segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Ter casa custa. Mas quanto?

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A julgar pelos indicadores oficiais, o crescimento da economia portuguesa nos últimos anos parece ter-se traduzido no rendimento das pessoas. Quando olhamos para a evolução dos salários reais – isto é, a subida dos salários ajustada à inflação, ou seja, aos preços que pagamos por tudo aquilo que consumimos -, o que vemos é que, depois de terem diminuído de forma expressiva em 2022, voltaram a subir em 2023 e 2024 e os dados mais recentes sugerem que o poder de compra já foi recuperado.

Apesar disso, o custo de vida continua a ser uma das principais preocupações referidas pelas pessoas nos inquéritos. No Eurobarómetro do Parlamento Europeu, a inflação e a subida dos preços são, a par da saúde, a segunda principal preocupação expressa pela maioria dos portugueses. Parece haver uma discrepância entre os indicadores estatísticos usados para medir o poder de compra e a experiência concreta de boa parte das pessoas. Para perceber o que explica, é preciso perceber o que medem os indicadores que utilizamos e o que podemos (ou não) concluir a partir destes.

Notícias: aquiaqui e aqui

A taxa de inflação mede a subida média dos preços num país. Não é fácil calcular esta média, uma vez que é preciso incluir os preços de centenas de produtos (desde o pão, a carne ou os ovos aos eletrodomésticos, passando pela roupa) e de serviços (como um corte de cabelo, uma ida ao restaurante, um pacote de telecomunicações, etc.), além de que, para cada um destes produtos ou serviços, é preciso considerar diversas categorias/marcas. Para calcular a média, o indicador atribui um peso a cada um destes produtos ou serviços, correspondente ao seu peso na despesa média das pessoas, como discutido num post anterior.

Os preços aos quais se atribui um peso maior são aqueles que representam as principais despesas das pessoas: alimentos, energia, transportes e, como seria expectável, habitação. É isso que se verifica no cabaz utilizado pelo INE para medir a inflação (no gráfico abaixo, à esquerda). No entanto, há algo que salta à vista: a despesas com habitação, água e eletricidade/gás representam cerca de 10% do orçamento das pessoas. Este valor contrasta com a experiência da maioria das pessoas no contexto atual, onde os custos com a habitação são a principal despesa do mês. No inquérito realizado pelo próprio INE sobre as despesas das famílias, a habitação é, de longe, a maior fatia, representando quase 40% do orçamento familiar (também no gráfico abaixo, à direita).

Fonte: INE (aqui e aqui). Dados para 2023.

A prestação paga ao banco, no caso de quem tem casa própria, ou a renda paga ao senhorio, no caso de quem arrenda, são muitas vezes a principal despesa do mês. Seria de esperar que esta despesa fosse particularmente relevante para o cálculo da inflação. O problema é que a despesa com prestações é excluída do cálculo da inflação. E embora se inclua uma categoria que corresponde às rendas das casas, esta tem um peso muito pequeno, uma vez que a percentagem de pessoas que arrenda casa é reduzida (22,2%) face à de quem tem casa própria (77,8%) e, por isso, não paga renda.

Não é possível avaliar o poder de compra das pessoas sem ter em conta os custos da habitação, sobretudo num contexto em que estes têm crescido a um ritmo muito superior ao da maioria dos preços na economia. Entre o início de 2021 e o fim de 2024, enquanto a inflação total foi de cerca de 18%, a prestação média dos empréstimos para aquisição de habitação em Portugal aumentou 80,4%, passando de menos de €250 para mais de €440.

Fonte: INE

As rendas das casas também subiram acima do nível médio dos preços na economia. Entre 2021 e 2024, as rendas de novos contratos aumentaram 32%, mais do dobro do valor da inflação registada (aqui medida em termos anuais e não mensais, o que explica a diferença face ao gráfico acima).

Fonte: INE

O indicador da inflação é, por isso, pouco adequado para avaliar o custo de vida de boa parte das pessoas. O gráfico abaixo apresenta dois exemplos que ilustram este problema, comparando a inflação com a evolução do índice de preços que seria calculado se, em vez de usar o cabaz de consumo assumido no cálculo da inflação, usássemos aquele que resulta dos inquéritos às famílias e que nos dá uma ideia mais aproximada das despesas das pessoas.


Enquanto a inflação acumulada entre 2021 e 2024 andou à volta dos 15%, os dois exemplos acima tiveram uma subida mais expressiva do custo de vida neste período. No primeiro exemplo, uma pessoa que tenha visto a sua renda subir de €600 para €850, o custo de vida aumentou mais de 21%. No segundo exemplo, em que a prestação de alguém com casa própria e crédito com taxa variável tenha passado de €300 para €550, a subida do custo de vida foi ainda mais expressiva (mais de 37%).

As limitações do indicador da inflação não são apenas detalhes técnicos, uma vez que este é o referencial usado nas negociações salariais e na atualização das pensões e de outros apoios sociais. Se o indicador subestima o aumento do custo de vida, traduz-se em aumentos de salários ou pensões que acabam por ser mais baixos do que os que seriam necessários para travar a perda de poder de compra.

Quando lemos notícias sobre a “recuperação” do poder de compra nos últimos anos, é preciso ter em conta os indicadores em que assentam estas análises. Como o indicador da inflação subestima o custo de vida de muitas pessoas, utilizá-lo para avaliar a evolução dos salários reais pode levar a conclusões erradas. Com a subida dos preços das casas a um ritmo superior ao da maioria dos países, não se pode avaliar o poder de compra das pessoas sem ter estes custos em conta.

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1 comentário:

Lowlander disse...

Como se pode justificar a exclusao de uma despesa com estas dimensoes no cabaz de consumo das metricas sobre inflacao?
Como se pode justificar a reiterada exclusao?