domingo, 25 de maio de 2008

Enviar o «Consenso de Washington» para o caixote do lixo da história

A comissão internacional para o crescimento e desenvolvimento, presidida por Michael Spence, Prémio Nobel da Economia em 2001, divulgou recentemente o seu relatório final. Ainda não li. O tempo não dá para tudo. Fica o interessante sumário do Financial Times de sexta-feira: «o ‘Consenso de Washington’ - estabilizar, privatizar, liberalizar - está morto. Longa vida ao novo pragmatismo». Esta parece ser, segundo o FT, a mensagem central do relatório. Não há grande novidade aqui. Nada que muitos economistas do desenvolvimento, partindo da experiência dos países que foram submetidos ao tal consenso e dos ingredientes do sucesso económico asiático, não tivessem identificado há algum tempo. No entanto, é sempre bom sublinhar, como parece fazer o relatório (ainda segundo o FT), alguns pontos básicos: (1) nenhum país registou taxas de crescimento elevadas sem investimentos públicos maciços em infra-estruturas, educação e saúde para todos; (2) não há crescimento sem um compromisso público com o combate às desigualdades extremas nos resultados alcançados e com a criação política de ampla igualdade de oportunidades (aqui está o principal bloqueio do nosso país na actualidade); (3) as questões ambientais devem de ser encaradas desde os primeiros estádios do processo de crescimento.

Uma articulação de Estado e de mercados, com regras e fronteiras contestadas e em permanente evolução. As ideias da impureza económica e da economia mista parecem estar de volta. De forma discreta e gradual, mas também de forma segura. Ainda bem. Este é um terreno muito mais favorável para a teoria económica crítica e para políticas públicas progressistas. Aqui há muito trabalho a fazer em Portugal. No nosso país, o combate à desigualdade de rendimentos ainda é considerado «populista» ou questão de inveja (discute-se a suposta motivação de quem defende políticas igualitárias em vez da substância do argumento). Isto quando até o Banco Mundial, a partir de extenso trabalho empírico, reconhece finalmente que a desigualdade excessiva é um importante obstáculo ao desenvolvimento económico.

4 comentários:

Pedro Viana disse...

Gostaria muito de acreditar nos pontos (1) e (2), mas não acho que sejam verdadeiros. Relativamente ao ponto (1), é fácil encontrar contra-exemplos, como por exemplo a China, onde durante os anos 90 (as estatísticas mais recentes não são tão completas) o investimento público em educação e saúde estagnou ou mesmo diminuiu. O ponto (2) é ainda mais inverosímel: verfifica-se hoje na China, por exemplo, algum compromisso público **efectivo** de combate às desigualdades gritantes e crescentes?

Felizmente que cada vez mais economistas se vão apercebendo que crescimento (económico) e desenvolvimento (social) não são sinónimos. Maior crescimento pode não significar maior desenvolvimento.

No website que alberga o relatório que o João Rodrigues menciona está este comentário:

"We chose to focus on growth because we think that it is a necessary condition for the achievement of a wide range of objectives that people and societies care about. One of them is obviously poverty reduction, but there are even deeper ones. Health, productive employment, the opportunity to be creative, all kinds of things that really matter to people seem to depend heavily on the availability of resources and income, so that they don’t spend most of their time desperately trying to keep their families alive." - Michael Spence

Notem como o autor destas palavras reconhece que mais importante que o alívio da pobreza (isto é o aumento da capacidade monetária, de consumo) é por exemplo ter acesso a serviços de saúde (gratuitos), empregos gratificantes e tempo livre. No entanto ele insiste que para tal é necessário "resources and income". Na realidade, se atentarem à natureza dos exemplos que ele deu, facilmente concluem que eles exigem "resources", mas não necessariamente "income" (isto é, dinheiro no bolso). Outro ponto, é que os exemplos dados não exigem recursos, e muito menos capacidade de consumo, necessariamente crescentes: que mais se pode exigir se todas as pessoas têm acesso a cuidados de saúde gratuitos, empregos e tempo livre? Nessa situação será que o crescimento económico é útil, dadas as consequências negativas que sempre acarreta? Se a capacidade de satisfação humana tem limites, porque é que se acha que o crescimento económico contínuo necessariamente torna as pessoas mais satisfeitas, felizes?...Finalmente, o autor não consegue afastar-se do seu etnocentrismo ocidental urbano, segundo o qual a vida de todo o "pobre" (i.e. todo aquele com poucos "resources and income") não-ocidental rural é horrível, desprezável, infeliz, numa luta constante para se "manter vivo e à família". Em alguns casos é realmente assim, mas em muitos outros não. Afirmações simplistas deste tipo, infelizmente muito comuns em economistas, mesmo nos mais bem-intencionados, não ajudam nada a criar o que é realmente necessário: políticas cirurgícas de apoio local ao real desenvolvimento social, isto que efectivamente promovam o bem-estar, que podem ser completamente distintas mesmo para regiões que distam poucas centenas de km dentro do mesmo país. Chega de macroeconomia! Mais microeconomia-social, por favor! Ouçam mais as pessoas que pretendem ajudar, em vez de olharem apenas para estatísticas macroeconómicas.

Filipe Melo Sousa disse...

O mesmo padrão argumentativo repete-se. Despido do português pomposo o texto fica assim:

"Até que enfim que as pessoas deixaram de acreditar no liberalismo! O economista MS assim o acha, e como ele recebeu um Nobel é mesmo verdade. Aliás veja-se como o liberalismo falhou na Ásia, porque eu assim o digo. Aliás, não existe crescimento que não é promovido pelo estado. Neste país até nem se fala de desigualdades, nem passamos a vida a comparar salários nem nada, nem somos invejosos... "

João Rodrigues disse...

Deveria ter escrito crescimento duradouro (questão da sua sustentação ao longo do tempo que depende crucialmente da repartição dos seus frutos). Peço desculpa. O caso da China que coloca é bem interessante Pedro Viana. Uma das coisas que se diz sobre muitos países da Ásia (Coreia, Tawain e Japão) é que a sua trajectória de crescimento foi relativamente igualitária em parte devido às reformas agrárias no pós-2ªGM e devido às pol. industriais e de formação. Na China o processo de reforma na agricultura também o foi (não se privatizou a terra). O que gerou grandes convulsões e padrões de desigualdade foram sobretudo as grandes migrações e a transformação industrial acelerada. Mas aqui também há elementos a destacar nas reformas instituídas que estiveram muito longe do Consenso de Washington (empresas regionais, controlo de capitais, expansão gradual dos mercados, etc). Gradualismo e experimentação institucional. Mas houve grandes aumentos da desigualdade sem dúvida. Apesar disso ocorreram progressos sociais. Mas em menor ritmo do que se poderia pensar dadas as taxas de crescimento (é uma discussão a ter). Neste contexto, há hoje um regresso à provisão pública nas áreas da saúde e educação com os orçamentos a aumentarem mais de 30%ao ano (o ponto de partida nestas áreas até era favorável). É claro que existe um regime político autoritário que infelizmente parece estar para durar e faltam importantes liberdades incluindo sindicais. De qualquer forma, acho que o caso Chinês tem de ser melhor estudado. Até porque acho que este relatório é já muito o resultado do peso da China ou da Índia na discussão sobre políticas de desenvolvimento a nível internacional. O novo economista-chefe do BM é um distinto economista chinês. Um caso mais interessante é o do Vietname. Aqui não houve grandes aumentos da desigualdade. Hei-de escrever mais sobre isto. Até para defender melhor a importância do crescimento, com direcção e redistribuição, sobretudo para países muito pobres. E a preocupação com a pobreza não é paternalista. É uma preocupação com a criação de condições para um desenvolvimento humano. É verdade que eu sou universalista. Acredito em listas objectivas de capacidades humanas (à Nussbaum). Mais um tópico. Enfim. Vamos trocando umas ideias. Há tanto para discutir.

FMS, sabe o que é divulgar informação e procurar identificar tendências intelectuais para o caso de alguém estar interessado? Tudo voluntário. Mas pode insistir nesses seus jogos. Se isso o diverte...

Pedro Viana disse...

Caro João Rodrigues,

Obrigado pela sua resposta.

"Deveria ter escrito crescimento duradouro (questão da sua sustentação ao longo do tempo que depende crucialmente da repartição dos seus frutos)."

Assim concordo :) É preciso muito cuidado com o que se escreve. Em particular, a utilização de afirmações que não têm sustentação na realidade só servem para enfraquecer uma argumentação que se pretende de tal forma poderosa, na veracidade dos factos em que assenta e na sua encadeação lógica, que não deixe ao leitor outra alternativa que não aceitar as suas conclusões.

"Na China (...) O que gerou grandes convulsões e padrões de desigualdade foram sobretudo as grandes migrações e a transformação industrial acelerada. Mas aqui também há elementos a destacar nas reformas instituídas que estiveram muito longe do Consenso de Washington (empresas regionais, controlo de capitais, expansão gradual dos mercados, etc). Gradualismo e experimentação institucional."

Concordo. Mas tenho a impressão que o governo Chinês optou por uma via gradual mais para tentar manter o controlo sobre a economia, e portanto sobre a sociedade, evitando a emergência dum pólo autónomo de Poder, do que para mitigar as mudanças sociais e a desigualdade que inevitávelmente iria surgir.

"Apesar disso ocorreram progressos sociais. Mas em menor ritmo do que se poderia pensar dadas as taxas de crescimento (é uma discussão a ter)."

Exacto. Esta mensagem é a que tenho tentado passar. A economia deve ser um meio para o desenvolvimento social. Em particular, entre duas vias alternativas não tenho dúvidas que se deve optar por aquela que gera mais desenvolvimento social mesmo que há custa de menor crescimento económico, no limite mesmo que leve a um de-crescimento económico.

"E a preocupação com a pobreza não é paternalista. É uma preocupação com a criação de condições para um desenvolvimento humano. É verdade que eu sou universalista. Acredito em listas objectivas de capacidades humanas (à Nussbaum). Mais um tópico. Enfim. Vamos trocando umas ideias. Há tanto para discutir."

Não tenho dúvidas que voltaremos a trocar ideias sobre estas questões. Fiquei curioso com a sua menção de Nussbaum, que não conhecia. Da entrada corrspondente na wikipedia retirei este trecho com o qual concordo a 100%

"With Sen, she promoted the "capabilities approach" to development, which views capabilities ("substantial freedoms", such as the ability to live to old age, engage in economic transactions, or participate in political activities) as the constitutive parts of development, and poverty as capability-deprivation. This contrasts with traditional utilitarian views that see development purely in terms of economic growth, and poverty purely as income-deprivation."

A frase seguinte diz: "It is also universalist, and therefore contrasts with relativist approaches to development". Compreendo o que se pretende dizer ao denominar de universalista a ideia de "capacidades humanas" de Nussbaum. Eu também acho que em todo o lado o ser humano pretende o mesmo em termos conceptuais, por exemplo viver uma vida longa. O que contesto é que todo o ser humano pretenda concretizar essa aspiração do mesmo modo. Pegando no mesmo exemplo, haverá quem ache que não deve viver mais se ficar incapaz de tratar de si próprio, e outros não. A concretização do conceito de "vida longa" a que ambos aspiram não é o mesmo. Outro exemplo: ter liberdade para se deslocar. Há quem ache que apenas precisa de ter liberdade para se deslocar num raio de poucos km à volta do sítio onde vive. Para outros a concretização desse conceito exige a capacidade de poderem viajar para qualquer ponto do planeta. No primeiro caso, o desenvolvimento não exige a construção de estradas, ou sequer a existência de automóveis.

Note-se que o que se deseja para concretizar anseios humanos universais não só varia de lugar para lugar hoje, mas ainda mais obviamente variou ao longo da história. Não só porque novas alternativas de concretização foram sendo disponiblizadas (i.e. o automóvel passou a existir a dada altura), mas também e de modo mais fulcral o contexto societal foi mudando. O que desejamos para realização dos nossos anseios universais depende da sociedade onde nascemos e crescemos! E por isso não podemos assumir que tais desejos são também universais, como os (mais abstractos) anseios. É preciso perguntar às pessoas que pretendemos ajudar o que realmente acham/desejam que deva ser feito de modo a que os seus anseios sejam respeitados. Dar algo a alguém que este não ache necessário não só é inútil, como pode também ser contraproducente, em particular se isso levar a que essa pessoa fique sem o que ela acha que precisa para satisfazer os seus anseios. A pessoa até pode estar errada em pensar que um seu desejo é capaz de satisfazer um seu anseio, mas acho que é arrogante e habitualmente errado assumir que sabemos melhor do que o próprio o que ele necessita para satisfazer os seus anseios.