terça-feira, 23 de fevereiro de 2010
“Mãos limpas” à portuguesa?
"Normalmente, quando se fala de política italiana fora de Itália, pensa-se geralmente em Berlusconi, primeiro, na instabilidade política e na operação “mãos limpas”, depois. Dificilmente um observador estrangeiro irá aprofundar se entre os três fenómenos há, ou não, ligações mais ou menos profundas. Corrupção e instabilidade são considerados como pertencentes à própria natureza da política italiana e nem vale a pena deter-se nos pormenores.
Em Março de 1992, quando as investigações dos juízes contra a classe política italiana começaram a ter um impacto mediático relevante, colocou-se a questão de uma profunda reforma do sistema político italiano.
Os partidos da oposição, em particular o Partido Democrático della Sinistra (PDS – herdeiro do PCI) e o Movimento Sociale Italiano (movimento neo-fascista) logo tentaram de aproveitar-se do novo clima e, encorajados pelos discursos anti-sistema e populistas da imprensa, começam a atacar duramente os partidos da coligação governamental (em particular a Democrazia Cristiana/DC e o Partito Socialista/PSI).
Em volta da corrupção e da crise nas contas públicas, em Itália abriram-se duas frentes de discussão: sobre a reforma do sistema político e do Estado Social. Isto porque, ao lado das investigações dos juízes, chegou também o ataque contra a moeda italiana que saiu do Sistema Monetário Europeu e foi desvalorizada em cerca de 20%.
Em 1993, foi proposto aos italianos o referendo para mudar a lei eleitoral, então muito proporcional, num sentido maioritário. Os media logo apoiaram a viragem maioritária, justificada com a necessidade de “mandar para casa os políticos corruptos”. O PDS, o único partido que parecia sobreviver do terramoto que estava a atingir Itália, também se juntou aos defensores do sistema maioritário. Cerca de 90% dos italianos votaram pela mudança, pouco sabendo de sistemas eleitorais, mas com a ideia de mudar e mandar para casa todos os “políticos corruptos”.
Se a crise política teve como solução a reforma eleitoral, a solução da crise económica foi encontrada numa drástica e dolorosa redução das despesas do Estado e na privatização da grande maioria das empresas públicas.
Por paradoxal que possa aparecer, quem mais aproveitou deste clima de renovação ética foi o próprio Berlusconi o qual, na primavera de 1994, conseguiu ganhar as eleições legislativas. O PDS não tinha percebido que, do clima populista de anti-politica e anti-parlamentarismo, só uma formação conservadora podia tirar vantagens, tal como tinha acontecido na véspera da subida ao poder de Benito Mussolini.
Hoje, em Portugal, parece estar a soprar o mesmo vento de tempestade que atingiu a Itália em 1992, embora os protagonistas e o contexto sejam diferentes. Tentemos de arrumar as ideias: são meses em que o PS está a ser alvo de ataques por parte da magistratura: caso TVI, a questão dos graus académicos de José Sócrates e muitos outros exemplos de pequena e grande corrupção, ou tráfico de influências, que estão a ter grande relevância na imprensa de há meses a esta parte. Internamente, o governo minoritário do PS está sujeito aos vários desafios das oposições muitas vezes coligadas de forma contra-natura; externamente, são os especuladores financeiros que tentam de ganhar terreno (e muito dinheiro) com a instabilidade política (e financeira) portuguesa.
Se, por um lado, é compreensível que o PSD e o CDS tentem aproveitar dos ataques contra o governo Sócrates, já que têm tudo a ganhar com a sua fragilização, é mais difícil perceber a posição do BE, do PCP e do próprio PS, os quais têm tudo a perder com a exacerbação deste clima.
Se o maior concorrente para o governo do PS é o PSD, é evidente que este segundo partido dificilmente poderá ser um aliado de confiança e seria talvez melhor, para o PS, um acordo com a ala esquerda do espectro ideológico. Por outro lado, o BE e o PCP têm tudo a ganhar de um acordo com o PS, já que se o PS não parece muito generoso em termos de políticas de welfare, de certeza que uma aliança entre PSD e CDS não levaria num sentido de politicas sociais mais expansionistas, muito pelo contrário.
É óbvio que um acordo deve ir no sentido de satisfazer todas as partes que o assinam. É também evidente que, por um lado, em termos de “rendimento” eleitoral, o BE e o PCP poderiam vir a perder alguns votos abrandando a atitude “virtuosista”, mas, por outro lado, poderiam alcançar uma maior atenção por parte do Governo para as camadas menos favorecidas da sociedade. O PS, da viragem à esquerda, poderia, por seu lado, ter a considerável vantagem de ter aliados que não concorrem pelo governo e portanto de maior confiança.
A pergunta subjacente é: se o governo Sócrates não conseguir ir para a frente por causa dos ataques nas três frentes (apoio parlamentar, crise económica e corrupção), o cenário que se abriria em Portugal poderá vir a ser semelhante ao italiano de 1992-1994? Temos a certeza de que os três partidos da esquerda portuguesa teriam alguma coisa a ganhar com uma crise política desse género?
Se o Governo Sócrates caísse, é muito provável que os dois assuntos que viriam a ser mais discutidos em Portugal seriam: a governabilidade do pais e a necessidade de reformas económicas que reduzam o défice do Estado. A solução ao primeiro assunto poderá levar a uma lei eleitoral que privilegie os grandes partidos, e a solução ao segundo a uma redução profunda nas despesas sociais do Estado.
Num cenário deste tipo, não se vê como PS, BE e PCP possam ter alguma vantagem. Claro, nada disto pode vir a acontecer e o “caso Italiano” continuar a ser, pura e simplesmente, um conjunto de acontecimentos circunscritos ao período de 1992 e 1994. Mas e se assim não for?"
Bicicleta de André Freire emprestada a Goffredo Adinolfi (ga@goffredoadinolfi.net)
Estudante italiano de pós-doutoramento (sob supervisão de André Freire), a residir em Portugal, investigador sénior do CIES-ISCTE.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
6 comentários:
Quem é responsável pelo facto de 90% dos italianos terem apoiado a alteração da lei eleitoral ?
Quem os levou a tal atitude ?
Em suma, a culpa é dos juizes que atacaram a classe política ou da classe política que fez os possíveis para merecer tal ataque ?
Com que argumento se pede ao povo para aceitar todos os desmandos ?
Será sério argumentar que os desmandos da esquerda são melhores do que os desmandos da direita ?
A impunidade dos dirigentes é a maior ameaça à confiança popular nas instituições.
Não será preferível prevenir e punir os desmandos, seja de quem for, enquanto resta alguma credibilidade, preservando assim a respeitabilidade das instituições democráticas ?
Não nos preocupemos, porque está a chegar uma aliança democrátrica renovada, onde o populismo à Berlusconi vai conhecer um fôlego atlântico.
Será que estamos condenados a a tolerar um Berlusconi de esquerda para evitar um Berlusconi de direita ?
Dou a minha opinião (em abstracto) de cidadão que quer viver numa sociedade onde a democracia cresça sempre, mais e mais. Entendo que a democracia sem uma justiça tendente para a celeridade e a cegueira, não se cumpre. Só a partir deste pressuposto fará sentido falar-se em políticas, em modelos de sociedade, em esquerdas, direitas ou centros, em adversários políticos e por aí fora. Não se concordando com os adversários políticos e respectivas ideias, esses serão respeitados em primeiríssimo lugar, pelos seus princípios. Mesmo perdendo, e tendo que sujeitar-se a políticas que não se subscreve…Ou a ter entendimentos ou alianças, a haver intersecção de ideias.
É facto, no entanto, que esta terra não é um mosteiro de franciscanos. E ninguém pensará certamente que, da esquerda à direita, qualquer partido ou organização estará ao abrigo de ter nas suas fileiras alguém que não cumpra os tais “requisitos mínimos”. Isso acontece (tem acontecido de uma ponta a outra); o que espanta, nessas circunstâncias, é o silêncio ou a cumplicidade.
A democracia não se faz, nem com caimões, nem com papões!
Fernando, a minha convicção é que os berlusconis de direita são SEMPRE piores que os de esquerda, ou suposta esquerda.
Caro André Freire,
por que raio é que um investigador de pós-doutoramento há de ser designado por "estudante"? De certa forma estudantes são (ou deveriam ser) os académicos todos, não é assim?
Tenho um contrato de investigador no âmbito do Compromisso com a Ciência. Por que raio há quem me designe por "bolseiro"?
Os cientistas séniores gostam muito de demonstrar o seu confortozinho da posição permanente aos outros, não haja dúvida.
Enviar um comentário