O exercício da discussão do Orçamento de Estado (OE) pode ser - e foi, em geral, sempre - pouco transparente e politicamente orientado.
Por exemplo, foi assim hoje, sobre o alargamento sem limite do período de dedução de prejuízos nos lucros futuros das empresas. Procurar aqui "Proposta de Lei do O 2023" e, depois, procurar "prejuízos fiscais".
Grosso modo, o Governo propõe que as empresas passem a poder deduzir aos lucros tributáveis 65% e não 70% (como actualmente) dos prejuízos gerados, durante - não dos 5 anos seguintes (grandes empresas) e 12 anos (pequenas e médias empresas) como agora - mas de um período ilimitado de tempo. Além disso, revogam-se alguns obstáculos administrativos relativos à operação de reporte, flexibilizando-se o regime.
Mariana Mortágua (MM) questionou o acordo sobre rendimentos e produtividade por tornar facultativo o aumento salarial previsto, enquanto se dá "uma borla fiscal", em que se coloca a população "a pagar os prejuízos das grandes empresas - a começar pelo Novo Banco que será a primeira empresa a beneficiar com a medida". "O que eu gostaria de perguntar é, já que o senhor ministro gosta tanto de "Contas Certas", qual o impacto orçamental desta borla fiscal que tentaram inscrever no OE? (algo assim)
Fernando Medina (FM): - O nosso regime de prejuízos fiscais afastava-se do regime regra nos vários países europeus. Diz a senhora deputada que só vai afectar os grandes. Não, senhora deputada. Aliás, da análise que nós fazemos do impacto desta medida não afectará o grupo económico que referiu. Mas eu pedirei ao senhor secretário e Estado dos Assuntos Fiscais [SEAF] para responder cabalmente a esta ponto em concreto.
Ou seja, admite-se que houve uma análise do impacto da medida, o qual - como se verá - se vai tentar mostrar que não foi feito.
SEAF António Mendonça Mendes: - Relativamente aos prejuízos fiscais gerados em anos em que o sujeito passivo que beneficiou do regime de activos de impostos diferidos protegidos, esses prejuízos fiscais não estão abrangidos pela norma transitória que está proposta no OE.
MM (faz gesto de incompreeensão): - Muito obrigado pela resposta que já sabia. Qual é o impacto orçamental da medida?
FM (depois de conferenciar com o SEAF: - Senhora deputada, o impacto orçamental esperado da medida no exercício de 2023 é positivo na medida em que diminuímos a taxa de 70% para 65% na utilização da matéria tributável.
MM: - Senhor ministro, deixe-se de... enfim... o senhor ministro acaba de mudar radicalmente as regras fiscais e instituir um benefício fiscal, ao mesmo tempo que faz um grande discurso sobre disciplina orçamental. E eu gostaria de perguntar qual é a previsão de despesa fiscal da medida, qual o custo da medida.
FM: - Senhora deputada, eu não percebo a sua reacção. A senhora deputada perceberá facilmente que, se nós reduzirmos de 70% para 65% a utilização da matéria tributável a título de prejuízo fiscal, teremos um impacto positivo em matéria orçamental, isto é, teremos um acréscimo de receita do que aquilo que tínhamos face ao ano de 2022 no OE de 2023.
MM: - Certo, senhor ministro. Só que a medida alarga a noção de prejuízos fiscais de 5 anos para anos infinitos. É lógico que não tem um impacto em 2023, tem um impacto a partir dos 5 anos em que era possível deduzir. E por isso lhe pergunto qual é o impacto orçamental da medida. Mas não me deu uma resposta que é obvia obrigando-me a gastar tempo, a declarar o óbvio também.
FM pede ao SEAF para responder.
SEAF: Senhora deputada, como sabe a dedução dos prejuízos fiscais depende dos resultados fiscais que as empresas apresentem nos anos seguintes. Mas, senhora deputada, nós não estamos a falar de nenhuma excentricidade, estamos a falar do regime regra de todos os países em que em Portugal até optámos por não fazer o mesmo que faz na generalidade dos países que é o desconto ilimitado da primeira parte dos prejuízos. Portanto, senhora deputada, não é nenhum benefício fiscal, é apenas um princípio básico da solidariedade de exercícios que a senhora deputada também defende para as empresas, para todas as empresas.
MM: Seria mais fácil que o Governo dissesse que não tem como calcular o impacto e, portanto, adoptou uma medida fiscal sobre a qual não tem como saber quanto custa no futuro e atirou esse custo dessa medida para a frente.
E é assim. Claro que Fernando Medina sabe mais do que diz e talvez tenha reagido à forma como Mariana Mortágua se lhe dirigiu, afectado até pela irritação latente entre Governo PS e Bloco de Esquerda. Mas não devia estar. Porque tem obrigações públicas a prestar. E caso contrário, todos saímos a perder. Porque todas as medidas são importantes para todos. E os recursos financeiros usados pertencem ao colectivo dos portugueses.
Sobre quem mais pode beneficiar da medida, ver aqui o que mostram as estatísticas fiscais da Autoridade Tributária.
1 comentário:
Estes senhores no parlamento acham que não têm o dever de seriedade, acham que tudo é permitido, isto é bem o reflexo da libertinagem que é este país nos dias que correm.
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