quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Diário do Orçamento VI - Um Estado Responsável que exige Responsabilidade


A Assembleia aprovou recentemente uma proposta que fixa prazos na devolução do IVA às empresas, prepara-se para legislar sobre juros de mora nos pagamentos do Estado e criar regras para a definição de prazos de pagamento nos contratos públicos. São medidas que responsabilizam o Estado e criam regras no seu relacionamento com os privados. Só é pena que, em muitas áreas e sobretudo quando as empresas privadas são grandes e musculadas, o Estado seja tímido na defesa do interesse público ou simplesmente na exigência do cumprimento dos compromissos fixados.

Discutir despesa pública é discutir as regras segundo as quais se rege a relação entre o Estado e os agentes privados que executam grande parte dos projectos de investimento público. Essas regras devem partir de alguns princípios, que não têm sido cumpridos,como sejam:

1. Clareza de objectivos - Em primeiro lugar, o Estado deve definir bem o âmbito dos investimentos que tenciona promover. Na construção civil, existe o conceito do "já-agora". O "já-agora", juntamente com o "não pensámos nisto" inflaciona com enorme frequência os orçamentos, muitas vezes multiplicando-os em relação às previsões iniciais. Se há obras cuja necessidade é incerta, isso não impede que estejam especificadas e orçamentadas.

2. Monitorização - Essa clareza é fundamental para que haja uma monitorização adequada dos contratos e, em caso de incumprimento, condições para que os termos dos contratos sejam impostos, doa a quem doer. Claro que isto implica que cesse a candura com que sucessivos governos têm tratado as grandes empresas, o que contrasta, aliás, com os abusos em relação às pequenas. Um Estado responsável que exige responsabilidade, porque coloca o interesse público primeiro.

3. Transparência - A regra na celebração dos contratos tem de ser o concurso e o ajuste directo, uma rara excepção. O lançamento de concursos obriga o Estado a fixar critérios e torna as suas decisões escrutináveis. É uma regra de bom governo. A decisão do PS, no anterior mandato, de elevar desmesuradamente o montante mínimo para que os investimentos sejam sujeitos a concurso é o contrário dessa regra. O crescimento da utilização do ajuste directo é uma política incorrecta que lança ainda mais nevoeiro sobre uma área das políticas públicas em que os exemplos de promiscuidade entre interesses políticos e interesses privados se têm multiplicado.

4. Concorrência - Mas a importância dos concursos não tem só a ver com a transparência. É uma regra elementar de estímulo à concorrência. Não só obriga as empresas a disputarem esses concursos e introduz uma pressão para a baixa dos valores de adjudicação como permite criar critérios que discriminem positivamente empresas que tenham desempenhado contratos anteriores com rigor e competência.

5. Segurança Jurídica - A clareza nos objectivos e a celebração de concursos têm como objectivo assegurar a segurança jurídica do Estado e impedir que os recursos públicos sejam sequestrados por derrapagens orçamentais intermináveis. Isso significa que o Estado só renegoceia contratos em situações absolutamente excepcionais e quando estiver envolvido um alargamento objectivo e indiscutível do caderno de encargos. É insuportável que o Estado renegoceie contratos em seu prejuízo porque a parte privada invocou consequências negativas decorrentes da crise financeira mundial, como aconteceu em processos negociais recentes, denunciados pelo Tribunal de Contas.

6. Partilha de Riscos - O corolário destas ideias pode ser resumido na seguinte ideia: o paradigma que tem de nortear todos os contratos públicos é o da partilha de riscos. O Juíz Jubilado do Tribunal de Contas Carlos Moreno disse que não conhecia um único contrato em que os privados tivessem perdido dinheiro. Isso não é normal. O que é normal é que a actividade económica comporte riscos e a contratação pública não pode ter como regra que o Estado os assume a todos e os privados têm lucro garantido. Os investimentos têm de ser adjudicados pelos valores de concurso e se das circunstâncias alheias ao contratado resultarem benefícios para os privados, tanto melhor. Se resultarem prejuízos, é a vida. Isso quer dizer que as empresas se protegerão nos valores que colocam a concurso? Seja. Será certamente mais transparente e sempre melhor para o interesse público.

3 comentários:

Jaime Casanova disse...

O conjunto de ideias que aqui apresenta, são bastante óbvias.
Então porque não são, linhas condutoras como esta tidas em consideração, na acção governativa, ou na gestão das políticas públicas, quer a nível central, quer na administração local?
Se esta realidade é evidente para mim, e para o José Guilherme Gusmão, escapará ao entendimento de quem tem responsabilidades públicas?
Não se trata de uma questão ideológica ou sequer de uma forma de gestão, o que aqui está em causa é uma promiscuidade entre actores da esfera pública e privada, que põe em causa os interesses do país e da população.

José Guinote disse...

O seu post evidencia de forma clara como a simples enunciação de um conjunto de bons princípios aceitáveis para a generalidade das pessoas não constitui por si só uma proposta fundamentada.
Os contratos públicos não são todos iguais nem são todos “tratáveis” com recurso á mesma “terapia” ao contrário daquilo que me parece defender.
As Parcerias Público Pivadas (PPP) têm um regime jurídico próprio e estão fora do Código dos Contratos Públicos (CCP). Era às PPP que o Juiz Carlos Moreno se referia quando afirmou que o Estado perde sempre na negociação com os privados. Numa normal empreitada de obras públicas a Segurança Jurídica do Estado está garantida e a alteração do preço do contrato apenas é possível através de alterações ao projecto solicitadas pelo Dono da Obra, através da formula de revisão do preço estabelecida no contrato e pela verificação de erros e omissões do projecto, desde que detectados no período legalmente estabelecido.
Numa empreitada não se pode verificar a situação referida de alteração do preço provocada” pela crise internacional.
Por isso a proposta da partilha de riscos e da Segurança Jurídica apenas faz sentido nas PPP e nalguns casos de concessões estando assegurada nas restantes formas de contratação.
A melhor forma do Estado minimizar os riscos é reduzir ou eliminar as PPP recorrendo sempre às empreitadas, quando isso seja possível. As PPP só são aliás justificadas politicamente porque permitem “furar “ as restrições orçamentais e realizar obra a tempo para o próximo ciclo eleitoral. São más para o Estado mas boas para o político que as decide. A “cumplicidade” que se estabelece entre o político que lança a obra e a empresa privada que a executa “recomenda” que a estrutura que controla a execução da obra não seja demasiado “picuinhas”. Baixando convenientemente os níveis de qualificação e de independência dos técnicos envolvidos garante-se que tudo funcionará na perfeição.
Quanto às questões da Transparência e da Concorrência convenhamos que com excepção das famigeradas PPP e das Concessões estão salvaguardados os princípios na legislação existente. Mas não há princípios que resistam quando uma maioria absoluta passa o limite que permite a celebração de um ajuste directo para os 5 milhões de euros cilindrando o CCP que estabelece 150.000€ - um pouco exagerado e com excessivas nuances - para as obras públicas e os 25.000 € para projectos e planos.
Quanto à clareza de objectivos qualquer Contrato de Empreitada tem isso perfeitamente estabelecido. Não é a falta de clareza de objectivos que justifica qualquer derrapagem.
O que se passa é que o “já agora” juntamente com o “não pensámos nisto” são utilizados não pelas empresas mas pelos Donos da Obra, pelo próprio Estado muitas vezes, para fazer trabalhos não previstos retirando-os da concorrência e obtendo com isso compensações menos legítimas. Este procedimento é muito usado nas autarquias e sobretudo em períodos eleitorais. Há obras com bons projectos rigorosamente quantificados em que se “constroem” artificialmente derrapagens até aos limites legais para “abrigar “ desvios não orçamentados em outras empreitadas que não correram tão bem e para “abrigar” trabalhos que importa fazer mas que não interessa agora estar a lançar a concurso. Claro que este tipo de relações obriga a uma certa constância nos principais actores, obriga por exemplo a que os empreiteiros não mudem muito e que os responsáveis políticos também não.

José Carlos Guinote

José Guinote disse...

cont)
Monitorizar uma PPP pode ser dificil mas não será impossível e sobretudo não será impossível com o recurso a boas equipas com técnicos competentes Monitorizar Empreitadas de Obras Públicas é possível e há quem o faça todos os dias com grande eficácia neste País nos diferentes níveis da Administração e para Donos de Obra privados que aqui fazem os seus investimentos.
Mas importa actuar ao nível dos projectos e aqui também ao nível da transparência e da concorrência. Veja-se o escândalo do Parque Escolar com dezenas de milhões de euros de projectos retirados do mercado. Que terá atribuído ao Engº Sintra Nunes e aos seus pares capacidade para decidir quem tem ou não tem competência para fazer projectos de requalificação das escolas? Os concursos para a concepção de obras públicas devem ser públicos e abertos a todas as empresas capazes de responder às condições dos concursos. Não há forma mais rápida e mais económica de fazer. Não há melhor forma de defender o interesse público.
Importa actuar também ao nível das Fiscalizações das obras públicas. Devem ser atribuídas por Concurso Público.

Além de se contribuir para fomentar a transparência e o rigor criam-se condições para criar emprego qualificado e com direitos em áreas como a engenharia, a arquitectura, o direito e a gestão. Criam-se também condições para criar uma rede de empresas com elevadas qualificações em todo o território e para a fixação dos quadros superiores nestas áreas em todo o território. Em Portugal depois de 3 Quadros Comunitários o saldo nestas áreas é miserável. O País não ganhou nada em capital humano e em qualificações. Fica o terreno livre para os políticos fazerem a demagogia das qualificações cuja tecnologia dominam.
Saudemos pois as iniciativas em que o Estado não faz qualquer favor menos legítimo às empresas mas apenas e só assume o compromisso de se portar como pessoa de bem mas exijamos que o mesmo Estado seja implacável na defesa da transparência, da concorrência e do rigor única forma de defender de forma séria o interesse público.