sexta-feira, 15 de abril de 2011

Tony Soprano bailout

Não é ajuda externa a Portugal, mas sim um “Tony Soprano bailout”, diz Michael Burke, ou seja, uma violenta operação de salvamento da banca do centro europeu e, já agora, da banca nacional à custa das populações das economias periféricas, dos seus rendimentos e activos.

Multiplicam-se as declarações de governantes espanhóis que nos garantem que a Espanha não é Portugal. Outros dirigentes europeus, como a ministra das finanças francesa, afiançam que Portugal funcionou como um “corta-fogo” da crise. Declarações deste género têm funcionado como um indicador avançado de novos problemas. Tony Soprano poderá estar a chegar a Espanha.

Um ex-funcionário português do FMI alinha com o que andamos a defender há já algum tempo: “Reestruturação da dívida pode ser usada como arma negocial pelo governo”. Usada como arma negocial de uma aliança das periferias seria ainda mais eficaz. Indicando que não é em vão que se esteve no FMI, aponta para uma redução dos direitos laborais e é franco sobre os objectivos de tal medida: reduzir os salários. O ataque ao salário directo e indirecto é uma das marcas dos Sopranos do FMI-BCE-CE.

Publicado no arrastão.

Ir ao pote

Numa conferência proferida na semana passada na Universidade Lusófona, Pedro Passos Coelho defendeu a ideia de constituição de parcerias público-privadas nas áreas da educação, saúde e acção social. O que significa, por exemplo na esfera educativa, a adopção de um conceito de «rede nacional de ensino», que incluiria as escolas públicas e privadas, ou seja, uma oferta «vista em conjunto». Justificando a proposta e referindo-se explicitamente ao ensino superior, Passos Coelho considerou que «aqueles que hoje estão no ensino público beneficiam de um custo, porque têm um pagamento beneficiado pelo Estado, que aqueles que precisam de recorrer ao ensino não público têm de enfrentar».

É claro que não passa pela cabeça do líder «social-democrata» que o problema detectado tem uma resposta alternativa à dita «visão de conjunto»: a expansão da oferta pública, tornando supletiva (ou verdadeiramente opcional) a frequência das instituições de ensino superior privado. Tal como não lhe interessa perceber que a natureza intrínseca dos serviços públicos prestados pelo Estado (e a necessidade de os mesmos se constituirem enquanto rede e segundo um princípio de cobertura territorial e de oferta formativa) não é compatível com os mecanismos privados de prestação de serviços.

Mas colocando de lado a discussão ideológica, Pedro Passos Coelho revela aparentemente desconhecer (de facto ou de forma deliberada) que o Estado já concede, desde 1997, apoio a alunos do ensino superior privado, sob a forma de bolsas (que têm uma componente relativa a propinas). Um apoio que abrangia cerca de 36% dos candidatos em 1997/98 e que rapidamente se estendeu a um contingente muito significativo de alunos, fixando-se em cerca de 63% em 2006/07 (informação mais recente disponibilizada pelo GPEARI).

As verdadeiras intenções do PSD de Passos Coelho (e dos interesses que representa), tornam-se todavia mais claras quando constatamos que o que está em causa é, essencialmente, a própria sobrevivência do ensino superior privado. Com efeito, o número de alunos inscritos tem vindo a decair ano após ano (passando de cerca de 114 mil em 1995/96 para cerca de 90 mil em 2008/09), apesar do absurdo volume de vagas (cerca 50 mil) que este subsistema oferece anualmente aos candidatos ao ensino superior. O que contrasta, nitidamente, com a expansão progressiva do ensino superior público, que viu aumentar o número de inscritos em cerca de 42% no mesmo período (passando de cerca de 200 mil em 1995/96 para cerca de 282 mil em 2008/09). O peso do ensino superior privado em Portugal passou assim de cerca de 1/3 para 1/4 dos total de alunos inscritos.

Mas tomando a proposta de Passos Coelho, que assenta na ideia do cheque-ensino (ou, em alternativa, do pagamento directo de custos pelo Estado às instituições de ensino superior privado), impõe-se uma questão: de onde vem o dinheiro necessário? Há duas alternativas: ou implica um reforço orçamental do MTCES (o que seria estranho num partido que grita em todas as direcções contra a «gordura» do Estado) ou implica um corte no orçamento das instituições de ensino superior público, degradando ainda mais as condições de sub-financiamento a que têm sido sujeitas. A opção, já o sabemos, seria certamente a segunda, revelando as intenções mais inconfessáveis: se não consegues competir no plano da qualidade, estrangula-a.

Esta proposta do PSD é, assim, não só reveladora do regresso do «compra-me isso Portugal» (que se eclipsou curiosamente durante a eclosão da crise financeira), mas também da crónica incapacidade da famigerada «iniciativa privada» para viver sem ser à sombra do Estado. O que há de verdadeiramente ideológico no «novo modelo de governação» que Passos Coelho propõe é muito menos do que se poderia supor. Do que se trata é mesmo de ir ao pote. De pura parasitagem.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Portugal visto de fora...

O cientista social norte-americano Robert Fishman publicou um artigo sobre Portugal no New York Times com uma visão excessivamente idealista, mas que sublinha bem as pressões especulativas sobre o nosso país, aqui resumido pelo Negócios, e que teve, como não podia deixar de ser, impacto interno. Fishman tinha publicado, em 2010, um artigo académico na revista Studies in Comparative International Development intitulado "Rethinking the Iberian Transformations: How Democratization Scenarios Shaped Labor Market Outcomes". O artigo está acessível através de qualquer universidade, mas um resumo pode ser encontrado aqui. Trata-se de um exercício de economia política comparada. Portugal aparece muito bem na fotografia em termos de capacidade de criação de emprego e de preocupação política com essa variável crucial. O estudo de Fishman refere-se ao período democrático, indicando precisamente que a ruptura revolucionária portuguesa e suas heranças político-ideológicas e institucionais, por comparação com a transição espanhola, explicam parte deste relativo sucesso português. No entanto, um certo entusiasmo de Fishman tem de ser temperado pela consideração das abissais desigualdades salariais nacionais, por exemplo. E é claro que este euro, a austeridade, as pressões especulativas e suas sequelas puseram em causa, desde o início do milénio, tal trajectória, como Fishman aliás reconhece.

Economia política da intervenção

A desfaçatez do bloco central não tem limites: Teixeira dos Santos indicou que o Estado está "disponível" para entrar no capital dos bancos. Sem mais, claro. O Estado bombeiro aceita empréstimos, com condições draconianas para as classes populares, para ajudar os bancos e seus accionistas, socializando prejuízos num processo à irlandesa? É isto, não é? Até agora os bancos intermediavam entre o BCE e o Estado, ganhando à custa de todos. E ainda há quem chame ajuda a esta expropriação. Revela-se claramente a lógica da concertação entre os bancos, organizada internamente pelo Banco de Portugal, para exigir a entrada da troika FMI-BCE-CE. A solidez do contrato político com este sector financeiro, um dos principais responsáveis pelo estado do país, por contraste com a precariedade do contrato social, diz tudo sobre o espírito santo que comanda internamente a nossa economia política. Embora o encaixe financeiro seja residual num contexto de venda forçada, a exigência de privatização de bens públicos essenciais faz todo o sentido para quem quer capturar sectores onde os lucros estão garantidos. É viver sempre em cima das possibilidades da comunidade. Repito o que escrevi no início da austeridade mais violenta: o que está aqui em jogo é um processo de transferência dos custos sociais do ajustamento à crise do capitalismo financeirizado para o "factor trabalho", a expressão de Cavaco Silva que é todo um programa político. A alternativa? Alternativas há muitas para os vários planos da vida económica, mas se calhar vai ser preciso pensar em reestruturar os bancos, impondo nesse processo perdas severas aos accionistas e aumentando a importância da banca pública.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Comissão Europeia recusa mandato de captura europeu para os ladrões de bicicletas

Se não acreditam, leiam aqui.

O olho subtil de Strauss-Kahn


É preciso fazer os ajustes orçamentais “com um olho subtil no crescimento”, alerta Strauss-Kahn.

Oh Strauss-Kahn, explique lá como é que isto se faz sem ser com facilidade nos despedimentos, liquidação da negociação colectiva e dos sindicatos, mais desemprego e redução dos salários para niveis chineses.

Empreste o 'olho subtil' aos seus homens em Portugal, até porque, como diz:

“As políticas de redução orçamental podem baixar o crescimento económico a curto prazo e isto pode mesmo conduzir a um aumento a longo prazo do desemprego, transformando-se assim um problema cíclico num estrutural”.

Contra a economia da recessão e da desigualdade

Entrevista do Ricardo Paes Mamede ao Libération: "FMI vai aumentar a desigualdade social em Portugal".

terça-feira, 12 de abril de 2011

Preocupados com o crescimento português?

Ficámos a saber através dos jornais que a “Europa” está «preocupada com falta de crescimento português». Uma afirmação destas, nos dias que correm, parece uma declaração de bom senso por parte dos dirigentes europeus. Já deve ser claro para todos que só crescimento económico, e não mais austeridade, nos pode tirar da crise.

Parece bom senso, mas não é. Logo a seguir na notícia ficamos a perceber o que isto quer dizer na prática: a chamada ‘ajuda externa’ virá amarrada a exigências de ‘reformas estruturais’ nos domínios da legislação laboral, do sistema de justiça, da regulação da actividade económica e veremos que mais.

As almas liberais lusas, crentes de que os problemas de competitividade da economia portuguesa se resolvem com a facilitação dos despedimentos e, de forma geral, com a redução dos chamados ‘custos públicos de contexto’, exaltam perante a perspectiva de conseguir impor a sua agenda sem ter de a sujeitar às regras da democracia. Essas almas continuam a viver utopias perversas.

Mais lucidez, ainda que menos escrúpulos, têm os membros do grupo alemão Europolis que entregou uma providência cautelar para impedir a Alemanha de participar no apoio financeiro a Portugal. Segundo o porta-voz deste grupo, Portugal «não tem futuro como uma economia competitiva» na zona euro.

A ideia não é difícil de perceber. A economia portuguesa tem um problema estrutural central – e não, não é a legislação laboral, a lentidão da justiça ou a burocracia – trata-se do seu perfil de especialização produtiva. A estrutura produtiva portuguesa é assente em sectores de baixa intensidade de conhecimento, de baixo valor acrescentado, com procuras internacionais pouco dinâmicas e/ou em que a concorrência internacional é muito intensa.

Este estudo do FMI mostra de forma clara por que razão a economia portuguesa cresceu tão pouco na última década – e, já agora, porque é que o desempenho exportador alemão tem sido tão positivo. A economia portuguesa está especializada em sectores cuja procura internacional tem crescido pouco e onde a concorrência das economias emergentes mais se tem feito sentir. Já a Alemanha tem a sua estrutura produtiva assente em bens de equipamento para a produção industrial e para consumo de luxo – isto num mundo marcado por processos recentes e massivos de industrialização (que exigem equipamentos para a produção), originando algumas centenas de milhar de novos bilionários (ávidos de Mercedes, BMW e Audi alemães) – a par de centenas de milhões de trabalhadores industriais a viver em condições miseráveis.




Quando a União Europeia negociou a entrada da China na OMC e uma redução generalizada das taxas sobre as importações dos bens das economias emergentes, fez um óptimo negócio… para alguns. Os grandes produtores europeus (em particular, os alemães) obtiveram um acesso privilegiado aos mercados emergentes. As economias da periferia ficaram à rasca.

Da mesma forma, quando a UE embarcou num apressado alargamento a Leste (em nome da estabilidade do continente), os produtores alemães passaram a ter acesso a uma reserva de mão-de-obra barata e qualificada mesmo à porta de casa. À rasca ficaram as economias periféricas, como Portugal, que viram deslocalizar-se muitas multinacionais - que agradeceram o brinde da nova geografia europeia.

Em ambos os casos, a economia portuguesa (entre outras) viu-se a braços com uma situação estrutural insustentável – com custos demasiado elevados para concorrer com as economias emergentes e do Leste europeu, mas pouco qualificada (não apenas em termos individuais, mas também de recursos e estratégias empresariais) para concorrer em segmentos de maior valor acrescentado. Já se sabia que o resultado não ia ser bom. Menos bom seria num contexto de aumento dos custos das matérias-primas e de apreciação do euro face ao dólar.

Discutir os problemas da economia portuguesa na actualidade sem ter este quadro por referência é embarcar numa mistificação lamentável. Na verdade, nada do que foi descrito se alterou. Neste contexto, não são as reformas estruturais que nos querem agora impor que vão fazer a diferença.

Tem, pois, razão o tal grupo alemão quando afirma que Portugal não irá crescer o suficiente no quadro da zona euro. Pelo menos, no quadro que existe na actualidade. Estão os dirigentes da UE preocupados com o crescimento português? Encontrem-se, pois, soluções que ajudem a relançar a competitividade da economia portuguesa de forma sustentável – criem-se fundos para investimento em sectores transaccionáveis (para fazer face à quase indisponibilidade de crédito ao investimento produtivo no presente), reforcem-se os fundos para I&D e formação, abram-se excepções temporárias às regras de auxílios de Estado da UE de forma a replicar uma desvalorização cambial.

Promover uma desinflação competitiva através da redução forçada dos salários (via aumento do desemprego e liberalização dos despedimentos), como ditam as condições de quem nos vem 'socorrer', vai condenar-nos não apenas a uma recessão prolongada, mas a um modelo de crescimento que tem os dias contados há muitos anos.

Repetição

Desgraçada repetição: o aprofundamento da austeridade equivale a recessão por tempo indefinido e logo a novos aumentos do desemprego. É o próprio FMI a reconhecê-lo uma vez mais. E, no entanto, parece que nada muda. A ortodoxia da política económica é imune aos factos da economia. Até porque tem um programa ideológico claro: reduzir salários, partir a espinha ao mundo do trabalho organizado, esteio político possível do Estado social que vamos tendo.

Vale a pena ler a análise do economista George Irvin da Universidade de Londres no The Guardian de ontem. As experiências grega e irlandesa aí estão, a exigir uma revisão das condições associadas aos mecanismos de financiamento em vigor. De facto, devido à austeridade intensa estas economias só têm conhecido contracções. O desemprego ultrapassa já os 13% nestes dois países, indicando que a conversa sobre a rigidez laboral faz parte de uma imensa fraude. A este ritmo, e apesar dos cortes orçamentais impiedosos, nenhum deles conseguirá reduzir a sua dívida. Esta bola de neve rola em todas as latitudes. Portugal vai ser um laboratório para repetir as mesmas experiências fracassadas? Irvin traça três cenários para a zona euro depois de Portugal. Todos eles envolvem a Espanha. Será a próxima peça de um dominó que pode bem não parar por aqui.

Entretanto, deixo-vos um vídeo de uma iniciativa dos precários inflexíveis. Que todos os protestos e propostas contra a intervenção externa floresçam: só a sanidade organizada dos cidadãos, o realismo de um vigoroso contramovimento de protecção, pode contrariar a utopia neoliberal das elites nacionais e europeias.


Agências de rating: texto da denúncia entregue na PGR e petição pública

"A complexidade do sector em que se insere a actividade das Denunciadas, assim como a dimensão das consequências dela emergentes, requerem explicações prévias à exposição dos factos que indiciam comportamentos presumivelmente criminais e que são objecto da presente denúncia.
Estamos hoje confrontados com uma crise económica e financeira global, que afecta com particular incidência alguns países e os seus povos. Designadamente a Grécia, Irlanda, Espanha e Portugal têm sido submetidos a planos de austeridade no contexto da crise financeira e que importam custos sociais da perda ou redução de direitos fundamentais como o do trabalho, da habitação e até de recursos para a própria sobrevivência.
Ora, o desencadear destas crises decorre de uma responsabilidade concreta, imputável a pessoas e instituições determinadas, nomeadamente aquelas que têm contribuído e beneficiado com os excessos do mercado financeiro.
E, se há que admitir que há graus distintos de gravidade na actuação dos prevaricadores, é inaceitável que continue a prolongar-se a impunidade existente até aqui.
Neste momento, as três mais importantes agências de notação financeira, precisamente as aqui denunciadas, noticiam e divulgam, diariamente, classificações de rating que, com manifesto exagero e sem bases rigorosamente objectivas, penalizam os interesses portugueses, originando uma subida constante, dos juros da dívida soberana."

Introdução ao texto da denúncia facultativa contra três agências de rating, ontem entregue na Procuradoria-Geral da República por José Reis, José Manuel Pureza, Manuela Silva e Manuel Brandão Alves, que pode ser lido na íntegra e subscrito aqui.

(Via Portugal Uncut)

Feministas... convictamente



O Público noticia hoje que, em média, as mulheres portuguesas despendem por dia quase quatro horas a mais do que os homens em trabalho não remunerado, o qual inclui o trabalho doméstico e o cuidado de terceiros (crianças, idosos,...). Se se juntar o trabalho pago e não pago, Portugal é o segundo país entre os 29 abrangidos pelo estudo, a seguir à Índia, onde a disparidade é maior entre homens e mulheres.

Não é nada de que não suspeitássemos já, ainda que o último Inquérito à Ocupação do Tempo em Portugal (instrumento estatístico de especial importância para denunciar este tipo de desigualdades) date de 1999, sendo já mais do que altura de ser repetido. E é apenas uma das muitas dimensões da desigualdade e dominação de género. Outra, por exemplo, é o facto de, para o mesmo nível de habilitações, as mulheres continuarem a receber salários sistematicamente inferiores aos homens.

O patriarcado é um sistema social de exploração e dominação das mulheres, não só na esfera económica como também a nível cultural e simbólico. Actua principalmente na esfera da ideologia - ou seja, através da "naturalização" das representações e comportamentos ("é normal que as coisas sejam assim..."). E como se vê, está vivo e bem vivo entre nós. Ser feminista, homem ou mulher, significa denunciar e combater activamente este sistema de exploração e dominação. E é também um imperativo, especialmente para quem também denuncia e combate a exploração capitalista.

Economia hidráulica (para economistas amnésicos e outros interessados...)



Este artigo do The Guardian, que agradará especialmente aos que se interessam pela história do pensamento económico (característica rara entre os economistas da corrente dominante), conta a história do MONIAC (“Monetary National Income Analogue Computer”), um computador hidráulico concebido e construído em 1949 por William Philips para modelizar as relações fundamentais da economia britânica.

Phillips era um personagem fascinante. Neozelandês, engenheiro de formação, foi prisioneiro de guerra do exército japonês durante três anos da 2ª Guerra Mundial, tendo aproveitado o tempo de detenção para, entre outras coisas, construir secretamente uma chaleira e um aparelho de rádio. Depois da guerra, dedicou-se ao estudo da sociologia na London School of Economics, altura em que teve pela primeira vez contacto com as ideias de Keynes. Foi ainda enquanto estudante, nessa altura já no departamento de economia, que Phillips conjugou os seus conhecimentos de hidráulica e de economia keynesiana para construir o MONIAC, que viria a ser utilizado tanto enquanto auxiliar pedagógico como para realização de simulações e previsões.

O MONIAC era um produto do seu tempo, reflectindo um entendimento particular (literalmente hidráulico) da economia e do keynesianismo, caracterizado pela assunção de relações estáveis entre agregados macroeconómicos susceptíveis de controle cibernético. Trata-se da chamada síntese neoclássica, mais conhecida na versão do (igualmente hidráulico) modelo IS/LM de J. Hicks, cuja popularidade viria a decair na sequência da estagflação da década de 1970 (a qual veio pôr em causa a existência de uma relação estável entre inflação e desemprego, representada por uma curva que receberia, também ela, o nome de W. Phillips).

Desgraçadamente, as teorias dominantes subsequentes viriam a mostrar-se, de uma forma geral, muito mais fracas e desligadas da realidade – do monetarismo à teoria dos ciclos económicos reais, passando pelos novos clássicos. Teorias que, todas elas, de uma forma ou de outra, negam o papel da procura agregada na determinação dos níveis de actividade económica e de (des)emprego e/ou negam a possibilidade de implementação de políticas públicas de estabilização. Não é coincidência que coincidam temporalmente e suportem intelectualmente o neoliberalismo, pois este programa de concentração da riqueza nas mãos das classes dominantes é facilitado e favorecido pela existência de níveis elevados de desemprego. De uma forma geral, as crises são do interesse das elites.

O keynesianismo hidráulico padecia de excesso de húbris face à possibilidade de controle cibernético da economia, não dava o devido valor à incerteza (como viriam a salientar a corrente pós-keynesiana, herdeira marginalizada do pensamento de Keynes) e, mais importante do que isso, não entendia que o sistema que estudava era um produto particular de relações entre classes. Mas compreendia que a estabilização macroeconómica e o combate ao desemprego se fazem principalmente através do estímulo da procura agregada e não com fantasias regressivas sobre a “flexibilização” do mercado de trabalho. Se o MONIAC parecer arcaico aos olhos dos estudantes de economia contemporâneos, será bom que tenham consciência que era, ainda assim, mais avançado (científica e politicamente) do que os modelos dinâmicos de equilíbrio geral que se estuda hoje em dia nos programas de doutoramento da maior parte das faculdades de economia.

Mudar de assunto (ou talvez não...)

A SEDES é muitas vezes apresentada como uma das históricas expressões intelectuais do centro político tecnocrático. A orientação vincadamente neoliberal dos seus principais economistas, parte de todos os grupos de boas-vindas ao FMI, de todos os esforços para reduzir salários directos e indirectos, revela melhor o perfil dominante deste grupo de elite. Isto não impede que, de vez em quando, surjam no seu blogue algumas reflexões críticas, como é o caso do texto do filósofo André Barata, que tem tido merecida difusão, sobre a relação entre desigualdade económica e baixa confiança social, que prolonga, em contra-corrente com o pensamento hegemónico na SEDES, uns exercícios mais vagos sobre confiança e ética pública.

Partindo do trabalho empírico de Richard Wilkinson e Kate Pickett sobre os vários custos sociais da desigualdade económica, a que já aqui várias vezes aludimos, Barata indica que os elevados níveis de desigualdade económica estão associados a baixos níveis de confiança interpessoal. Portugal ilustra este padrão. Assim também se mina a confiança nessas expressões dos hábitos estabelecidos de uma comunidade que são as instituições fundamentais da República, que no nosso caso parece estar caminho de uma oligarquia onde o poder do dinheiro concentrado em poucas mãos tende a colonizar todas as esferas.

Isto remete para outros trabalhos de investigação com conclusões convergentes, que têm apontado para uma versão da chamada armadilha social, ou seja, para uma situação em que somos incapazes de alcançar soluções cooperativas com benefícios sociais evidentes devido à ausência de confiança. Um círculo vicioso ou a mais conhecida pescadinha de rabo na boca: a elevada desigualdade de rendimentos contribui para os baixos níveis de confiança social; sem confiança é difícil forjar políticas públicas redistributivas de alcance universal, associadas a um Estado social com serviços públicos robustos e protegidos politicamente e a mecanismos centralizados de negociação colectiva, de determinação de normas salariais, geradores de resultados mais igualitários antes de impostos, que são precisamente as formas mais eficazes, no quadro do capitalismo, para diminuir as desigualdades e a pobreza e para alimentar a crença partilhada de que, apesar de tudo, num certo e real sentido, “estamos todos no mesmo barco”. É a economia moral do Estado social.

Talvez seja por isso que nos países socioeconomicamente menos injustos, a legitimidade das instituições, mercantis e não-mercantis, é maior e a corrupção é menor, até porque acção colectiva cidadã, dos trabalhadores, é mais robusta, os freios e contrapoderes sindicais na economia política são mais fortes. São os países que “escolheram” o Estado social em vez do Estado penal, o que se traduz, por exemplo, numa menor percentagem de população activa dedicada a improdutivas actividades de controlo, policiamento e monitorização. A questão que Barata talvez possa colocar a muitos dos seus colegas economistas com sedes de poder e com uma concepção da política económica assente no “sangue, suor e lágrimas” é a seguinte: por que é que insistem em empurrar-nos para uma economia cada vez mais cruel?

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Dívida ilegítima, odiosa e provavelmente ilegal


O Público noticia a acusação de dois quadros da empresa alemã Ferrostal por corrupção na venda de submarinos a Portugal e Grécia (irónica a coincidência, não?). Em Portugal, está uma investigação em curso. É difícil perceber todos os contornos deste negócio. As irregularidades e ilegalidades parecem estar por todo lado: na escolha do consórcio vencedor, nas contrapartidas dos contratos, na imposição do grupo Espírito Santo como intermediário financeiro, no contrato de financiamento. Parece o exemplo acabado de dívida contraída pelo Estado português ao mesmo tempo ilegítima (compra de equipamentos inúteis); odiosa (porque contratada de forma ruinosa para o Estado); e ilegal (a sua contratação provavelmente foi corrupta). Esta não é a minha dívida.

Este exemplo só sublinha a necessidade de uma auditoria cidadã, através da qual possamos ter acesso a toda a informação sobre o nosso endividamento de forma a preparar a reestruturação da dívida. Só assim poderemos ter uma reestruturação liderada pelos interesses dos devedores e não pelos dos nossos credores.

O bloco central ainda fala em ajuda europeia?

A operação de resgate financeiro a Portugal dará um lucro aproximado de 520 milhões de euros ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e de 1060 milhões aos países europeus (...) A margem de lucro resulta da diferença entre a aplicação da taxa de juro final praticada e o custo de financiamento do FMI e da UE, que no caso de Portugal deverá rondar 3%, com tendência para subir.

Luís Ribeiro, DN.

Por que não fazemos de 5 de Junho um referendo?

As eleições não serão a oportunidade de escolha entre Esquerda e Direita (ou entre PS e PSD-CDS) de que falam Socrates e Coelho. De acordo com o guião definido por quem manda na UE e é dono de Portugal, o governo terá de ser “de ampla maioria”, isto é PS-PSD com ou sem CDS, pouco importa.

Ao que tudo indica, o programa deste governo estará também já definido antes de 5 de Junho. Quando formos votar, PS e PSD terão já negociado e assinado em nosso nome o tal programa UE-FMI ainda mais “rigoroso” do que o PEC IV.

É certo que o guião dos donos de Portugal é omisso quanto ao primeiro-ministro do governo que vai executar este programa: ou Socrates (com um governo PS-PSD, sem Coelho), ou Coelho (com um governo PS-PSD, sem Socrates). Admito que possa não ser indiferente, mas, mesmo assim, não vejo razão suficiente para desperdiçar votos de esquerda na pequena diferença que isso possa fazer.

O que é importante no curto prazo é saber se consentimos ou rejeitamos um novo programa de austeridade irresponsável que nos pode trancar numa rota de desastre. 5 de Junho poderá ser transformado no nosso referendo Islandês, na nossa oportunidade de rejeitar o austeritarismo sem fim à vista que não seja a bancarrota em 2013 quando estivermos exaustos e os bancos alemães e franceses limpos de títulos da dívida portuguesa como dá jeito a Merkel e Sarkozy.

E se o “não” ganhasse esse referendo? Nesse caso teríamos de fazer o que não dá jeito a Merkel e Sarkozy: reestruturar a dívida agora e não em 2013. Não é uma escolha sem consequências, é simplesmente o menos mau dos males na situação em que vamos estar a 5 de Junho juntamente com os gregos e os irlandeses, pelo menos.

domingo, 10 de abril de 2011

Para superar a rigidez liberal

A narrativa do deslumbramento com a entrada do FMI, que é a mesma onde se baseiam as saudações às entradas do Banco Mundial nos países mais pobres, resulta deste vício intelectual do liberalismo: cortando despesas, limitando e moralizando o estado, vamos criar condições para uma economia mais forte, mais sólida, e isto é inquestionável. As entradas do FMI nos vários países sempre resultaram no inverso, e a explicação, como digo alguns posts abaixo, resulta de que gerir uma economia não é o mesmo que gerir uma casa de boas famílias, disciplinada e moralmente sã. Cortar despesas num período de recessão é uma receita pouco racional, fundada num preconceito ideológico, e que nos custará a recessão de uma geração.

Luís Gaspar, de regresso no blogue elasticidade.

Pequeno país, grande lição

A vitalidade democrática é o melhor antídoto contra a tragédia da expropriação financeira: Islandeses rejeitam pagar dívida.

sábado, 9 de abril de 2011

Clock Opera - "Once and for all"

A democracia como obstáculo

Já sabemos que o próximo governo português vai ser decidido, não a 5 de Junho, mas lá para meados de Maio, quando as condições do empréstimo do FEEF/FMI forem definidas. Não contente com isso, um grupo de personalidades assina hoje um manifesto que, para além de um conjunto de banalidades, assinala dois importantes pontos: 1- “(...) compromisso entre os principais partidos, com o apoio do Presidente da República, no sentido de assegurar que o próximo Governo será suportado por uma maioria inequívoca (...)”; 2- “(...) consenso mínimo deverá formar-se sobre o processo de consolidação orçamental e a trajectória de ajustamento para os próximos três anos prevista na última versão do Programa de Estabilidade e Crescimento”. Conclusão: a democracia é uma chatice e o que é necessário é um compromisso entre os partidos para que os portugueses não tenham opção de escolha. O único caminho possível é o da austeridade, com os excelentes resultados que todos conhecemos.

Não surpreende a convergência, e coincidência, destes intelectuais orgânicos do poder com as declarações de Alexandre Soares dos Santos, presidente do grupo Jerónimo Martins: "Tem de haver um acordo pré-eleitoral" entre os principais partidos. O que, sim, surpreende é ver nomes como os de Boaventura Sousa Santos, Siza Vieira ou Júlio Pomar a fazerem o frete. Sinceramente, espero que tenham sido ludibriados.

Entretanto, olhos postos na Islândia. Uma lição em curso.

A crise, a dívida e os meios de a conjurar


Este é o título do artigo onde procuro fazer o diagnóstico da actual crise e avançar algumas pistas para a sua superação. Foi publicado no número deste mês do Le Monde Diplomatique - edição portuguesa. Um número com muitas razões para uma visita ao quiosque mais próximo. Deixo aqui um excerto, sublinhando a sua actualidade, já que, aparentemente, boa parte do empréstimo agora negociado está destinado à banca nacional:


Dívida pública e privada: as duas faces da mesma moeda

Se a dívida pública está no centro da actual turbulência financeira, ela não pode pois ser dissociada dos problemas que afligem a economia portuguesa nas últimas duas décadas. O endividamento externo privado, no final de 2009, totalizava três quartos de todo o endividamento externo, sendo que, destes, outros três quartos eram dívida bancária. De facto, ao contrário do que o debate nacional pode levar a pensar, é no sector bancário que se jogam hoje os principais riscos futuros da economia portuguesa. Os bancos portugueses perderam há pouco menos de um ano a confiança dos mercados financeiros de que precisavam para refinanciar a sua dívida. O enorme endividamento, as pessimistas previsões de crescimento económico e a elevada percepção de risco da dívida pública traduziram-se na impossibilidade de recurso aos mercados. Esta crise de liquidez – na medida em que diz respeito a compromissos de curto prazo – foi solucionada através de empréstimos de emergência do Banco Central Europeu (BCE). No entanto, a imprensa económica internacional tem assinalado a vontade do BCE de acabar quanto antes com estas linhas de financiamento. Assim se percebe a pressão exercida pelo governo português para que os bancos diminuam o tamanho dos seus balanços (vendendo activos e reduzindo o seu endividamento) e aumentem os seus capitais próprios. Tal processo terá como imediata consequência a redução do crédito concedido à economia, agudizando a recessão, ao mesmo tempo que não é de todo certo que consiga ser bem sucedido.

No actual contexto de pressão financeira sobre as famílias e as empresas é provável que o crédito mal parado aumente consideravelmente, devido não só à redução salarial e ao aumento do desemprego, mas também à mais do que previsível subida das taxas de juros praticadas pelo BCE durante este ano, obcecado que está pelo actual aumento da inflação decorrente da subida dos custos das matérias-primas e não por qualquer questão monetária. Por outro lado, deve sublinhar-se que os bancos portugueses, na tentativa de melhorarem a sua própria posição internacional – ao mesmo tempo que beneficiam dos elevados juros –, têm sido os grandes compradores (só superados pelo BCE) de títulos de dívida pública nacional. Títulos de que cujo valor os bancos provavelmente não vão ser reembolsados. Ou seja, a crise de liquidez pode transformar-se numa crise de solvabilidade, isto é, na incapacidade dos bancos de cumprirem os seus compromissos de longo prazo.

O resultado de um sistema financeiro fragilizado num contexto de crise económica pode, por isso, dar origem a um cenário irlandês para a economia portuguesa: recusa de financiamento do BCE, que se soma à recusa dos mercados internacionais, necessidade de capitalização dos bancos por parte do Estado, nova explosão da dívida pública, ruptura económica geral. Tudo isto num contexto em que o Estado português se aproxima do cenário grego de insustentabilidade da dívida pública. De qualquer forma, na ausência de mais e melhor informação sobre a actual situação da banca, que nos permita um diagnóstico mais detalhado, importa sublinhar a inegável relação íntima entre a situação financeira do Estado e da economia privada. Por isso, qualquer proposta de saída da crise deve articular estas duas dimensões: nos efeitos imediatos da ruptura financeira iminente e nas suas causas estruturais.

Por outros standards


Economistas entregam queixa na PGR contra agências de rating: Um grupo de economistas quer a abertura de um inquérito contra as agências de rating pelo “crime de manipulação do mercado” (...) O documento é subscrito pelos docentes da Universidade de Coimbra José Reis (professor de Economia) e José Manuel Pureza (de Relações Internacionais e também líder parlamentar do Bloco de Esquerda) e Manuel Brandão e Maria Manuela Silva, economistas do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG).

A imagem que acompanha esta oportuna e clarificadora iniciativa cidadã é de Gui Castro Felga. Economia política por outros meios.

Desunião monetária

Entretanto, a caracterização da zona euro feita pelo economista de Oxford Andrea Boltho, em 2003, ganhou uma renovada acuidade: “vista de fora, a zona euro parece um daqueles países em vias de desenvolvimento, a quem o FMI impôs um dos seus rígidos programas de estabilização que o tornaram tão famoso: baixa inflação, rectidão fiscal, desregulamentação, privatização; tudo comandado por um grupo de funcionários que ninguém elegeu.”

Doutrina do choque na desunião

Sem surpresas, a declaração do Eurogrupo e dos ministros das finanças da desunião usa os termos assistência e apoio para se referir a uma intervenção externa que significa a transformação definitiva da União num imenso FMI, à semelhança dos programas de ajustamento dos anos oitenta e noventa, mas sem desvalorização cambial.

Algumas palavras-chave da declaração: “condicionalidade estrita”, ou seja, condições draconianas para empréstimos destinados a evitar ou a minorar as perdas dos credores; “ajustamento orçamental ambicioso”, ou seja, aprofundamento da austeridade recessiva geradora de desemprego, de destruição da capacidade produtiva nacional, de quebra dos salários directos e indirectos; “remoção da rigidez no mercado de trabalho”, sendo a expressão rigidez uma das mais reveladoras, como temos insistido, da orientação ideológica neoliberal destes programas de distribuição do rendimento das classes populares para os mais ricos; “medidas para manter a solvabilidade e liquidez do sector financeiro”, ou seja, todo o apoio à banca sem quaisquer condições; PEC IV como “ponto de partida”, ou seja, austeridade assimétrica permanente. Isto para já não falar do apelo ao esvaziamento da democracia, com exigências de entendimento entre os partidos em torno de um programa retintamente neoliberal.

Perante esta desgraçada economia política, não percebo o que passou pela cabeça de alguns intelectuais de esquerda, que subscreveram um apelo a uma convergência nacional para legitimar esta barbárie, mesmo que tal (des)orientado apelo tenha uma ou outra flor retórica vagamente progressista. Tais flores não resistirão à agreste realidade das políticas públicas que serão adoptadas se esta linha vencer. As esquerdas devem responder à doutrina do choque e do pavor com propostas clarificadoras, que apontem para um saudável rebelião económica das periferias (a Espanha vem a seguir). Só assim se quebrará o consenso dos grupos sociais dominantes no país e na desunião.

Esperemos que a vitória do não seja exemplar...

Os islandeses decidem, este sábado, em referendo, se o Estado deve ou não pagar a dívida de 4 mil milhões de euros à Holanda e ao Reino Unido. As sondagens apontam para a vitória do "não", tal como aconteceu no referendo do ano passado.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Uma boa notícia, por favor!

Wolfgang Münchau, alemão, prestigiado jornalista de economia do Financial Times, disse há uns meses:

"Depois de olhar para isto [Fundo Europeu de Estabilização Financeira] com alguma atenção, acho difícil imaginar uma situação em que um país possa receber empréstimos do FEEF e a partir daí viver feliz para sempre."

De facto, embora inferior ao das emissões mais recentes, a taxa de juro a que o FEEF financiará Portugal será sempre incomportável pela muito evidente razão de a nossa economia passar a estar em permanente recessão com as políticas fixadas no "memorando de entendimento" do empréstimo.

Ou seja, mesmo que o défice orçamental venha a descer abaixo dos 3%, a dinâmica dos juros acompanhada da quebra do Produto farão subir de forma continuada o peso da dívida no PIB. Os mercados já sabem isso e, por conseguinte, vão continuar a fazer um largo desconto no valor da dívida portuguesa transaccionada no mercados.

Pior ainda, como sabem que o mecanismo europeu permanente (após 2013) penalizará os privados com um corte no valor dos títulos no caso de ser necessário reestruturar a dívida de um país financiado pelo FEEF/FMI, no futuro ninguém vai querer comprar dívida portuguesa.

Assim, teremos a Grécia, Irlanda e Portugal para sempre amarrados à austeridade permanente e sem acesso a taxas de juro comportáveis? A resposta é Não. Pelo menos por duas razões: 1) Porque a seguir vem a Espanha, uma outra dimensão financeira, e os cidadãos alemães por essa altura já estarão fartos de pagar impostos para manter o euro. 2) Porque, num contexto de convulsão social e política inevitável, um ou mais destes países amarrados ao FEEF/FMI acabará por reestruturar a sua dívida e sair do euro.

Sinceramente, gostava que Francisco Louçã e Jerónimo de Sousa, após a sua reunião de amanhã, nos viessem propor uma grande candidatura de «Convergência e Alternativa» que trave o caminho para o abismo em que o País vai lançado.

Balanços sectoriais sem moralismo


Luís Aguiar Conraria descobriu um excelente gráfico. Pena é a sua análise em português e em inglês. Os privados são bons, que já se ajustaram, o Estado é mau porque ainda não o fez. É isso? Partindo da abordagem dos balanços financeiros sectoriais – onde a soma dos saldos dos sectores externo, público e privado é sempre igual a zero por definição –, tendo o saldo do sector externo um pequeno declínio porque são estruturais os problemas da inserção dependente da economia portuguesa, então o maciço, súbito e necessariamente descoordenado esforço dos privados para recomporem os seus balanços, expressão da crise global, tinha necessariamente de conduzir a um brutal aumento do défice do sector público. Aqui ou em qualquer outro país. Com este ou com outro governo. Reparem na perfeita simetria do gráfico. Eu não tenho qualquer simpatia por Sócrates e pelas suas políticas injustas, mas também não tenho simpatia pelo moralismo das finanças públicas dos economistas de bloco central, que esconde um programa imoral. Em português e agora em “estrangeiro”.

Adenda: quem quiser saber mais sobre esta questão dos balanços, pode ler com proveito o artigo de Rob Parenteau sobre os piigs que vão para o matadouro (partes 1 e 2). Hei-de voltar a este assunto.

Os donos do tempo

A noite televisiva do dia em que Portugal decidiu solicitar à Comissão Europeia "ajuda" externa (com aspas) colocou, uma vez mais, à disposição da ERC (Entidade Reguladora para a Comunicação Social) material muito interessante para medir o pulso ao grau de pluralismo que o debate político-económico tem entre nós.

Excluíndo os comentários de representantes dos diferentes quadrantes políticos e dos jornalistas de Economia (residentes) dos vários canais televisivos, um zapping pelos programas que se dedicaram à discussão da decisão do governo e uma consulta das páginas de internet das diferentes estações poderão ser muito esclarecedores a respeito das vozes que colonizam o espaço mediático.

A RTP programou um Especial Informação (Portugal e o Futuro), alinhando num dos painéis principais (de comentário económico), Daniel Bessa (Economista), António Pires de Lima (Economista/Gestor de Empresas), Fernando Ulrich (Presidente do BPI) e Tomás Correia (Presidente do Montepio Geral). Sim, o lema do programa era «Portugal e o Futuro». Na página internet da RTPN, entre as 23.30h e as 24.00h, os destaques disponíveis de comentadores (para lá do universo da representação partidária e do jornalismo económico) são concedidos a: João Duque (Economista), António Saraiva (Presidente da CIP), João Vieira Lopes (presidente da CCP), Tomás Correia (Presidente do Montepio) e Fernando Ulrich (Presidente do BPI). Na TVI24, o Jornal da Noite deu a palavra a José Manuel Fernandes, Helena Matos e Silva Peneda, destacando a página internet deste canal as opiniões de António Saraiva (CIP), João Vieira Lopes (CCP) e «Sindicatos» («chapéu» usado para mencionar Carvalho da Silva e João Proença). Na passagem pela SIC Notícias, a edição da Noite integrou um debate entre Guilherme Silva (PSD) e Ruben de Carvalho (PCP), ou seja, enquadrado partidariamente, e o comentário de Sarsfield Cabral e Daniel Oliveira.

É claro que a identificação dos comentadores escolhidos não basta para o estudo aprofundado a que a ERC se deveria regularmente dedicar (embora algumas «onmipresenças» sejam já, por si só, muito significativas). Uma análise de conteúdo do discurso e de posicionamento face às questões essenciais que estão em jogo revelar-se-ia muito clara, dando seguramente conta de como são estreitas, na maior parte dos casos, as balizas do debate e de como se constroem os caminhos do pensamento único, por mais suicídas que, comprovadamente, demonstrem ser.

Modesta proposta

A reunião entre as direcções do BE e do PCP deve deixar lastro político-económico mínimo. E que tal uma comissão aberta a vários intervenientes, economistas das esquerdas e não só, que aponte qual o caminho a tomar para a reestruturação da dívida. Uma proposta global que os dois partidos poderiam subscrever?

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Antes, não depois!

No dia em que o Governo pediu ajuda financeira à (des)União Europeia importa perguntar: a quem serão pedidos (ainda) mais sacrifícios?

Uma elementar noção de justiça diz-nos que devem ser os que recebem anualmente mais rendimento e têm mais património. Mas há boas razões para recear que, uma vez mais, serão os muitos que detêm a menor parcela do rendimento os escolhidos para suportar a maior parte do fardo da política que nos vai levar a mais recessão, mais cortes na despesa, mais recessão, mais ... até descermos à rua e fizermos um novo 25 de Abril.

A menos que as esquerdas ainda nos surpreendam e, erguendo-se à altura da situação que o País vive, apresentem aos cidadãos uma candidatura da «esquerda grande», da esquerda que está em condições de governar em ruptura com a austeridade. E não a promessa de alguma convergência para depois do voto.

Não é ajuda o que está em cima da mesa

Notas soltas sob a forma de previsões. Primeira: o termo “ajuda externa” desaparecerá rapidamente da discussão entre a generalidade dos cidadãos. Só os bancos, os economistas neoliberais e outros intelectuais disponíveis o continuarão a usar pelo tempo que a sua credibilidade reduzida permitir. Afinal de contas, a nível nacional, o capital financeiro é o putativo ganhador do anúncio que Sócrates fez hoje e que Passos Coelho se apressou a saudar, claro: depois de terem andado a “intermediar” entre o BCE e o Estado, depois de terem tido garantias e vantagens fiscais do Estado bombeiro, os bancos portugueses viraram-se directamente para o centro europeu e, revelando todo o seu poder a nível nacional, cuidam dos seus gananciosos interesses. Liquidez é a palavra-chave. Solvabilidade logo se vê.

Entretanto, as taras dos sucessivos PEC acentuar-se-ão numa intervenção externa que representa, na realidade, o seu culminar. A economia política da austeridade já é clara há algum tempo: redução dos salários directos e indirectos, também facilitada pelo crescimento de um desemprego de massas permanente. Agora temos empréstimos garantidos para ir impedindo perdas no sector financeiro do centro e de uma periferia cada vez mais subalterna.

A Grécia e a Irlanda aí estão a indicar o que acontece em intervenções externas cuja política económica é inspirada nos famosos ajustamentos estruturais de tão má memória a sul e a leste: recessões com custos sociais que são sistematicamente transferidos para as classes populares obrigadas a escolhas cada vez mais trágicas devido à fragilização da provisão pública. Tudo isto acompanhado pela venda activos nacionais a preços de saldo, o que muito agrada aos capitais que circulam por aí, mas que representa a fragilização das capacidades económicas do país. 1983 é uma má referência. Não podemos desvalorizar a moeda, o Estado não tem a presença que tinha, depois de décadas dominadas por duas desgraçadas palavras na economia: liberalização e privatização.

Uma segunda previsão: acabará definitivamente a hegemonia do europeísmo feliz do bloco central e dos seus intelectuais. A União Europeia deixará de ser sinónimo de progresso e coesão social. A natureza dos seus arranjos institucionais, desde que Maastricht abriu caminho a um euro disfuncional, já apontavam para este resultado económico das periferias. Chegou a altura do realismo: temos de lutar contra o projecto de acumulação por expropriação do que é público. Estamos no desgraçado clube PIG? O clube alargar-se-á.

Um país que se queira começar a libertar desta economia da chantagem reforçada só pode pensar numa coisa: apresentar uma proposta, articulado com quem está na mesma situação na Europa, de reestruturação da dívida e do sector financeiro, associado a um reforço do controlo politico sobre a banca, uma proposta que coloque o centro perante as suas responsabilidades. Não se trata de pedir ajuda, trata-se de criar “incentivos” para que um interesse próprio mais esclarecido possa emergir no centro europeu desta desgraça.

Progressos à esquerda

Além da anunciada reunião entre o BE e o PCP na próxima sexta, abrindo assim espaço para a importante concertação de estratégias entre os dois partidos na actual conjunctura, devem ser assinalados os progressos feitos por ambos os partidos no campo da proposta política. De facto, face à gravidade da situação, os dois partidos à esquerda têm que se afirmar como alternativas imediatas de governo, indo além da recusa desta suicidária austeridade. São necessárias soluções de esquerda, não só no campo da crise de financiamento do Estado, mas também nos problemas estruturais (défice externo, endividamento privado) que estão por detrás do primeiro.

Ao ler as notícias de ontem relativas aos dois partidos, foi com satisfação que identifiquei muitas das propostas que aqui temos defendido: controlo público da banca comercial, renegociação das parcerias público-privadas, reestruturação da dívida pública, aliança das periferias no campo europeu, etc. Outras medidas como a venda de títulos detidos por instituições públicas, defendida pelo PCP, ou empréstimos do BCE, intermediados pela CGD, propostos pelo BE, são propostas originais que respondem às urgências do momento. São interessantes e merecem atenção. A reflexão aqui defendida sobre a União Monetária e o seu futuro é também oportuna.

Este é, no entanto, um caminho longo em que as propostas têm de ser bem ponderadas, debatidas sem tabus e honestas nas suas implicações. Precisamos de um programa sistémico, de articulação sectorial entre o sistema financeiro, indústria, agricultura e o Estado, que aponte os caminhos para uma economia com crescimento, ambientalmente sustentável, geradora de emprego e de trabalho com qualidade. Não começamos do zero e não precisamos de GPS exacto para um futuro governo. Exigimos esperança, sabendo que o caminho se faz caminhando.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Eles têm força e a democracia?

“Como é possível que o Banco de Portugal promova uma reunião de banqueiros para obrigar o país a recorrer ao FMI?” Tiago Mota Saraiva não usa a sigla FEEF e talvez por isso à pergunta se sigam outras observações igualmente pertinentes. Assim se revela uma vez mais a natureza deste Banco de Portugal. Uma parte do Estado foi capturada e transformou-se no comité executivo dos negócios do capital financeiro. Na notícia citada diz-se “que os bancos nacionais acudiram recorrentemente o Estado, financiando-o directamente através dos leilões dívida ou como ‘intermediários’ do Banco Central Europeu.” Acudiram? Não há paciência para esta novilíngua que mascara o processo de expropriação financeira em curso. Os bancos portugueses têm ganho o que podem com esta “intermediação”, como se sabe. Depois da desastrosa austeridade que exigiram, anseiam agora pela intervenção externa. Afinal de contas, sabe-se que uma parte do planeado empréstimo europeu, no valor de pelo menos dez mil milhões de euros, seria um presente do Estado bombeiro para os bancos. Até quando é que isto vai durar? Até termos força política para usar a arma da reestruturação da dívida e para disciplinar os bancos, reafirmando o controlo do poder politico democrático sobre esse bem público que dá pelo nome de crédito.

O pluralismo segundo a ERC

Vale a pena ver a deliberação (e respectivo relatório) que a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) produziu sobre a Petição pelo pluralismo de opinião no debate político-económico, remetida a esta entidade a 30 de Outubro de 2010.

Fazendo eco de uma percepção há muito sentida, que se agudizou na sequência da apresentação das medidas de austeridade do PEC III, os subscritores da petição insurgiram-se contra o carácter monolítico (e por isso enviesado e redundante) da discussão e comentário político-económico na comunicação social, particularmente nos canais televisivos. Análises confinadas ao universo da via austeritária, "como se o intenso debate quanto aos fundamentos doutrinários e às opções políticas que estão em jogo pura e simplesmente não existisse", e como se não pudessem ser identificados "diversos sectores político-sociais e reputados economistas [que contestam] a lógica das medidas adoptadas, alertando para o resultado nefasto de receitas semelhantes aplicadas em outros países e denunciado a injusta repartição dos sacrifícios feita por politicas que privilegiam os interesses dos mercados financeiros liberalizados." A medina-carreirização do debate, portanto, em todo o seu esplendor.

Perante a denúncia, a ERC decide, por um lado, solicitar aos directores de informação dos diferentes canais «informação detalhada sobre os intervenientes convidados a participar» nos programas de debate político-económico entre 29 de Setembro e 29 de Outubro, obtendo apenas respostas do director de informação da SIC / SIC Notícias e da RTPN, e conformando-se assim com a ausência de resposta por parte dos restantes canais. Por outro lado, procede a um rastreio da programação entre 14 e 20 de Fevereiro, que lhe permite elaborar uma lista de comentadores convidados por diferentes programas, sem que dela faça - como seria expectável - a análise qualitativa de discurso. Tal como se demite de recolher pareceres de economistas e jornalistas de informação económica que pudessem, a partir de pontos de vista diferenciados, avaliar o grau de pluralismo existente em matéria na discussão político-económica.

Considerando que «a petição coloca uma problemática difícil de abarcar, na medida em que tem na sua origem distintas concepções ideológicas relativas ao funcionamento do sistema económico-financeiro, que transcendem em larga medida qualquer representação de base político-partidária (ou de outra natureza), tornando-se particularmente complexo definir um quadro de referência conceptual para informar a análise», a ERC não se coíbe, todavia, de concluir “que o comentário sobre assuntos económicos é tendencialmente diversificado envolvendo diferentes tipos de actores sociais, desde jornalistas, políticos, empresários e especialistas académicos”.

Perante uma resposta da ERC manifestamente insatisfatória (e até contraditória nas conclusões a que chega) face às legítimas expectativas dos subscritores da petição, entenderam os seus promotores remeter a esta entidade um comunicado de resposta, que se encontra disponível aqui.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Fundos

Ferreira Leite ao lado de Passos Coelho sobre apoio à vinda do FMI. Apesar dos apelos interesseiros de Cavaco, que já aqui critiquei, para que não se fale de FMI, mas sim de FEEF, os seus camaradas nem sequer se dão ao trabalho de procurar esconder a sua ansiedade pela entrada do fundo – FEEF e/ou FMI, tanto faz –, que é o culminar das desastrosas políticas de austeridade que sempre apoiaram. No meio de tanta insensatez neoliberal, Silva Peneda destaca-se há muito na área do PSD por manter uma certa razoabilidade social-democrata. No colóquio do IDEFF, voltou a alertar para as fragilidades da governação económica da zona euro – “o modelo da União Europeia está esgotado” –, assinalando também que “a criação de emprego nunca se resolveu por via legislativa”. A reafectação dos direitos e obrigações entre patrões e trabalhadores começa por ter impactos distributivos, digo eu. Ainda de acordo com o Negócios, Peneda concluiu que “a disciplina orçamental não pode ir ao ponto de impedir o crescimento económico”. Isto só faz sentido, no actual contexto, se for uma forma diplomática de dizer que, dada a sua natureza recessiva, é preciso repensar as actuais políticas de austeridade, até porque a consolidação orçamental, no essencial, é consequência do crescimento da economia e da geração de emprego. Uma iniciativa diplomática das periferias, que altere os termos do constrangimento europeu, como Peneda bem sabe, é essencial neste contexto.

domingo, 3 de abril de 2011

Debater a (des)união

Depois de uma oportuna conferência sobre Portugal e o FMI, o IDEFF volta a estar no centro do debate, desta vez sobre a última cimeira europeia, no próximo dia 4 de Abril, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Eduardo Paz Ferreira e a sua equipa dão mais um contributo para um plural debate interdisciplinar sobre questões de integração europeia, ou seja, sobre Portugal. A multiplicação de debates desta natureza é uma condição necessária podermos superar o romance de mercado europeu que tão caro nos está a custar.

Para lá desta economia cruel

A crise, sempre a crise. Desemprego como nunca, perda de salários, aumento de impostos, uma dívida externa que arruína o país, FMI à porta, tudo temperado com vagos escândalos financeiros demasiado próximos do poder político. A economia era um mistério, agora é uma ameaça. Este livro afirma que esta crise não é uma inevitabilidade, é antes a consequência da corrupção da economia, da degradação da estrutura produtiva, da destruição do trabalho, da ganância financeira. E é uma escolha de governantes, apoiados na pretensão científica absolutista de muitos economistas, que aspiram a criar um século de precarização. O livro convida os leitores a discutirem a crise no tempo do FMI, a analisarem as teorias económicas, a conhecerem os problemas e a escolherem o que vai ser da nossa vida.

Francisco Louçã apresentará o seu livro na próxima quinta-feira, dia 7 de Abril, na FNAC do Chiado, em Lisboa.

sábado, 2 de abril de 2011

Colourmusic - "Tog"

A única escolha realista para a recuperação



Todos sabemos que por omissão também se fazem escolhas importantes, escolhas que afectam profundamente as nossas vidas. Assim, se ficarmos em casa nas próximas eleições, ou depositarmos um voto branco ou nulo na urna, estaremos a escolher por omissão a via do aprofundamento da austeridade.

A austeridade não oferece qualquer saída para a crise da dívida pela muito simples razão de que as políticas de austeridade produzem recessão, o que inviabiliza a possibilidade de o Estado gerar um saldo orçamental positivo (recessão implica mais despesa social e menos receita fiscal).

Cada défice, ainda que menor que o do ponto de partida, é sempre um acréscimo ao total da dívida. Dado que o Produto Interno Bruto diminui com a recessão, o quociente Dívida/PIB aumenta depressa (numerador a subir e denominador a descer). Até hoje ainda não vi na televisão um economista a explicar como se pagam as dívidas seguindo o caminho da recessão. Bem pelo contrário, já se começa a admitir que não é possível pagar tudo o que devemos. Como já há muito mostrei (aqui), o problema da periferia da zona euro não é um problema de liquidez mas de solvabilidade. Admitamos pois que, com o acordo dos credores, reestruturamos a dívida. E depois?

Para os que entendem que a situação a que chegámos foi apenas uma "derrapagem despesista" (o argumento já foi bem rebatido pelo Nuno Teles), trata-se de reduzir os encargos com o serviço da dívida (juros mais amortizações) e, aprendida a lição, de passarmos a viver em permanente austeridade. Porventura inscrevendo na Constituição que, ao longo de um ciclo económico, as contas devem estar equilibradas. A via da germanização do Sul da Europa.

Outros, como eu, entendem que a existência na zona euro de economias com capacidade competitiva muito desigual é uma causa determinante do endividamento dos mais frágeis. Os países comercialmente excedentários têm convertido grande parte dos seus lucros em aplicações financeiras que, através do sistema bancário europeu e com marketing agressivo, se convertem em crédito nos países deficitários. Por isso, recusamos interpretar a crise da dívida segundo a metáfora da economia doméstica: "não soubemos gerir bem a nossa economia", ou "gastámos mais do que tínhamos".

Economia das trevas à parte, é preciso não esquecer que o endividamento de uns países é a contrapartida da acumulação de créditos para outros. Se alguém diz que quer acabar com as nossas dívidas está a dizer que quer acabar com os créditos que a Alemanha tem sobre nós, mesmo que isso tenha ocorrido sobretudo via bancos espanhóis. Mas é muito mais fácil dizer do que fazer.

E aqui entra a pergunta crucial: uma vez reestruturada a dívida por acordo amigável, como é que vamos evitar um novo ciclo de endividamento, tendo em conta que a nossa desvantagem competitiva não se alterou? É conhecida a receita: «temos de subir rapidamente na cadeia de valor».

O certo é que há décadas que andamos a tentar generalizar a estratégia da concorrência pela inovação e o resultado está à vista: a falência de centenas de empresas industriais, um enorme legião de desempregados de longa duração com baixa escolaridade, a que se juntaram largos milhares de desempregados com escolaridade superior. Salta à vista que as empresas portuguesas competitivas à escala global não são assim tantas e visivelmente não estão em condições de absorver este desemprego massivo e crescente.

Do meu ponto de vista, não temos o direito de destruir as vidas de milhares de pessoas apenas para continuar a alimentar a ilusão do "Portugal no pelotão da frente".

Para Portugal, e para o resto da periferia da zona euro, "permanecer na mesma zona monetária da Alemanha significa condenar esses países a anos de deflação, alto desemprego, e à convulsão política. Uma saída da eurozona pode ser neste momento a única escolha realista para a recuperação." Dani Rodrik dixit, e eu concordo.

Por isso, tomei uma decisão. Vou trabalhar no sentido de que no dia 5 de Junho os eleitores possam fazer uma escolha entre duas vias europeístas, a da austeridade depressiva ou a do desenvolvimento sustentável.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Keynes tem as costas largas

Helena Garrido, sub-directora do Jornal de Negócios, afirmava ontem num vídeo do seu jornal: "O grande disparo do défice foi em 2009, quando houve adopção de medidas extraordinariamente expansionistas. Não nos podemos esquecer que, em 2009, foram adoptadas medidas como subsídios e apoios às empresas para combater a crise. Estávamos numa fase muito keynesiana de combate à crise". Hoje, Campos e Cunha, na sua crónica no Público, vai pelo mesmo diapasão: "Estamos a sofrer as consequências da dita política keynesiana de 2009 que teria permitido que a recessão fosse apenas de -2,6%".

Tenho muita pena, mas, mesmo já tendo passado um ano e qualquer coisa, ainda me lembro do que se passou em 2009. Lembro-me que o défice foi sobretudo causado por uma repentina retracção do produto, causado por quebras nas exportações e investimento. O défice disparou, não pela medidas extraordinárias de apoio à economia, mas sobretudo devido aos estabilizadores automáticos (nomeadamente quebra de receitas e aumento de despesas sociais). As medidas de estímulo económico tiveram um contributo muito modesto porque... eram muito modestas. Demasiado, aliás.

Nada como ver o relatório das contas do Estado para 2009, que nos diz: "O défice do subsector Estado em 2009 ascendeu a 14,1 mil milhões de euros, o que representa uma degradação de 8,9 mil milhões de euros relativamente a 2008, em resultado da quebra da receita efectiva em 6,1 mil milhões de euros e de um aumento da despesa em 2,8 mil milhões de euros."

Afinal, não foram tanto as despesas que dispararam. Foram sobretudo as receitas que afundaram. Ouvindo o que se diz na TV, parece mentira. Mas vamos às medidas "keynesianas". Segundo o mesmo relatório, foram gastos 824 milhões de euros nestas expansionistas medidas. Não chegam a 0,5% do PIB, num défice que aumentou 6,5% do PIB (números anteriores à revisão desta semana).

Da fraude...

Ficámos a saber que a crise mantém o engenho: em 2009, apenas 30% das empresas pagaram IRC, mas a surpresa das surpresas estava reservada para o jardim das empresas: “das quase três mil empresas instaladas na Zona Franca da Madeira, apenas 51 pagaram IRC em 2009”. Esta fuga ao fisco, institucionalmente facilitada, deteriora a actividade empresarial, prejudicando as empresas que cumprem as suas obrigações. De qualquer forma, a tendência para a redução da taxa de IRC não parece ter aumentado a predisposição empresarial para pagar impostos. A narrativa liberal da promoção da virtude através do relaxamento fiscal é parte da chamada fraude inocente...

Excesso de mercado, défice de democracia...

Excertos da economia sensata de Jean-Paul Fitoussi, ontem no Negócios: “De facto, hoje em dia os incendiários da economia global transformaram-se em fiscais e acusam os bombeiros de ter provocado as inundações (…) Existem pressões para reescrever a história desta crise, descrevendo os efeitos como se fossem as causas e culpar os governos que geriram a crise desde o início. De forma paradoxal, a sensação crescente de que se evitou uma catástrofe deu lugar a uma exigência, cada vez maior, para que os governos cortem os gastos públicos e sociais e diminuam os programas de investimento. As pessoas estão a regressar às políticas que provocaram a crise. (…) Talvez a questão mais importante a destacar seja o facto do caminho para uma maior competitividade, independentemente do custo, ir apenas agravar a crise. As políticas baseadas no crescimento das exportações só pode ser bem sucedido se existirem países dispostos a ter défices orçamentais. Tendo em conta que os desequilíbrios globais que levaram à crise continuam por resolver, o aumento da competitividade será uma vitória de Pirro que provocará uma grave redução dos níveis de vida e do consumo.”

Aproveito para relembrar excertos de uma entrevista que este economista keynesiano francês deu à Alternatives Economiques antes da crise, em 2007, onde sintetizava a perversa engrenagem criada pela configuração ainda em vigor na União Europeia, graças à qual os Estados perderam instrumentos de política económica, sem que essa perda tivesse sido compensada à escala europeia: "na ausência de outros instrumentos de política económica, é como se os governos só tivessem à sua disposição políticas tendentes a reduzir os custos relativos do trabalho através da concorrência fiscal e social". Na mesma entrevista, Jean-Paul Fitoussi comparava a União a uma "espécie de tragédia grega: a partir do momento em que os instrumentos de gestão da política económica estão bloqueados, os governos não têm outra escolha a não ser praticar políticas económicas que agravam a situação".