quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

O problema do "mérito reconhecido"


O PS e o PSD, no quadro do seu entendimento para o Orçamento do Estado entenderam-se para criar uma nova entidade independente (mais uma) que terá como responsabilidade "avaliar a consistência dos objectivos relativamente aos cenários macro-económico e orçamental, à sustentabilidade de longo prazo das finanças públicas, e ao cumprimento da regra sobre o saldo e da regra sobre a despesa da Administração Central". Chamar-se-á o Conselho das Finanças Públicas.

A missão desta entidade é enigmática e a sua criação, obviamente, um objecto de propaganda. O que significa, por exemplo, aferir da sustentabilidade de longo prazo das contas públicas? Para um autor deste blog, significará implementar políticas de crescimento e de criação de emprego, mas desconfio que não é bem assim que pensam os proponentes do Conselho. Em qualquer caso, o que quer que se pense sobre o assunto, a definição do que é uma política económica sustentável no longo prazo é uma questão intensamente política, que divide economistas, que divide tradições de pensamento, que divide Partidos. É por isso que essa responsabilidade deve ser unicamente da instituição plural que tem hoje essa competência: a Assembleia.

E os proponentes sabem-no. Quando dizem que "Este Conselho deve integrar personalidades, de reconhecido mérito, com experiência nas áreas económica e de finanças públicas.", o que realmente querem dizer é que serão nomeadas pessoas da confiança dos partidos do centro que, aliás, já chegaram a acordo sobre o nome que irá coordenar o Conselho. O mérito foi reconhecido a António Pinto Barbosa, fundador do PSD. São assim estas entidade "independentes". Elas são independentes, mas apenas dos poderes democráticos.

Acontece que, como noticia o Público, António Pinto Barbosa foi Presidente do Conselho Fiscal do BPP durante dez anos, incluindo quando rebentou o escândalo, tendo avalizado sucessivamente as contas daquelas instituição, que sabemos hoje terem sido fraudulentas. Para currículo, não está mal... É o problema dos "técnicos" com "mérito reconhecido" para fazer política. Há sempre alguém que os vai "reconhecer". E esse alguém é normalmente um actor político que quer fazer passar a sua agenda de contrabando e transferir responsabilidades da democracia para a tecnocracia.

Deste tipo de expedientes, não resultará um cêntimo de poupança e muito menos um aumento de transparência na fiscalização das contas públicas. Essa transparência proporciona-a apenas o debate informado e o confronto de ideias e objectivos que só a democracia oferece. Só nesse confronto, os responsáveis pelas escolhas de política económica são chamados a sair de trás da técnica. Não assegurará que as escolhas sejam as melhores (como se sabe), mas obrigará quem as faz a responder pelas consequências das suas decisões, coisa que este Conselho, naturalmente, nunca fará.

3 comentários:

João Galamba disse...

Excelente post

Anónimo disse...

E está tudo dito sobre o tal senhor e sobre esta nova entidade dita independente.!
Não vale a pena a coisa só lá vai quando se correr (democraticamente, claro...)com estes bandidos todos.

Jorge Martins disse...

Uma das grandes falácias da ideologia neoliberal é a tentativa de separar os técnicos (competentes, independentes, neutros, meritórios, ou seja, angelicais) dos políticos (incompetentes, corruptos, interesseiros, ideológicos, em suma, gente em quem não se pode confiar). Esta visão, que vai passando para a opinião pública, é, tendencialmente antidemocrática.
Por um lado, porque tenta esconder que, por trás dos estudos e pareceres técnicos, estão escolhas e ideologias políticas e que, portanto, nada é neutro; depois, porque tenta mostrar os políticos como "todos iguais" pela negativa, o que aumenta a desconfiança popular relativamente ao regime e às instituições democráticas. Isso criar um "caldo de cultura" que leva as massas a apoiar (ou, pelo menos, aceitar) soluções autoritárias.