instituições e práticas políticas, as ainda existentes e as que estão por (re)criar, que permitam inverter este processo, tirando as aspas ao país, ou seja, mobilizando os instrumentos que estão na nossa mão – a “sensata” reestruturação da dívida de que falava Munchau no Financial Times de segunda-feira, lamentando-se que seja a esquerda radical a mobilizá-la – como meio para recuperar outros instrumentos de política, incluindo a moeda, insensatamente perdidos.

Trata-se neste processo de dar uma resposta correcta à pergunta correcta: qual é o regime que está podre? O regime de economia política em vigor. Este regime contradiz os princípios do Estado social e democrático de direito, fórmula constitucional com notável poder emancipatório, nacional e social, e que tem de ser defendida: a soberania nacional reside no povo. Trata-se então de recuperar o espírito do povo unido.

Como se passa do espírito à matéria política? Aproveitando a oportunidade que se oferece às esquerdas neste país: construir uma vontade nacional-popular com programa, impedindo qualquer extrema-direita de manipular estes termos, canalizando o ressentimento e o protesto para os alvos correctos – uma elite do poder que nos colocou neste colete-de-forças, ao mesmo tempo que beneficiou disso, com cada vez menos preocupações redistributivas – e mobilizando a esperança numa política de desenvolvimento.

As esquerdas que não desistem, que nunca desistiram, que acham que o país não aguenta mais uma década disto, mesmo com agenda, têm de perceber a necessidade imperiosa de se unirem, apresentando uma proposta política e eleitoral conjunta ao país, uma aliança povo unido, falando para um país que vai para lá das fronteiras destas esquerdas e que não quer viver numa região dependente e sem instituições decentes. Creio que isto é hoje, dadas as condições objectivas, mais fácil do que nunca, mas também creio que esta oportunidade não durará para sempre. Se não agora, quando?

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Alemanha Europeia ou Europa Alemã?

A questão alemã, ou seja, a hegemonia alemã na Europa, tem sido também um dos eixos de uma certa análise crítica da economia política europeia: da ideologia dominante entre a elite alemã – uma versão do neoliberalismo chamado ordoliberalismo também inscrito nas instituições europeias – até à economia política interna à Alemanha e à que é exportada para a periferia – e as duas não são necessariamente coincidentes –, passando pelo euro, através do qual a elite alemã trancou a periferia e a França assim periferizada numa moeda forte que não serve as suas economias (as elites francesas e não só cometeram um erro de proporções históricas, se foi de erro que se tratou), culminando nas ilusões em relação à capacidade e desejo alemães de tornar o euro numa moeda com Estado (associado às politicamente impossíveis redistribuições internacionais que seriam necessárias na escala necessária e ao reforço do respectivo controlo político, sempre indesejado e indesejável, diria eu). Há mesmo muito para discutir sobre o “mau exemplo alemão”, de que falava recentemente o Alexandre Abreu. Os estudos europeus, uma área dominada até há pouco, com honrosas excepções, mais por um europeísmo acrítico do que pela análise crítica, têm também discutido alguns destes temas. Graças ao incansável trabalho de Eduardo Paz Ferreira, que colocou na agenda um novo terceiro D (“desgermanizar”), haverá amanhã um debate plural para responder a uma pergunta pertinente: “temos uma Alemanha Europeia ou uma Europa Alemã? Os detalhes estão aqui.

Contra o discurso da podridão do regime

A sucessão de eventos dos últimos meses – desde o desmoronar do império Espírito Santo e a detenção de Ricardo Salgado, passando pelo processo dos ‘vistos dourados’ e a detenção do director do SEF, até à  prisão preventiva de José Sócrates – contribui para aprofundar na sociedade portuguesa a ideia de que os principais pilares do poder no país estão minados pela corrupção e por comportamentos inaceitáveis.

Daqui à conclusão que vivemos num regime de podridão é um passo. Um passo acelerado, já que os sentimentos fortes ajudam a vender jornais e dão uma oportunidade fácil para a afirmação de projectos políticos sem substância – ou com substância inconfessável. A exploração do medo, do pânico e da desesperança dá dinheiro e alguns votos. O que não quer dizer que produza bons resultados.

Sabemos que a denúncia pode ser útil: ela tem uma longa tradição em Portugal, sendo muitas vezes o que nos resta quando pouco mais se pode fazer. Os romances e os ensaios de Antero de Quental, de Eça de Queiroz e da sua geração, são do melhor que se produziu em Portugal – e foram tudo menos inúteis.

No entanto, não estamos no século XIX, nem no final de um regime político indefensável. Portugal tem hoje uma democracia, guiada pelo princípio da separação de poderes e por direitos, liberdades e garantias. Com todas as suas deficiências, este é um regime que, nos últimos 40 anos, retirou milhões de pessoas da pobreza, do analfabetismo e da doença. Que tornou os poderes económicos, políticos e judiciais menos autoritários e mais transparentes.

Neste regime, muitas vezes os poderes não estão separados e nem sempre os direitos estão garantidos. A igualdade perante a lei e a equidade social ainda são objectivos por alcançar. Há ainda muita falta de transparência e abuso de poder.

Mas os princípios constitucionais continuam a ser assumidos como válidos pelo conjunto da sociedade. E, enquanto cidadãos, continuamos a ter a possibilidade – e a responsabilidade – de nos juntarmos e exigirmos que esses princípios sejam prosseguidos.

Este é o regime em que quero viver. Não tenho a certeza que regime desejam aqueles que navegam na crista do discurso da podridão.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Quem beneficia com as amnistias fiscais aos capitais fugidos do país?

Pouco se sabe sobre as acusações que impedem sobre José Sócrates. Nem se pode confirmar as informações vindas a público de que foi beneficiário das duas primeiras versões do Regime Excepcional de Regularização Tributária (RERT) para capitais saídos ilegalmente do país, aprovadas pelo seu próprio Governo.

O que me importa discutir aqui é, sobretudo, a quem beneficia os RERT. Será aos cofres do Estado ou aos capitais amnistiados?

A imagem é suficientemente explícita.

O RERT - nas suas três versões de 2005 e 2010 (Governo José Sócrates) e 2011 (Governo Pedro Passos Coelho, ver artigo 166º) - constitui um regime especial para pessoas singulares que tenham irregular ou fraudulentamente posto valores mobiliários fora do país e que ainda não tenham processos a correr contra si. Inclui depósitos, certificados de depósito, valores mobiliários e outros instrumentos financeiros, incluindo apólices de seguro do ramo 'vida' ligados a fundos de investimento e operações de capitalização do ramo 'vida'. Ao autodenunciar-se, o contribuinte livra-se de todos os procedimentos criminais e do risco de o Estado ficar com metade dos capitais.

Para isso, têm apenas de pagar. E a taxa é a mesma para pequenos e grandes. No RERT I e II, era de 5% sobre esses valores. A partir de Abril de 2010, passou a ser obrigatório o repatriamento desses capitais. Mas, já no RERT III, assinado pelo actual secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Paulo Núncio, advogado vindo do escritório Garrigues Associados, a taxa subiu para 7,5%, mas foi afastada a obrigatoriedade do repatriamento. Os capitais escusavam de voltar ao país! Era como um visto Gold, mas ao contrário.

Porquê então o espanto pela crescente afluência de capitais irregulares? Olhe-se de novo para o gráfico: não valerá a pena correr o risco da ilegalidade? Claro que vale! Pior: espera-se que a História um dia o conte, mas entre fiscalistas e pessoal da administração fiscal existe a forte suspeita de que os legisladores aprovaram estes regimes tendo em conta destinatários precisos. Veja-se alguns casos conhecidos: aqui e aqui.

Ainda pior: sabe-se que a elaboração destes regimes teve a participação de peritos de firmas de consultoria, cujos clientes podem ser, precisamente, os beneficiários das medidas. Luís Magalhães, responsável pelo departamento fiscal da KPMG, assumiu-o publicamente e nem deu mostras de ver aí um evidente conflito de interesses (Expresso 12/5/2012). Veja-se, aliás, como essas mesmas firmas se referem aos RERTs junto dos seus clientes, através das suas newsletters: aqui, aqui, aqui ou aqui.

Ou como o próprio secretário de Estado dos Assuntos Fiscais o “vendeu” – enquanto advogado – aos seus clientes como uma amnistia, embora como secretário de Estado tenha tentado que as notícias saídas sobre o seu RERT omitissem essa designação. E preferiu antes apresentá-lo como uma forma de combate à fraude e evasão fiscais e uma fonte de aumento de receitas fiscais em IRS.

Mas por que será que nunca são dadas explicações pelo Governo, no relatório sobre o combate a Fraude e Evasão Fiscais, sobre que tipo de contribuintes beneficiou destes esquemas? Se não houvesse essa má consciência, como explicar que estes regimes, nas suas três versões, nunca tiveram um preâmbulo da lei que enalteça as suas virtudes, tal como acontece na esmagadora maioria dos diplomas e se tivessem encavalitado na lei do Orçamento de Estado?

Não se tratará, na prática, de uma forma encapotada de branqueamento oficializado e que, como tal, deveria ser revisto? Quando crescentemente se aperta sobre os capitais irregulares, não será que mais estas amnistias se tornam no porto seguro - e a baixo preço - desses contribuintes relapsos?

A eficácia desta medida precisa urgentemente de ser analisada e perceber se foram esses contribuintes que contribuíram para o país ou se foi o Estado quem lhes prestou um serviço.

domingo, 23 de novembro de 2014

Dead Combo: Povo que cais descalço



Um tratado concebido para não ser cumprido


Num debate sobre o Orçamento de Estado em que participei recentemente no CES Lisboa, João Ferreira do Amaral chamou a atenção para o Artigo 5º do Tratado Orçamental, onde se especifica o que acontece a um Estado incumpridor. Nesse artigo fica estabelecido que em caso de violação do tratado: (a) o Estado incumpridor “institui um programa de parceria orçamental e económica que especifique as reformas estruturais que tem de adotar e aplicar para assegurar uma correção efetiva e sustentável do seu défice excessivo”; (b) que esse programa está sujeito “à homologação pelo Conselho da União Europeia e pela Comissão Europeia” e que (c) “a aplicação do programa de parceria orçamental e económica, assim como dos planos orçamentais anuais com ele coerentes, será acompanhada pelo Conselho da União Europeia e pela Comissão Europeia”.

Em suma, quem não cumpra fica sujeito enquanto não cumprir a “um programa” e ao “acompanhamento” do Conselho e pela Comissão Europeia.

O Tratado Orçamental, como todos sabem, contém cláusulas - particularmente a que obriga a reduzir a dívida pública a 60% do PIB em vinte anos - que não podem ser cumpridas. O que o artigo 5º do tratado sugere é que, a exemplo de outros tratados impostos no passado a países militarmente derrotados e ocupados, este tratado foi escrito precisamente para ser incumprido de forma a perpetuar a sujeição de alguns países aos poderes hegemónicos.

O incumprimento do tratado permitirá às instituições europeias impor programas, ditos de parceria, que “especifiquem as reformas estruturais” que os países incumpridores têm de adotar. Estas “reformas estruturais” são, antes do mais, políticas orientadas para a desvalorização do trabalho. São reformas que envolvem áreas de política que os tratados da UE reservam para os estados nacionais. No entanto, com o passe de mágica do artigo 5º do tratado, essas áreas de políticas em que o processo democrático em cada país ainda podia ser soberano, passam para a alçada das instituições europeias logo que um país entra em incumprimento.

O Tratado Orçamental foi “inteligentemente” feito para ser incumprido. Serve o desígnio oculto de submeter a política social à alçada da Comissão e do Conselho, isto é, o desígnio de proibir tudo o que se assemelhe a social-democracia ou democracia social, mesmo nos países em que os povos decidam eleger maiorias que as prometam.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Que sucesso é este?

É de leitura imprescindível o último número do Barómetro das Crises, publicado regularmente pelo Observatório sobre Crises e Alternativas, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Em dez páginas, que se dedicam à comparação do Orçamento de Estado de 2007 e a proposta de Orçamento de Estado para 2015, procede-se a um balanço arrasador dos últimos oito anos de vida do país, que incluem o início da crise (2008-2011) e o período do «ajustamento» (2011-2014), marcado pela vigência do Memorando de Entendimento assinado com a troika.


Uma das principais conclusões que sobressai deste balanço é muito clara: «a evolução das contas públicas entre 2007 e 2015 ilustra a extrema dificuldade, ou mesmo a impossibilidade, de equilibrar as contas do Estado num contexto de recessão. As políticas de "consolidação orçamental", ao forçarem o reequilíbrio, contraíram a atividade económica».

De facto, ao fim de cinco anos de austeridade, para se obter um défice das contas públicas semelhante (5,3 mil milhões de euros em 2007 e 4,8 mil milhões de euros em 2015), foi necessário captar mais receita e efectuar mais despesa, resultando daí uma quase duplicação do valor da dívida pública, a contração do PIB (em termos reais, face a 2007) em cerca de 5%, e menos meio milhão de pessoas empregadas. Como já se assinalou várias vezes neste blogue, o grandioso ajustamento redundou num colossal fracasso, desde logo nos seus próprios termos.

No campo das receitas, a maior parte do aumento foi obtida através de impostos, com particular incidência no IRS e no IVA. Do lado das despesas, sobressai o aumento registado na fatia dos juros da dívida (de 3,7 mil milhões entre 2007 e 2015) e das prestações sociais, designadamente a parcela referente ao subsídio de desemprego e aos encargos com pensões (que sem a recessão teriam mantido um peso no PIB idêntico ao verificado em 2007). Quanto às restantes prestações sociais (Abono de Família, RSI e Complemento Solidário para Idosos), «regrediram acentuadamente a partir de 2010, em consequência de medidas de restrição das condições de acesso e da redução das prestações» (sendo que, «a despesa em "ação social", onde são contabilizadas muitas transferências para instituições privadas de solidariedade, aumenta substancialmente a partir de 2012»).

De acordo com os autores do Barómetro, não se coloca portanto apenas a questão do fracasso no equilíbrio das contas públicas. Trata-se também de levar por diante, no quadro da agenda ideológica que o manto do «ajustamento» protege, «importantes alterações estruturais no próprio Estado», seja pela «desarticulação da administração pública e a crescente subcontratação de funções públicas», ou pelo «retrocesso na garantia dos direitos económicos, sociais e culturais», seja pela «erosão das funções redistributivas da fiscalidade». Por isso, a imagem que emerge da comparação dos exercícios orçamentais de 2007 e 2015 «é a de um Estado deformado pela recessão e pelo serviço da dívida, e por despesas cujo peso aumentou em consequência de causas estruturais e da própria recessão».

Sharon Van Etten



Próximo fim de semana em Lisboa.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

O que é que o euro tem a ver com a crise da economia portuguesa? (II)

No meu post anterior usei dados das contas externas portuguesas para discutir a relação do euro com a crise que afecta a economia portuguesa desde 2008. Os dados mostram que a balança de bens e serviços (ou seja, a diferença exportações e importações) não se deteriorou de forma significativa após a entrada em vigor do euro. Este facto tem levado muitos a questionar a ideia de que a participação na união monetária europeia contribuiu para o endividamento externo português e, por essa via, para a crise que actualmente vivemos. Fará isto algum sentido?

A ideia de que a participação no euro não teve impactos negativos relevantes na balança de bens e serviços portuguesa é muito pouco intuitiva: o euro atingiu o seu valor mais baixo face ao dólar em Outubro de 2000 (86 cêntimos de dólar por cada euro); a partir daí, subiu de forma vertiginosa até Julho de 2008 (atingindo 1,58 dólares por euro); é difícil explicar que uma alteração tão significativa do câmbio euro-dólar não tenha tido efeitos relevantes nas contas externas portuguesas.

Note-se que a apreciação do euro significa que as exportações portuguesas ficam mais caras face a produtos concorrentes vendidos noutras moedas, acontecendo o inverso com as importações. Isto é particularmente relevante no caso nacional, dado que a economia portuguesa é tradicionalmente especializada em exportações de baixo valor acrescentado, tipicamente muito sensíveis a variações de preços. Para além disso, o início da década de 2000 coincidiu com um período de forte aumento da concorrência das economias emergentes da Ásia (que transaccionam em dólares) e também do Leste europeu, cujos produtos de exportação são largamente coincidentes com os de Portugal.

Ou seja, seria de esperar que a forte apreciação do euro conduzisse a uma quebra das exportações nacionais e ao aumento das importações. Se assim é, por que motivo o saldo da balança de bens e serviços não se deteriorou fortemente após a entrada em vigor do euro? A razão não é óbvia, mas não é difícil de perceber.

O saldo da balança de bens e serviços resulta da diferença entre exportações e importações, pelo que  importa analisar separadamente a evolução de cada uma destas componentes. O primeiro gráfico mostra a evolução das exportações em percentagem do PIB, em Portugal e na média dos países da UE15.

No gráfico constatamos que o peso das exportações do PIB praticamente não se alterou em Portugal entre 1995 e 2005, contrastando fortemente com o que se passou na UE no mesmo período. Ou seja, este foi um período de forte expansão do comércio internacional, em que a generalidade dos países europeus viu o peso das exportações no PIB aumentar acentuadamente (de 29% para 36%, em média); no entanto, o peso das exportações em Portugal praticamente não se alterou.

Não é muito surpreendente que isto tenha acontecido no período de 1995-2000, já que a economia portuguesa esteve a crescer rapidamente nesta fase. Por outras palavras, neste período as exportações até cresceram a bom ritmo, mas tal não se nota no gráfico acima porque o PIB também cresceu muito. O mesmo não se passa, porém, entre 2000 e 2005, quando a economia portuguesa verificou uma das taxas mais baixas de crescimento da UE (com uma queda do investimento e uma estagnação do consumo privado). Apesar disto, o peso das exportações no PIB não aumentou, o que torna ainda mais evidente o contraste com a generalidade das economias europeias - e reflecte as dificuldades de inserção internacional da economia portuguesa.

Se o desempenho das exportações foi tão medíocre, como se justifica que a balança de bens e serviços não se tenha deteriorado neste período? A explicação encontra-se do lado das importações, representadas no gráfico seguinte.

Ao contrário das exportações - que dependem essencialmente do que se passa nas economias de destino - as importações tendem a variar muito com a evolução da economia interna: quando há crescimento económico no país, há mais investimento e mais consumo, parte dos quais se baseiam em produtos importados, pelo que as importações aumentam; quando as economia entra em recessão, o contrário acontece.

Isto é muito visível entre 2000 e 2003, um período de desaceleração económica durante o qual Portugal verificou uma das maiores quebras de importações na UE15. Tal permitiu que a balança de bens e serviços melhorasse, apesar da relativa estagnação das exportações. Porém, assim que a economia voltou a crescer – embora lentamente – a partir de 2003 as importações voltaram também a crescer, mais rapidamente até do que as exportações.

Em suma, se o saldo da balança de bens e serviços não se tornou mais negativo após a entrada em vigor do euro, isso deve-se fundamentalmente ao fraco desempenho da economia portuguesa no período (que limitou o crescimento das importações).

Quanto às exportações, como se viu, o seu crescimento foi medíocre até 2005. Entre 2005 e 2008 as exportações cresceram em percentagem do PIB. Mas note-se que o mesmo aconteceu às importações. Isto deve-se, em larga medida, a um factor: o forte aumento da procura e dos preços das matérias-primas transformadas (combustíveis, minérios, metais, produtos agro-industriais, etc.), determinado pelo rápido crescimento das economias emergentes. Estes são bens que Portugal exporta… mas também importa. Logo, o seu impacto no saldo comercial externo é praticamente nulo.

Resumindo, os dados acima sugerem que a participação no euro prejudicou mesmo as exportações portuguesas e promoveu as importações (só não sendo mais visível o seu efeito devido ao fraco crescimento económico pós-2000). E este é apenas um dos contributos do euro para o aumento da dívida externa portuguesa. Sobre os restantes escreverei noutra ocasião.

Lançamento e Debate: «Tempos Difíceis»


O Le Monde Diplomatique (edição portuguesa) lança no próximo sábado, 22 de Novembro, no Porto, a partir das 16h30, o livro «Tempos Difíceis», que recolhe testemunhos sobre os impactos da crise nas vidas quotidianas concretas. Com ilustrações de André Luz e textos de Bruno Monteiro, Emília Margarida Marques, Inês Brasão, Inês Coelho, João Baía, João Queirós, José Nuno Matos, José Soeiro, Nuno Dias, Nuno Domingos, Sandra Leitão e Sara Conceição, o livro será apresentado pela jornalista e directora da edição portuguesa do LMD, Sandra Monteiro, e pelos sociólogos Virgílio Borges Pereira e Bruno Monteiro. É no Mira Forum (em Campanhã) e estão todos convidados.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Japão, Europa e a reestruturação inevitável


Foi anteontem anunciado que a terceira economia mundial, o Japão, entrou novamente em recessão. Depois das promessas de uma política económica activista por parte do primeiro-ministro Shinzo Abe, baseada numa política monetária expansionista (sobretudo com injecções de liquidez do Banco do Japão através da compra de activos de forma a aumentar a inflação e diminuir o valor do iene), um política orçamental activa (através de um programa de estímulo ao investimento público) e nas famigeradas “reformas estruturais” de liberalização de mercado trabalho e tudo mais. No entanto, deste trio, a política orçamental ficou para trás, com preocupações sobre a posição orçamental do Japão a imporem um previsto aumento dos impostos sobre consumo. Assim, não admira que a deflação e a recessão continuem, com uma diminuição dos salários reais e procura deprimida como a que agora se verifica. (Sobre o diferente conteúdo da política monetária e orçamental ver este post.)

Entretanto na Europa, onde o mesmo tipo de acção é activamente promovida pelo BCE, a situação parece ainda mais complicada. Apesar de alguns apelos, não existe qualquer intenção política da maior economia da zona euro, a Alemanha, em promover a despesa e assim animar a sua estagnada economia. O artigo de Wolfgang Munchau no Financial Times pode ajudar a perceber os debates de política económica na Alemanha, onde os economistas “se dividem entre os que nunca leram Keynes e os que não percebem Keynes”. Continuamos com uma procura deprimida devido ao esforço simultâneo de poupança do sector público e do sector privado. Não admira pois que David Cameron se esforce nos alertas sobre a iminente recessão europeia que inevitavelmente afectará o Reino Unido – conquanto o próprio tenha bastante com que se preocupar com uma recuperação britânica alicerçada no endividamento das famílias e na bolha imobiliária (onde é que já vimos isto?).

E por cá? Por cá, tudo parece calmo. Já estamos habituados à depressão da procura e à estagnação e, entretanto, as doses de austeridade diminuíram e as taxas de juro que incidem sobre a dívida estão em mínimos históricos. Portugal beneficia, paradoxalmente, da excessiva liquidez reinante que deprime as taxas de juro, embora os motivos por detrás desta impeçam qualquer recuperação económica pelas exportações. Isto é sustentável? Não. Se tudo continuasse na mesma, não se conseguiria vislumbrar qualquer recuperação da economia portuguesa com a estagnação internacional. De qualquer forma, este não é de todo o cenário mais provável. Mais provável é que as condições internacionais se agravem, reflectindo-se no nosso (de)crescimento. Mesmo num cenário de permanência de baixas taxas de juro, graças a eventuais intervenções do BCE, a insustentabilidade da dívida pública tornar-se-á mais saliente. Ora, tal realidade imporá uma mais profunda reestruturação da dívida pública, além das que têm já sido feitas em torno das taxas de juro e maturidades, tal como argumentado aqui pelo insuspeito Barry Eichengreen.

Esta perspectiva interpela directamente o debate político em Portugal pré-legislativas: quem à esquerda faz bandeira com o incumprimento do tratado orçamental e pela reestruturação da dívida (Bloco de Esquerda e o novo Tempo para Avançar) não tem de se preocupar . A manter-se o actual quadro europeu, ambas são só uma questão de tempo. O primeiro é simplesmente impossível de cumprir – alguém imagina o país a reduzir a sua dívida mais de três por cento do PIB todos os anos, a partir de 2017? O segundo consubstanciará o que a Europa anda a empurrar com a barriga há alguns anos – um perdão parcial da dívida. Por esta altura já passou suficiente tempo para dar como adquirido que o dinheiro emprestado pela UE não será totalmente devolvido. A questão que então se coloca é se estes dois temas mudam alguma coisa. A resposta é clara: não. O poder europeu e a sua gestão da crise são hoje cristalinos. A dívida reestruturar-se-á o suficiente para evitar uma dinâmica descontrolada. A política monetária será expansionista, beneficiando e suportando o sistema financeiro europeu, sem que isso tenha grandes efeitos na economia real (ou a ter, será na forma de bolhas especulativas). A política orçamental continuará muito constrangida, com eventuais transferências a tomarem a forma de perdões de dívida (qualquer estímulo ao investimento público está vedado). Conclusão, esta esquerda arrisca-se a conseguir o que clama, sem com isso mudar alguma coisa no actual panorama. Quando chegarmos a esse ponto, ou se dão por satisfeitos, ou arranjam um novo caderno reivindicativo mais exigente. Em qualquer dos casos, arriscam a desilusão dos seus votantes.

Ligado


Do surto de legionela aos usos dos vistos dourados, passando pela queixa da Ministra das Finanças de que “infelizmente ricos temos poucos”, tudo está ligado por uma certa economia política e moral que é todo um sistema de poder e de imoralidade. Vejamos ponto por ponto, então:

1. José Castro assinala como o recente surto de legionela pode bem estar associado à conversa sobre a “flexibilização das regras ambientais” e à sua tradução regulatória concreta em contexto de austeridade e de neoliberalização: em nome da contenção de custos para as empresas, facilita-se a geração e transferência de custos sociais para a comunidade (é realmente melhor falar dos omnipresentes, ainda que tantas vezes invisibilizados, custos sociais, como argumenta o economista institucionalista Vítor Neves, e não das externalidades negativas de que gostam de falar os economistas convencionais viciados em falhas mais ou menos excepcionais). O quadro regulatório que inevitavelmente constitui o capitalismo nunca é neutro na gestão das interdependências que são o pão nosso de cada dia: quem é protegido e quem é vulnerável, quem tem direito e quem tem obrigação, quem tem margem de manobra e quem a ela está exposto?

2. Apesar de apoiar a austeridade e o seu contexto monetário estrutural, Manuel de Carvalho não deixa, no Público de Domingo, de identificar com precisão a imbricação entre os vistos dourados e a corrupção, afirmando que “entre a existência dos vistos gold e a corrupção que suscitaram há na origem e na essência os mesmos vícios: a gula pelo dinheiro e a relativização dos valores”. É isso mesmo. A corrupção é o outro nome da invasão de todas as esferas, incluindo a da cidadania, pelo poder do dinheiro, relegando valores como o merecimento ou a ética do serviço para um limbo. A famosa crise de valores radica num processo de transformação institucional produzido pela combinação tóxica de austeridade e de neoliberalização numa sociedade cada vez mais dependente.

3. E chegamos ao queixume da Ministra das Finanças sobre o número supostamente reduzido de ricos neste país, acompanhado do lamento hipócrita por uma parda “classe média” onde cabe toda a gente. Todo um programa de governo resumido. Isto num dos países mais desiguais da Europa, num dos países onde os agora famosos 1% detêm das maiores fatias da riqueza, tendo recuperado do susto da fase de democracia mais intensa a seguir ao 25 de Abril, num país onde o outro lado do crescimento do número de milionários é o crescimento do número de pobres nos anos que este governo leva.

A desigualdade é o pano de fundo de grande parte dos problemas, sabemo-lo há muito por investigação nacional e internacional. Afinal de contas, as sociedade mais desiguais têm mais problemas sociais, incluindo corrupção, ou menos preocupações ambientais, particularmente, como já lembrou o José Maria num contexto de austeridade.

É toda uma economia política onde há poucas, cada vez menos, oportunidades institucionais para conjugar a primeira pessoa do plural, onde o poder do dinheiro tem menos freios e contrapesos e pode assim colonizar cada vez mais esferas da vida. Tudo isto é infinitamente facilitado pela perda de soberania e de instrumentos de política para fazer mais do que conformar as instituições aos interesses de certas fracções, e logo as mais predatórias, do capital. Estão a ver onde queremos chegar? Isto está tudo mesmo ligado.

Leituras

«Os vistos gold são uma imoralidade (...) digna de país de Terceiro Mundo, onde certos princípios elementares são torpedeados porque é preciso ganhar a vida. Que essa iniciativa tenha nascido numa área partidária que se assume como democrata-cristã, eis a triste ironia de tudo isto. (...) A razão é óbvia: os vistos gold são uma escandalosa violação de um princípio de igualdade que deveria ser sagrado. (...) Nenhum de nós admitiria que direitos fundamentais como a residência ou circulação estivessem dependentes do tamanho da nossa conta bancária. (...) Mas é isso que a Lei 29/2012 permite a cidadãos estrangeiros: comprar o direito a viver em Portugal e a passear pela Europa por 500 mil euros. (...) Pior: três curtos meses depois de a lei ter entrado em vigor (...), os requisitos originais estavam a ser facilitados por despacho: a necessidade de criar postos de trabalho passou de 30 para 10. (...) Chamar aos vistos gold "Autorização de Residência para Actividade de Investimento em Portugal" é apenas um nome pomposo para um processo que pisca os dois olhos à lavagem de dinheiro e onde nunca houve verdadeira "actividade de investimento". (...) Esta é uma lei que se sabia, à partida, ter uma gigantesca probabilidade de atrair dinheiro sujo.»

João Miguel Tavares, O baixo preço da nossa dignidade

«Na prática, ninguém ainda sabe o que realmente lucrou a economia e o Estado portugueses com o negócio dos vistos dourados. A brochura diz-nos 1.075.749.834,75 de euros, mas as dúvidas agora suscitadas (...) aconselham-nos a ter cautela. (...) Exemplo: escritura-se um imóvel por 500 mil euros (quantia mínima para se obter um visto), mas paga-se apenas 300 mil euros ao vendedor, que na verdade somente recebe 200 mil, dado que os restantes 100 mil euros foram para comissões. No fim da linha, resulta de "ganho oficial" para o Estado os tais 500 mil euros. Embora a vantagem real tenha sido menor. (...) O Estado foi conscientemente enganado pelo próprio Estado. (...) Caindo, no limite, por terra, além da seriedade do projeto, a sua derradeira missão: oxigenar a economia com capital.»

Pedro Ivo Carvalho, Mil milhões de coisa nenhuma?

«Os dados são revelados pela própria Confederação Portuguesa da Construção e do Imobiliário, parte interessada na manutenção dos vistos: 1076 milhões de euros entraram no país em investimento estrangeiro captado pelos vistos "gold", dos quais 972 milhões correspondem a aquisição de imobiliário nacional. Ou seja, os outros 100 milhões foram directamente para transferências bancárias. Pobre país que vende a sua cidadania desempoeirando e escoando as suas casas de 500 mil euros, permitindo negócios obscuros, fuga de capitais e lavagem de dinheiro sem criar um único posto de trabalho. Seguramente, nem habitando as casas ou comprando mobília. Só imobiliário, nada de mobiliário. Pessoas, zero. Só fantasmas e milionários sem rosto absolutamente desinteressados em financiar, investir ou capitalizar empresas.»

Miguel Guedes, Ouro made in China

«A corrupção em Portugal não acontece porque há alguns vígaros que prevaricam; existe e prospera porque há gente que se apropriou indevidamente da democracia e do Estado. (...) Como escrevia o historiador social-democrata Tony Judt: "A desigualdade é corrosiva. Apodrece as sociedades a partir de dentro." (...) Num país cada vez mais injusto do ponto de vista económico, político, social, o que se pede não é que se diga "não sei", mas que as pessoas sejam capazes de mostrar que não querem mais esta situação. Aquilo que sustenta os corruptos é o nosso silêncio e a nossa incapacidade de imaginar uma solução radicalmente diferente da rotatividade contentinha que temos vivido nos últimos 40 anos entre os mesmos grupos de interesses.»

Nuno Ramos de Almeida, Isto é mais um problema de política que de polícia

«A comercialização de facilidades na emissão de vistos em troca da compra de casas de luxo transforma um acto de soberania num mero negócio. Num país que trata mal os imigrantes e que quase não aceita exilados políticos isto torna-se ainda mais aviltante. Presumindo a inocência dos envolvidos e a seriedade da investigação, sei apenas que a um Estado que institucionaliza a compra de vistos sobra pouca autoridade moral e simbólica para combater os que achem que o cumprimento das suas funções pode ser aligeirado em troca da soma certa de dinheiro.»

Daniel Oliveira, Vistos gold e o espírito de um Estado corrupto


(Na foto, uma das frágeis embarcações que rumam quotidianamente a Lampedusa, repleta de pessoas em desespero, que fogem da guerra e da miséria para esbarrar, quando as alcançam, nas muralhas da Europa fortaleza. Que não haja confusões: uma coisa são vistos gold e outra são vistos death. Alinhada com a mais desenfreada volúpia neoliberal, a democracia cristã do CDS/PP resume-se hoje a isto. Por mais que proclame, com infindável cinismo, «ética social na austeridade»).

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Quinta-feira: Orçamento de Estado para 2015 em debate


«A proposta de Orçamento para 2015 será votada e certamente aprovada no dia 25 de novembro na Assembleia da República. Entretanto, as perguntas que o Orçamento tem suscitado continuam por responder: O que fundamenta o cenário macroeconómico otimista? O que justifica o grande aumento da coleta fiscal? O que são realmente os cortes nos “consumos intermédios” e nas despesas com pessoal? Onde está a reposição de prestações sociais tão importantes como o subsídio de desemprego? Por que razão continuam a ser comprimidas outras prestações sociais quando a pobreza e a exclusão alastram?»

É para discutir as perguntas não respondidas do OE 2015 e refletir sobre alternativas às políticas orçamentais que o Observatório sobre Crises e Alternativas promove, na próxima quinta-feira, 20 de Novembro, a partir das 18h00, o debate «Orçamento de Estado para 2015: opacidades e insensibilidade social?». As intervenções iniciais ficarão a cargo de António Bagão Félix, João Ferreira do Amaral e José Castro Caldas (sendo o debate moderado por Manuel Carvalho da Silva). É no CES Lisboa, no Picoas Plaza (Rua do Viriato). Apareçam.