A teoria económica é, afinal, uma construção frágil
Este livro, que agora se reedita [ed. Almedina, Coimbra], apareceu pela primeira vez em público em Julho de 2007. O tempo passado é escasso, mas a verdade é que aquela data me parece já bem mais distante do que o que resulta do tempo cronológico. De facto, o contexto em que, então, entendi esta publicação era sobretudo o de uma discussão intelectual dentro da economia, enquanto disciplina. Ora, durante esta súbita aceleração da história em que estamos profundamente mergulhados, produziu-se um resultado de monta de que o livro é beneficiário: as questões mais essenciais da economia invadiram a praça pública, deixaram de estar tão confinadas a redutos académicos, foram postas e puseram-se em questão. Assistiu-se a revisões radicais do que se supunha normalizado e até natural. A economia laicizou-se, publicizou-se. A dimensão prescritiva, calculista, finalista que faz a sua popularidade e suscita algum fascínio entre o público não especializado – que vê a economia como critério e argumento final para justificar decisões e definir comportamentos – perdeu significado perante as imensas falhas que originou.
Não me parece exagerado dizer que entre os temas que a crise pôs em primeiro plano estão certamente as relações da economia com os valores, a confiança, a subordinação do económico a padrões morais, a não redução da vida ao mercado. Também se percebeu, com dramática clareza, que a teoria económica que se arroga clarividente, dona de respostas sempre prontas para muitos aspectos da vida – mesmo aqueles em que se torna óbvio que não tem nada a dizer – é afinal, uma construção frágil, recorrentemente desafiada pela renovada complexidade da realidade, que com grande agilidade lhe evidencia os limites e as falhas.
Seria preciso eclodir uma crise tão dramática como aquela que decorre para que isto acontecesse? Seria preciso que a produção de desigualdades, a fortíssima inversão dos padrões de repartição do rendimento, o desapossamento da esperança de gerações inteiras se tivessem disseminado pelo mundo para que, enfim, se rediscutisse na praça pública a economia, o saber económico e o poder económico? Certamente que não. Poderíamos aí ter chegado apenas através de um escrutínio crítico mais profundo. Poderíamos aí ter chegado se a academia onde se ensina economia fosse mais aberta, mais plural, mais crítica e, portanto, mais conhecedora. Também poderíamos aí ter chegado se a vida pública estivesse menos dependente de formas de pensamento monistas, e cultivasse a contraposição e o debate.
É aqui que este livro reencontra o seu lugar, ao propor uma concepção larga da problemática económica. Por estas e outras razões compreendemos hoje melhor que a teoria económica dominante se conta entre os responsáveis pela crise dramática que atingiu as economias capitalistas. Não foram apenas excessos, erros ou defeitos que desmoronaram o sistema bancário e financeiro, com profundas implicações na sociedade e na vida das pessoas (de umas, muito mais do que de outras). Na razão mais profunda da crise estão as convicções que se impuseram sobre o papel e o lugar que cabem ao mercado nas sociedades de hoje. O mercado como instrumento de optimização da sociedade foi uma ideia a que não resistiram mesmo alguns dos que se presumem interessados na justiça social. Mas estes estavam enganados. Ao acomodarem-se a visões quase tão liberais como a dos liberais pensaram que podiam ser eles a fazer da regulação dos mercados um instrumento sofisticado, com que, de maneira subserviente e cerimoniosa, iam aperfeiçoar o capitalismo, que queriam entender como um sistema de concorrência que nada desafiasse. Mas não foi assim.
Por isso, os desafios estão aí. Desafios ao Estado, para que não seja apenas o bombeiro que salva acidentes e socializa prejuízos. Desafios ao mercado, para que se limite ao que é próprio da capacidade de iniciativa – gerar lucros através do exercício da liberdade para criar riqueza e não da submissão à lógica especulativa de todas as esferas da vida em sociedade, incluindo aquilo que, como a educação, a saúde, as poupanças, o bem-estar futuro das pessoas, só a esfera pública pode colocar num contexto onde impere a justiça. São, pois, claras as fronteiras entre o que deve ser próprio da provisão pública e o que é próprio da iniciativa privada. Mas a arbitragem só pode ser feita por um intenso escrutínio colectivo.
Os frutos da controvérsia e da persistência intelectual acabam sempre por chegar e, em geral, eles são benefícios colectivos. O Prémio Nobel da Economia, foi atribuído em 2009 a Elinor Ostrom, da Universidade do Indiana, e a Oliver E. Williamson, da Universidade da Califórnia, Berkeley. São personalidade e perspectivas muito diferentes. Mas têm um forte ponto em comum: interessam-se, numa acepção larga, pelas instituições e pelo modo como os comportamentos e as organizações alternativas ao mercado se tornam relevantes no mundo contemporâneo. Além disso, Elinor Ostrom é uma cientista política, o que bem sublinha como devemos saber atravessar as fronteiras disciplinares instituídas. Trata-se, pois, da consagração de dois pontos de vista com que, ao publicar este livro, me sinto muito comprometido: o ponto de vista da abertura e do pluralismo disciplinar e o da compreensão da dimensão institucionalista da economia. Eis a feliz e mais recente nota de actualidade que posso acrescentar a esta nova edição dos Ensaios de Economia Impura.
José Reis. Prof. Catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Investigador do Centro de Estudos Sociais.
6 comentários:
Não é aprimeira vez que anoto no meu caderno de apontamentos o meu espanto perante as afirmações de muitos académicos (nacionais e estrangeiros) responsabilizando a teoria económica prevalecente na gestação da crise, e, portanto, atribuindo no cartório grande partede das culpas às universidade, deste modo desculpando as manobras e os crimes cometidos por aqueles que forjaram e impingiram a banha da cobra.
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Universidades em que eles ensinam e não consta que em alguma circunstância tenham sido compelidos a expor e divulgar as suas teorias puras pelos meios que bem entendessem. Vivemos em ditadura? Houve bloqueios à liberdade de expressão intra-muros universitários? E ninguém se queixou? Ninguém ousou dizer não? Foi o Professor Reis* (e muitos outros) compelido a guardar secretamente os seus escritos na gaveta à espera que a crise escancarasse o armário? Foi a sua Universidade alvo das buascas e escutas de alguns esbirros ao serviço de um ditador da verdade oficial?
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Não vale a pena repetir aqui os factores mediatos e imediatos de fomento da crise, nem sequer discutir se o ensino universitário (aqui e, pelos vistos, em quase todo o lado) está na génese do descalabro. É uma questão para-científica porque qualquer afirmação feita à sua volta, não sendo demonstrável, só admite teses opinativas.
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O meu espanto, que é um espanto de um não académico, volta-se, sobretudo, para a forma generalizada com que vejo académicos subverterem conceitos epistemológicos fundamentais.
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Escreve José Reis no prefácio à sua obra que "a teoria económica que se arroga clarividente, dona de respostas sempre prontas para muitos aspectos da vida – mesmo aqueles em que se torna óbvio que não tem nada a dizer – é afinal, uma construção frágil"
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Que o professor catedrático me desculpe a ousadia mas qualquer teoria (económica ou qualquer outra) que se arrogue clarividente e definitiva é uma tolice. Nada é definitivo e o conhecimento é uma evolução incessante e permanentemente posta à prova. Se escapa ao escrutínio permanente ou é opinião, superstição ou dogma.
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De modo que, a menos que alguém se dê ao trabalho de explicar, eu não consigo entender o que é uma teoria económica dominante (ou má teoria, como alguns lhes chamam) desde logo porque não concebo o que seja uma teoria económica unificada. O que pode haver são explicações parcelares da realidade económica. Que ou são confirmadas ou rebatidas.
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Fora dessa esfera em que a explicação da realidade física ou social tem de conter-se e ser posta à prova não vejo que se possa espremer sumo científico doseado mas tão somente um fluxo controverso inesgotável.
Por favor no segundo período leia
"...tenham sido compelidos a não expor ..."
e não o que lá está.
Caro Rui Fonseca,
Não sei se o que segue é ou não evidência factual bastante...
Paul Samuelson escreveu em 1955:
“In recent years, 90 per cent of American economists have stopped being Keynesian economists" or Anti-Keynesian economists." Instead, they have worked toward a synthesis of whatever is valuable in older economics and in modern theories of income determination. The result might be called neo-classical economics and is accepted, in its broad outlines, by all but about 5 per cent of extreme left-wing and right-wing writers.”
95% parece a maioria do Sadam, não é? E que tal a etiqueta dos restantes 5%? Convenhamos que “extrema-esquerda” ou “extrema-direita” não é qualificativo que facilite o acesso à academia, sobretudo nos tempos do MacCarthismo. Acha que em Portugal o Samuelson não fez escola? Acha mesmo que há pluralismo no ensino da Economia? É que conhecendo eu os cantos à casa fico na dúvida se está a brincar ou a falar a sério?
"fico na dúvida se está a brincar ou a falar a sério?"
Estou a falar a sério e fico espantadíssimo, caro Castro Caldas, com o que me diz.
Porque se conhece os cantos à casa, presumo que os conhece como professor.
Assim sendo, o que é tem vindo a ensinar aos seus alunos? A boa ou a má teoria?
Frequentei a universidade ainda no tempo da ditadura e ninguém que estivesse minimamente acordado nessa altura ignorava as principais correntes do pensamento económico.
Passou a haver lei da rolha com a democracia?
Alguém comanda o seu pensamento enquanto professor universitário? Há livro único?
EStamos a falar de ensino universitário ou de ensino primário?
Caro Rui Fonseca
Vejo que o seu espanto é genuíno. Ensinei História do Pensamento Económico durante muitos anos num departamento de economia pluralista que deixou de existir enquanto departamento pluralista. Enquanto professor procurava exactamente dar uma visão da pluralidade teórica na economia. Recusando a transformação do dito departamento imposta a golpe, e para não ter de me envergonhar de ser professor nessas condições, saí. Acontece.
Processos semelhantes ocorreram noutras faculdades. Agora há em todo o lado um molde, o chamado “core” (micro-macro-econometria). Como poderá constatar com uma consulta aos planos de estudos dos cursos de economia pós-Bolonha, em Portugal a História da Economia, a Metodologia e Epistemologia a História Económica e as outras Ciências Sociais foram praticamente banidas, remetidas para as pos-graduações ou nos melhores casos tornadas optativas. Tudo o que cheire a cultura desperta a fúria dos talibans. O meu amigo conhece os “talibans” que pesam saber “como deve pensar um economista” e querem obrigar os estudantes a “pensar como economistas”?
A Economia que se ensina é maximização da função de utilidade sujeita a restrições com variações em ré menor. As vozes dissonantes relativamente à perspectiva “neoclássica” dominante existem mas situam-se actualmente próximo da quota dos 5% de que falava o Samuelson. É claro que para os 95% tudo corre bem no melhor dos mundos. Vale a pena informar-se relativamente ao que se passa e julgar por si próprio. A situação é bem diferente (e pior) do que a conhecemos quando fizemos os nossos cursos. A própria liberdade e autonomia dos docentes nas suas aulas está em risco. O estado do ensino da economia em Portugal é um problema público que (ainda) não foi reconhecido como tal.
No seguimento do post e dos comentários do JM Castro Caldas, deixo aqui um link (que o João Rodrigues e o JM Castro Caldas conhecerão, provavelmente): http://www.journaldumauss.net/spip.php?article232
De um pensador interessantíssimo (tive o prazer de ouvi-lo falar em Lisboa, a propósito da pobreza dos RAT-choicers e da recuperação de Mauss) e que pega em Veblen e en Han-Joon Chang. Como estudante de história e entusiasta do institucionalismo histórico, a economia política institucionalista parece-me uma excelente resposta ao imperialismo neoclássico.
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