quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Estado e comércio explicam maioria do emprego criado


Foram hoje divulgados os dados do inquérito ao emprego relativo ao 3º trimestre deste ano. Os noticiários vão sublinhar a descida da taxa de desemprego que passou de 13,9 para 13,1% face ao trimestre anterior e que recuou 2,4 pontos percentuais face ao mesmo trimestre de 2013.

Apesar dessa melhoria, convirá analisar esses números - os diversos números - mais aprofundadamente para se perceber o que se passa no terreno.

A recuperação do emprego está a fazer-se nos três últimos trimestres, mas o nível geral do emprego está ainda longe dos valores anteriores à crise de 2007/08. O inquérito de emprego teve uma quebra de série em 2011, mas os valores passados - se não comparáveis - dão uma ideia da destruição de postos de trabalho que se verificou nos últimos anos e quão longe ainda estamos de recuperar esse passado.

Mas mais interessante é verificar a causa da evolução recente que tanto alegria provoca ao Governo. Veja-se o que tem acontecido desde 2011.

O gráfico mostra a variação de postos de trabalho, em valores nominais (em milhares), face ao trimestre homólogo do ano anterior. O que se verifica é que o emprego na Agricultura esta em queda. A indústria e construção está a recuperar, mas é o sector dos serviços que explica a maior parte da criação de emprego.

Dos 95 mil postos de criação neste  3º trimestre de 2014 face ao de 2013, cerca de 110 mil foram criados nos serviços, 46 mil na indústria e construção e a Agricultura perdeu 60 mil.

Mas ainda mais interessante é ver que actividades estão a impulsionar a evolução dos serviços.

Dos 110 mil postos de trabalho criados, cerca de dois terços são explicados pelo comércio e pelas actividades que, em geral, são consideradas como actividades públicas: administração pública, educação e saúde.

A existência de um sector privado na educação e na saúde pode confundir a análise. Mas quase não devia. No sector da Saúde por exemplo, segundo o INE (Estatísticas da Saúde, 2012), dos 21.804 médicos, havia 19.254 médicos no sector público, 510 no sector não público e 2040 no sector privado. Quanto a enfermeiros, dos 46.384 existentes, 42.869 estavam no sector público, 446 no sector não oficial e 3069 no privado.

Se considerarmos, por facilidade, que a quase totalidade se trata de actividades do Estado, então cerca de 25% dos novos empregos nos serviços foram criado no comércio e 37% tanto no Estado como no conjunto dos outros serviços. Sem o Estado, a criação de emprego terse-ia ficado por cerca 54 mil postos de trabalho, metade do que surge agora nas estattísticas.

Este dado é tanto mais interessante quando o Governo - e o primeiro-ministro ainda no mais recente debate parlamentar - tem sublinhado a mudança de paradigma na economia que ocorreu nos últimos 3 anos face a um passado em que o país caiu em actividades doentias que permitiam crescer apenas através do endividamento externo, da procura interna e à custa do Estado.

Pois bem, o discurso político deveria ser mais rico e menos preocupado em conseguir conquistar o soundbyte das televisões. E talvez o Governo devesse mais modesto na festa dos números que põem em causa todo o seu discurso sobre a eficácia da austeridade.

9 comentários:

Anónimo disse...

Resumindo.
"A recuperação do emprego está a fazer-se nos três últimos trimestres"
Em austeridade.

"Sem o Estado, a criação de emprego ter-se-ia ficado por cerca 54 mil postos de trabalho, metade do que surge agora nas estatísticas."
Como compatibiliza estes números com os dados da DGAEP sobre a variação do emprego nas Administrações Públicas (-10% entre Jun/2014 e Dez/2011, por exemplo)?

João Ramos de Almeida disse...

Há várias possibilidades, mas nunca teremos a certeza. 1) As estatísticas do INE e a DGAEP seguem metodologias diferentes. O INE questiona as pessoas sobre em que actividade desempenharam as funções, independentemente do vínvulo. E é possível haver um acréscimo de pessoas a trabalhar no Estado, sem serem funcionários, mediante diversos tipos de prestações de serviços (desde a simples contratação de prestação de serviços, até através de políticas activas de emprego, como os escandalosos contratos emprego inserção; 2) As actividades mencionadas como usualmente desempenhadas pelo Estado são feitas já o sector privado. É possível que esteja a colocar pessoas no "Estado" que não o são, mas não creio que num curto espaço de tempo, o sector privado esteja a substituir o público nesta dimensão. O problema das estatísticas é que raramente se articulam, dado seguirem metodologias distintas, embora a tendência deva ser semelhante. Vamos acompanhando a evolução e tirando conclusões, mesmo para o passado.

João Ramos de Almeida disse...

E conviria ser mais prudente sobre a "recuperação do emprego". Fica para outro post ver que tipo de recuperação está a ser feita...

Anónimo disse...

"E conviria ser mais prudente sobre a "recuperação do emprego"." Limitei-me a citá-lo directamente, tal como o faço agora.

Já a questão da 'aparente discrepância' (perdoe-me a imprecisão) entre a sua análise e os dados da DGAEP merece realmente uma análise mais aprofundada. Numa análise rápida, até veria como benéfica a passagem de pessoas a trabalhar no Estado em funções administrativas para outras funções mais directamente relacionadas com a prestação de serviços de saúde e educação. Será isso que se está a passar e que explica a discrepância?

Por outro lado, se concordo consigo em estranhar que actividades usualmente desempenhadas pelo Estado na área da educação tenham passado rapidamente a ser feitas pelo sector privado, tal já não me surpreenderia no caso da saúde. Basta ver o crescimento dos hospitais e clínicas privadas com dimensão considerável (em Coimbra, por exemplo).

Seja como for, acho que a tendência é de algum decréscimo do desemprego, ainda que claramente insuficiente. A sazonalidade, a precariedade, a emigração, ... não me parecem explicar tudo.

João Ramos de Almeida disse...

Eu percebi que me citava. Quando usei a expressão "recuperação" limitava-se à tendência. O que queria dizer - até para me explicar melhor - é que pode haver de facto subida de emprego, que não tenha a ver com sazonalidade, mas duvido muito que se trate de uma retoma, ou melhor, de uma retoma por mnudança de paradigma na economia. Tanto que a base é a mesma: procura interna. E veremos se é consistente ou se chegou a um patamar. E por outro lado, a criação de emprego pode igualmente ser perversa. Mesmas actividades com salários mais baixos ou piores condições contratuais. Por outras palavras: subir o emprego é bom, mas não deve bastar a um governante.

João Pimentel Ferreira disse...

Muito bem analisado. Continuamos um país de serviços e de gente que trabalha para o Estado, que criam pouco valor económico, e que por natureza exige-se elevada carga fiscal e impõe-se baixos salários.

Anónimo disse...

O que é sobretudo salutar neste post do JRA é a denúncia da propaganda governamental e o desmascarar sereno que passos coelho aldraba a realidade.
No mínimo

Cito:
"Este dado é tanto mais interessante quando o Governo - e o primeiro-ministro ainda no mais recente debate parlamentar - tem sublinhado a mudança de paradigma na economia que ocorreu nos últimos 3 anos ."

Não há qualquer "retoma por mudança de paradigma na economia".

De

Anónimo disse...

"Não há qualquer "retoma por mudança de paradigma na economia"."

Concordo plenamente com esta frase, que me merece no entanto alguns comentários:
- Passos Coelho erra ao afirmar que essa mudança ocorreu;
- Essa mudança, a ocorrer, nunca vai depender da vontade ou acções de governos e nunca num curto prazo (veja-se o que ocorreu com a indústria do calçado e dos têxteis). Vai depender, isso sim, do tecido empresarial (o existente e o que for sendo criado). E esse ninguém controla e é impossível influenciar. Se não houver empresariado que promova a mudança de paradigma não há nada que os governos possam fazer para que ela aconteça.
- Dito isto, é tão errado prometer que se vai "mudar o paradigma da economia" (candidatos às próximas eleições), como esperar ou exigir dos próximos governos uma "mudança do paradigma da economia", como criticar os governos por isso não ter acontecido (pode-se, isso sim, criticar os governos por o terem prometido ou afirmarem que tal aconteceu por sua iniciativa).

Anónimo disse...

A mudança de paradigma entregue ao "empresariado"?

Tretas. O "empresariado" amamentado pelas políticas do poder que o serve (sobretudo os "tubarões") quer manter o paradigma que lhe é grato:
A preservação do lucro a qualquer custo.

Os resultados estão à vista.

O paradigma do Capital também

De