quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Ligado


Do surto de legionela aos usos dos vistos dourados, passando pela queixa da Ministra das Finanças de que “infelizmente ricos temos poucos”, tudo está ligado por uma certa economia política e moral que é todo um sistema de poder e de imoralidade. Vejamos ponto por ponto, então:

1. José Castro assinala como o recente surto de legionela pode bem estar associado à conversa sobre a “flexibilização das regras ambientais” e à sua tradução regulatória concreta em contexto de austeridade e de neoliberalização: em nome da contenção de custos para as empresas, facilita-se a geração e transferência de custos sociais para a comunidade (é realmente melhor falar dos omnipresentes, ainda que tantas vezes invisibilizados, custos sociais, como argumenta o economista institucionalista Vítor Neves, e não das externalidades negativas de que gostam de falar os economistas convencionais viciados em falhas mais ou menos excepcionais). O quadro regulatório que inevitavelmente constitui o capitalismo nunca é neutro na gestão das interdependências que são o pão nosso de cada dia: quem é protegido e quem é vulnerável, quem tem direito e quem tem obrigação, quem tem margem de manobra e quem a ela está exposto?

2. Apesar de apoiar a austeridade e o seu contexto monetário estrutural, Manuel de Carvalho não deixa, no Público de Domingo, de identificar com precisão a imbricação entre os vistos dourados e a corrupção, afirmando que “entre a existência dos vistos gold e a corrupção que suscitaram há na origem e na essência os mesmos vícios: a gula pelo dinheiro e a relativização dos valores”. É isso mesmo. A corrupção é o outro nome da invasão de todas as esferas, incluindo a da cidadania, pelo poder do dinheiro, relegando valores como o merecimento ou a ética do serviço para um limbo. A famosa crise de valores radica num processo de transformação institucional produzido pela combinação tóxica de austeridade e de neoliberalização numa sociedade cada vez mais dependente.

3. E chegamos ao queixume da Ministra das Finanças sobre o número supostamente reduzido de ricos neste país, acompanhado do lamento hipócrita por uma parda “classe média” onde cabe toda a gente. Todo um programa de governo resumido. Isto num dos países mais desiguais da Europa, num dos países onde os agora famosos 1% detêm das maiores fatias da riqueza, tendo recuperado do susto da fase de democracia mais intensa a seguir ao 25 de Abril, num país onde o outro lado do crescimento do número de milionários é o crescimento do número de pobres nos anos que este governo leva.

A desigualdade é o pano de fundo de grande parte dos problemas, sabemo-lo há muito por investigação nacional e internacional. Afinal de contas, as sociedade mais desiguais têm mais problemas sociais, incluindo corrupção, ou menos preocupações ambientais, particularmente, como já lembrou o José Maria num contexto de austeridade.

É toda uma economia política onde há poucas, cada vez menos, oportunidades institucionais para conjugar a primeira pessoa do plural, onde o poder do dinheiro tem menos freios e contrapesos e pode assim colonizar cada vez mais esferas da vida. Tudo isto é infinitamente facilitado pela perda de soberania e de instrumentos de política para fazer mais do que conformar as instituições aos interesses de certas fracções, e logo as mais predatórias, do capital. Estão a ver onde queremos chegar? Isto está tudo mesmo ligado.

10 comentários:

Anónimo disse...

Antes de Castro, dizia-o Correia Pinto:http://politeiablogspotcom.blogspot.pt/2014/11/a-legionela-e-o-neoliberalismo.html

Anónimo disse...

Ponto 1. Infelizmente, por muita regulação e fiscalização existente, continuarão sempre a existir casos destes. Quando surgir (esperemos que não) um acidente de trabalho, um acidente rodoviário, um incêndio, ... poderá sempre rever adaptar este post e reaproveitá-lo. No limite o que advoga seria um investimento sem limites em regulação e fiscalização, e mesmo assim não estaria em condições de garantir que casos destes (ou similares) não aconteceriam.

Ponto 1. " “flexibilização das regras ambientais” e à sua tradução regulatória concreta em contexto de austeridade e de neoliberalização" É nos países não-neo-liberais (como a China, ou a Rússia, por exemplo) que as regras ambientais são mais rígidas. Claramente.

Ponto 2. "corrupção ... radica num processo de transformação institucional produzido pela combinação tóxica de austeridade e de neoliberalização numa sociedade cada vez mais dependente". A corrupção é um fenómeno que não existiu (existe) em países comunistas, claramente anti-neo-liberais e intransigentes na defesa dos valores do merecimento e da ética do serviço.

Desculpe que lhe diga mas a sua ânsia de escrever desta vez atraiçoou-o.

Anónimo disse...

Mais uma vez um excelente post do João Rodrigues.

O que torna ainda mais confrangedor, pelo contraste, o comentário dum anónimo de 19 de Novembro de 2014 às 17:12.

Vejamos:
-Sobre o ponto 1 o referido anónimo fala na "inevitabilidade dos acidentes".
Não terá lido , meditado, reflectido , ou reparado ou não querido reparar que não era a divina providência que estava em causa?

O que expressamente se refere é a “flexibilização das regras ambientais” e a modificação legislativa operada em 2013. Por um governo neoliberal até à medula,que procura a "transferência de custos sociais para a comunidade" a todo o custo.

Assiste-se "à violação das mais elementares regras de conduta ambiental" e um anónimo vem falar em "acidentes"
A que se segue a fuga um pouco tonta em direcção à China e à Russia, como justificação para o descalabro governativo.

Estamos esclarecidos.Claramente

- A questão da corrupção segue o mesmo caminho.Num gesto assaz curioso que se assemelha um pouco à defesa (mesmo que involuntária) dos corruptos, eis mais uma vez o endosso para o lado. Já nem se desmentem os factos: "corrupção ... radica num processo de transformação institucional produzido pela combinação tóxica de austeridade e de neoliberalização numa sociedade cada vez mais dependente". de tal forma eles são esmagadores.Aponta-se para o lado e tenta-se esconder que a corrupção não é uma questão de polícia, mas sim uma questão de política.

Há um texto que considero muito bom do Nuno Ramos de Almeida a este respeito:

"Não é preciso ser particularmente revolucionário para perceber que a corrupção é um dado permanente deste regime que expulsou o povo da democracia"
http://www.ionline.pt/artigos/iOpiniao/mais-problema-poltica-polcia/pag/-1

Uma nota final. O final do comentário do referido anónimo ("Desculpe que lhe diga mas a sua ânsia de escrever desta vez atraiçoou-o") manifesta uma opinião estritamente pessoal do referido anónimo.
Como opinião pessoal é válida, como argumento contraditório infelizmente não passa duma frase vazia.Um pouco triste e pobre,convenhamos, mas sem qualquer base de sustentação.

De

Anónimo disse...

"O que expressamente se refere é a “flexibilização das regras ambientais” e a modificação legislativa operada em 2013."

O post não mostra a causalidade concreta neste caso (que até pode existir). E assim sendo, pode fazer o mesmo exercício quando ocorrer um qualquer outro acidente.

Apesar da dita flexibilização, a regulação ainda é muito mais extensa do que nos outros países que mencionei como exemplo.

Finalmente, a corrupção. É um fenómeno novo em Portugal? Tem aumentado em Portugal? Se aumentou, resulta dos últimos 4 anos de neo-liberalismo?
Se resulta, então seria de esperar que em países que não sofrem desse mal (neo-liberalismo) o fenómeno não ocorresse ou, a ocorrer, fosse mitigado. É o caso?

Quanto à minha frase final. O problema foi ter acabado de ler o post do Ricardo Paes Mamede, um exemplo de reflexão cuidada (o João Rodrigues já escreveu posts desses).

Anónimo disse...

Comecemos pelo fim, pela frase que apontei como oca e não fundamentada.

Assemelha-se a uma frase anónima colocada no post do Ricardo Mamede em que este era acusado que "não estar à altura da sua responsabilidade"

Agora um anónimo vem dizer exactamente o oposto:
"Ricardo Paes Mamede, um exemplo de reflexão cuidada"

A>pós uma salutar gargalhada sublinhemos este "curioso" método de debater. Género pulsões sentimentais"

De

Anónimo disse...

O usar como desculpa a hipotética situação doutros países assemelha-se como já se disse a um exercício de fuga.
Que escamoteia o essencial.Mais , que esconde objectivamente o essencial.
E o essencial já foi dito.
( e não,não se pode fazer o mesmo exercício com qualquer acidente. Só se este tiver resultado de modificação legislativa como foi o caso presente.)

De
Como ao que parece o referido anónimo assobia para o lado vamos ser mais claros

Anónimo disse...

"Há dois anos, técnicos de uma empresa de certificação energética e de qualidade do ar interior identificaram a Legionella num lar de idosos no interior do país. As bactérias estavam num depósito de água quente numa casa de banho.

Era uma situação de elevado risco. Um simples duche – ao vaporizar a água em pequenas gotículas – poderia levar a bactéria para pulmões já debilitados. Seria a combinação perfeita para mais casos de Doença do Legionário em Portugal.

Os técnicos fizeram o que a lei mandava. Realizaram um “plano de acção correctiva”, eliminaram a bactéria da água e o problema ficou resolvido. “Ficaram muito felizes por se ter detectado o problema atempadamente, não se tendo verificado qualquer baixa entre os idosos”, afirma José Afonso, responsável pela Engiprior, a empresa que realizou o trabalho.

A situação só foi detectada porque lares, hospitais, centros comerciais e muitos outros tipos de edifícios eram obrigados, desde 2006, a submeterem a qualidade do ar interior a auditorias periódicas. Desde Dezembro do ano passado, no entanto, as auditorias deixaram de ser obrigatórias, numa alteração legislativa alvo de muitas críticas.

Segundo a lei anterior – sobre a qualidade do ar interior e a certificação energética dos edifícios –, as auditorias deveriam ser feitas de dois em dois anos em escolas, centros desportivos, infantários, centros de idosos, hospitais e clínicas; e de três em três anos em estabelecimentos comerciais, de turismo, de transportes, culturais, escritórios e outros.

A preocupação com a poluição do ar interior – um problema grave a nível mundial – criou um mercado. Abriram-se empresas, compraram-se equipamentos, certificaram-se peritos. Mas em Agosto de 2013, o Governo reviu a legislação e as auditorias desapareceram. As normas existem e têm de ser cumpridas. Mas agora cabe à Inspecção-Geral da Agricultura, Mar, Ambiente e Ordenamento do Território (IGAMAOT) verificar se de facto estão a ser respeitadas.

“Deixou de haver uma atitude proactiva, remetendo-se apenas para os operadores a realização de avaliações de forma voluntária e a fiscalização (inexistente, de facto) para um organismo da tutela”, afirma Serafin Graña, coordenador da Comissão de Especialização em Engenharia de Climatização da Ordem dos Engenheiros. “Não é certamente o melhor procedimento quando estamos a lidar com questões de saúde pública”, completa.

Segundo Serafin Graña, nas auditorias que antes eram feitas, os principais problemas detectados tinham a ver com bactérias e fungos acima dos valores legais.

Não faltaram avisos dos riscos que a alteração legal traria. “Tentámos falar com deputados, ainda fomos recebidos por alguns, mas não nos ouviram”, diz José Afonso, que é membro da direcção da Associação Nacional de Peritos Qualificados.

“É evidente que houve lobbies para que houvesse esta alteração”, completa Fernando Brito, da Associação Portuguesa da Indústria da Refrigeração e Ar Condicionado, entidade que, na altura, também manifestou a sua discordância e tentou falar com governantes. “Era um retrocesso em relação ao que tínhamos feito até então. Quando entrou o novo Governo, deu tudo para trás”, afirma.

O PÚBLICO tentou ouvir o Ministério da Economia e do Emprego, a quem coube a iniciativa de alterar a legislação, mas não obteve resposta."

Os lobbies e os interesses sórdidos que escondem.E que este governo, tal como outros, servem e priveligiam

Com a alteração à lei de 2006, o governo PSD/CDS eliminou a obrigatoriedade de auditorias obrigatórias e periódicas a edifícios de serviços com climatização.

Isto é um facto. Que teve a tradução prática no presente surto de Legionella.Com os mortos que acarretou e com os custos que provocou.
Uma vergonha de facto.

De

vernon disse...

Muito bom.

Mais uma demonstração das teias que se tecem com a UE a promover a reprodução de todo o tipo de bicharada seja metafórica ou real, a promover a desigualdade de todas formas, directa ou diferida sobre os vulneráveis, na forma de custos sociais, ambientais ou outros.

Boa referência também por De ao texto de NRA reforçando a exposição da corrupção institucional da democracia e a desigualdade resultante, e coincidindo nessa consciência essencial.

Anónimo disse...

Quanto à corrupção

É clássico dizer que o pior cego é o que não quer ver

Passemos de lado a curiosa derivação para outros países. Já falámos de tais exercícios e sobre a falta de rigor a que se associam estas fugas. A suspeita que o que se pretende é branquear a corrupção, esta "nossa" corrupção, emerge de tais métodos.

Mas verdade se diga que tal suspeita sai reforçada por frases como esta:
", a corrupção. É um fenómeno novo em Portugal? Tem aumentado em Portugal? Se aumentou, resulta dos últimos 4 anos de neo-liberalismo?


A corrupção não é um fenónmeno novo em Portugal. Nem o neoliberalismo é um fenómeno dos últimos 4 anos. Nos idos anos de 2006 e 2007 José Sócrates foi considerado por uma insuspeita revista como o primeiro-ministro europeu, em exercício na altura, mis neoliberal. Ou seja as ditas correntes governam o país há bastos anos. Com as terríveis consequências que estão à vista.

A prova:

"Os casos de corrupção reiterada a que assistimos em Portugal, os das falências fraudulentas dos bancos, os dos contratos desastrosos que o Estado fez das PPP, os do tráfico de influências potenciados pela circulação directa dos políticos entre ministérios e altos cargos nos grupos financeiros, as tramóias nos vistos gold, a contratação de escritórios que preparam simultaneamente as privatizações para o Estado e para os tipos que vão comprar as empresas por tuta-e-meia, não se devem a termos em cada esquina um Vale e Azevedo, mas a termos um regime de poder político em que um grupo social se apoderou dos bens públicos e do Estado em seu benefício."
Nuno Ramos de Almeida


Mas este retrato da choldra do pais e do capitalismo podre e corrupto tem-se agravado:

"Eu não sei se Manuel Palos cometeu os crimes que lhe são imputados. Mas sei que as suspeitas que sobre ele pendem são especialmente graves porque arrastam o Estado para um novo patamar de abjecção e aviltamento político e porque essas suspeitas são sintomáticas de um capitalismo inapto para responder à sua própria crise sem se valer de modos e trejeitos cada vez mais mafiosos"
António Santos

Não ver o que se passa no país, não ver o lodaçal onde estamos, não escutar os comentários dos homens vulgares é sinónimo pelo menos de cegueira. Cegueira política pelo menos. Mas também de cidadania e de decência. E mais outras coisas que agora me abstenho de especificar.

De

Anónimo disse...

Mas há ainda um pequeno pormenor, dramático e revelador, na tentativa deste anónimo tentar defender-se da corrupção caseira

É o aceitar desta forma passiva, no mínimo curiosa e a raiar a cumplicidade, a situação em que nos encontramos.
É fazer-se de cego e surdo. É comprovadamente mostrar que este modelo de sociedade já não tem defesa possível e que só restam estes joguinhos de comparação e de pseudo-quantificação.

Alguém quer uma sociedade assim? O neoliberalismo apenas tem para oferecer coisas assim? Cala-se e consente, como aquela figura a um tempo sinistra, a outro tempo medíocre de cavaco a assobiar para o lado? Conivente com o saque e a pilhagem, garante da perpetuação da choldra e dos corruptos?

Que agora chega aos príncipes dos boys.logo naqueles lugares e naquelas funções do estado que os ditos adeptos de Friedman nem sequer questionam: a polícia e os corpos especiais da dita. Mais o que adiante se verá

Era o que mais faltava que esta situação seja tolerada por muito mais tempo.

De