No entanto, queria apontar um aspeto
que me parece fundamental para compreender os efeitos sociais da inflação, como
os que estão explicitados, por exemplo aqui
ou aqui.
Esse aspeto é o de que o problema não está, na inflação em si, mas sim na
arquitetura do sistema económico, financeiro e monetário em que estamos que
transfere os custos da inflação para os trabalhadores. Para o ilustrar vou
socorrer-me da história.
Quem estuda a história da moeda dá-se
conta de que essa é, de uma forma simplificada, a história de uma luta secular
entre devedores e credores sobre o que é e quanto vale a moeda, e sobre quem o
decide. Sendo que os devedores desejam uma moeda abundante e de baixo valor,
enquanto os credores lutam por limitações à quantidade e moeda de alto valor. Isto
acontecia porque, historicamente, episódios de inflação eram sempre vistos como
muito benéficos pelas classes mais baixas que eram endividadas e pagavam rendas
nominalmente fixas enquanto as classes aristocratas ou o clero eram credores e
recebedores dessas rendas fixas e saíam, portanto, fortemente prejudicados.
Um exemplo de um debate de grande importância para a história da Economia e deu-se quando no contexto do início da
Guerra dos 100 anos o Rei de França impôs a quebra (debasement) da moeda, que
consistia em decretar a redução na quantidade de prata contida nas novas moedas
cunhadas, mantendo no entanto o seu valor nominal, com o objetivo de obter um
lucro para si próprio com o aumento da senhoriagem (o valor pago pelos
particulares para cunhar a moeda e que era dividido entre o moedeiro e o
soberano, e que consistia na diferença entre o valor do metal entregue para
cunhar e o metal cunhado recebido).
A
quebra da moeda consistia assim, na prática, numa desvalorização da moeda. No
médio/longo prazo, acabava por levar a uma subida dos preços, embora essa
subida fosse normalmente mais lenta e de menor dimensão do que a própria
desvalorização da moeda.
Passando
à frente dos aspetos técnicos desta desvalorização, o seu efeito mais palpável
era, exatamente, a distribuição de rendimentos que operava na sociedade
medieval. O mais comum era que a inflação prejudicasse as classes mais
abastadas da aristocracia terratenente e do clero e favorecesse a classe mais
pobre dos camponeses.
Perante uma inflação que na verdade
operava como um imposto progressivo a incidir sobre as classes mais ricas,
estas reagiam tentando impor ao soberano a impossibilidade de decidir a quebra
da moeda ou a defender a tese de que o verdadeiro valor da moeda corresponde à
quantidade de metal nele contida (o valor intrínseco) e não o valor nominal
imposto pelo soberano. É exatamente essa a tese defendida naquela que
Schumpeter considera a primeira obra da história dedicada unicamente a um tema
económico, o Tractatus de Origine, Natura, Jure, et Mutacionibus Monetarum
de Nicolau de Oresme.
Talvez o mais interessante da leitura do tratado de Nicolau de Oresme, que era um membro do Clero, é como se percebe a parcialidade dos seus argumentos em favor das classes mais ricas, como explica Peter Spufford. Muitos dos argumentos nos soam familiar afirmando a injustiça de, através da quebra da moeda o príncipe tomar a posse "do dinheiro dos outros", enquanto compreende e assume que o problema afeta principalmente os proprietários e credores - "os melhores da comunidade" ou "os melhores dos súbditos" e dificulta as importações (o que prejudicava principalmente as classes consumidoras de bens de luxo vindas do estrangeiro).
Oresme foi recompensado pelo seu trabalho sendo nomeado Bispo de Lisieux e as classes mais ricas conseguiram ir fazendo valer a sua posição e acabaram por provocar uma transformação fundamental nos sistemas monetários conseguindo equivaler inequivocamente a unidade monetária a uma determinada quantidade de metal precioso.
Como
explica David Graeber, esta luta entre devedores e credores está por detrás de uma grande
história de criação de instituições que procurava defender os devedores de que
o jubileu bíblico é um exemplo conhecido, mas também toda a história da condenação
da usura e até uma boa parte da explicação para o antissemitismo que se
disseminou ao longo de séculos na Europa. No entanto continua Graeber, a era em
que estamos é marcada exatamente pela criação de instituições concebidas para proteger,
não os devedores, mas os credores.
Daí
que, hoje, a inflação, que na sua natureza não é diferente de outrora, encontra-se
num cenário institucional que aperta as classes mais baixas como uma garra. Na
atualidade é a classe trabalhadora que recebe salários nominalmente rígidos e o
capital que tem rendimentos variáveis que consegue ajustar ao cenário de
inflação. Os Bancos e outros credores também impõem nos créditos que concedem
instrumentos que garantem a manutenção do seu valor real como a indexação das
taxas de juro.
E
se isto nos faz ter vontade de que se tomem medidas para acabar com a inflação,
essas medidas passam, no cenário atual, por provocar um ainda maior prejuízo à classe
trabalhadora, aumentando taxas de juro ou impondo o desemprego para
limitar a procura. Podia dar-se o caso de isto significar uma mera inversão dos
papéis e que a classe trabalhadora beneficiasse hoje de uma hipotética deflação,
mas tal não é, obviamente, o caso, como ficou bem visível na última década. O
que aconteceu foi que a classe trabalhadora se tornou a única variável de ajustamento
macroeconómico e qualquer crise ou problema económico é canalizado para ela.
Entramos então naquela situação em que se lança a moeda ao ar e se calhar “cara, o capital ganha, e coroa os trabalhadores perdem” como explica este artigo que bem aponta que a atual luta contra a inflação é na verdade um campo da luta de classes.
Assim se nota que nenhum dos efeitos sociais da inflação que tanto nos preocupam se devem à inflação em si, mas sim, à arquitetura institucional que, por exemplo, impede que os salários cresçam consentaneamente. No fim de contas, bastaria não deixar de olhar para a distribuição funcional do rendimento e exigir políticas que garantam uma repartição dos custos da inflação entre trabalho e capital. E na verdade, isto é apenas exigir o mínimo.
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