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Fonte: A partir de dados da Autoridade Tributária e Aduaneira
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Há uma regra sempre aplicada pela direita.
Quando as mexidas nas leis prejudicam os interesses concretos das empresas são criticadas por lesar um princípio genérico: geram
instabilidade legal e, por isso, são prejudiciais. Quando as alterações beneficiam esses interesses, são aplaudidas pelos seus efeitos concretos mesmo que prejudiquem o princípio da
estabilidade legal: fomentam a produtividade e, por isso, são aconselháveis. E nisso, até a direita do PS alinha pelo mesmo diapasão (ver
aqui). É caso para dizer que a direita tem um único princípio: a defesa concreta dos lucros das empresas. E com isso entronca na mais dura das lutas da História - a da repartição do rendimento.
Ora, o Acordo sobre Rendimentos e Produtividade, celebrado com pompa e circunstância pelo Governo do PS, é um desses casos. O Vicente Ferreira já analisou exemplarmente o essencial do acordo (
aqui).
Em traços gerais, o que beneficia os trabalhadores fica ao critério das empresas aplicar ou não (é o caso dos aumentos salariais a quatro anos, essenciais para garantir o objectivo central do acordo de aumentar o peso dos salários no PIB); o que beneficia as empresas tem aplicação imediata e é garantido pelo Estado, através de medidas fiscais. O Estado, comandado pelo PS, em vez de libertar a negociação colectiva, esmagada pelas leis aprovadas pelos Governos Durão Barroso e Passos Coelho/Portas - e mantidas e aprofundadas pelo PS nos Governos Sócrates - decide pagar do seu bolso para que as empresas dispensem - vá lá... - os seus lucros para salários.
Uma dessas medidas é bastante sintomática da cedência do PS aos grandes interesses empresariais, nomeadamente do sector financeiro e das poucas grandes empresas, aliás, em contradição com os objectivos do acordo.
Trata-se das alterações à forma como os lucros tributáveis futuros das empresas poderão ser reduzidos através da dedução dos prejuízos passados (algo que em gíria se chama reporte de prejuízos e que representa, na realidade, um apoio público à estabilidade do funcionamento das empresas).
O reporte de prejuízos é uma velha batalha das grandes empresas. Atravessou diversos governos e há sempre uma marca de classe nos governos que decidem mexer nesse tópico. Os governos de direita tendem a alargar o número de anos de prejuízo que podem ser usados pelas empresas para abater os seus eventuais lucros e, com isso, reduzir os impostos que pagam para o Estado (foi o caso do Governo Passos Coelho/Portas). À esquerda, tenta se limitar essa possibilidade, já que alargando esse número de anos, se reduzem os lucros tributáveis e, com eles, se reduz a receita de IRC dos anos seguintes e, com isso, agrava-se o já de si elevado fosso de tributação entre trabalho e capital, diminui-se os recursos públicos para realizar despesa pública, sapando a intervenção niveladora do Estado (Governo Sócrates e Governo Costa com apoio à esquerda).
Em Junho de 2020 e por causa dos efeitos da pandemia, o governo mexeu na lei novamente e em benefício das empresas. Mas esquivou-se a responder - por várias vezes - quem iria mais beneficiar com a medida.
Ora, o que é que o Governo agora decidiu fazer?
Presentemente, uma empresa que não seja micro, pequena ou média (MPM) pode deduzir 70% dos prejuízos de um dado exercício nos lucros dos 5 anos seguintes (caso seja MPM empresa poderá deduzir nos 12 anos seguintes). Caso o acordo passe a lei, baixa-se a parte dos prejuízos que pode ser deduzida - de 70% para 65% - mas acaba-se com o limite de anos em que podem ser deduzidos. É uma verdadeira borla à tributação sobre os grandes lucros. Algo que contradiz o objectivo de reduzir o peso dos lucros no rendimento.
Quem mais beneficia com a medida? Veja-se a tabela acima.
Quando se olha para os
valores divulgados pela Autoridade Tributária na década que vai de 2010 a 2020, aquilo que se verifica é que, dos 167,8 mil milhões de euros de prejuízos acumulados nesses anos, cerca de um terço (34%) verificou-se no sector financeiro, cerca de 9% no comércio e nas indústrias transformadoras, cerca de 6,9% na construção e 7,7% nas actividades de consultoria. Só estas actividades concentraram dois terços dos prejuízos da economia entre 2010 e 2020.
E esta repartição verificou-se tanto entre 2010 a 2015 (período de intyervenção da troika e Governo Passos Coelho), como no período entre 2016 a 2020 (Governo PS).
Neste último período há um novo sector que começa a apresentar igualmente prejuízos consideráveis - o da Saúde e Educação, onde cresce o sector privado (6,8% entre 2016 e 2020, contra 3,4% entre 2010 e 2015) - o que dá para perceber a dinâmica deste novo sector.
Mas quando se fala de sectores estamos a falar das suas empresas por igual? Não. Veja-se a tabela seguinte.
Quando se analisa os valores oficiais por escalão de facturação, verifica-se que, se as pequenas e médias empresas são mais numerosas, na verdade são as grandes empresas aquelas que maior valor de prejuízos fiscais apresentam. E por isso mais poderão deduzir no futuro.
Se, na média do período de 2010 a 2020, cerca de 163 mil empresas com menor volume de facturação (até 500 mil euros anuais) representaram 93% do número de empresas com prejuízos fiscais, apenas cerca de uma trintena (o número médio é 33 empresas!) com facturações superiores a 250 milhões de euros anuais absorveram cerca de 30% do total de prejuízos fiscais. Esta repartição, mais uma vez, atravessou os dez anos em análise, mas foi mais acentuada no período entre 2010 e 2015 (33%) face ao período seguinte de 2016-2020 (24%).
De igual modo, as empresas com facturações anuais superiores a 25 milhões de euros anuais que em média representaram cerca de 0,2% do total das empresas com prejuízos (cerca de 331 empresa em números médios!), concentraram cerca de 39% do total de prejuízos fiscais da economia. E vão ser elas que irão beneficiar mais da medida.
Em média, empresas com facturação até 150 mil euros tiveram uma média anual de prejuízos a deduzir entre 42 e 64 mil euros anuais. Mas as empresas com facturações acima de 25 milhões de euros registaram prejuízos entre 4,8 milhões e ... 152 milhões de euros!
É provável que, seguindo a regra da não retroactividade, a medida só se aplique a partir do momento em que for aprovada e portanto os seus efeitos só se farão sentir para lá de 2025. E é provável que o PS tenha jogado com esse desfasamento aparentemente longínquo. Mas os números dão uma ideia de quem irá beneficiar com esta medida.
Portanto, quando o Governo declara que quer aumentar o peso dos salários no rendimento - e, por oposição, reduzir o peso dos lucros - há esta "pequena" parcela que não foi tomada em linha de conta. Não foi pelo Governo, mas alguém (pelo Governo) deve ter feito essas contas e o Governo, na sua pressa de apresentar louros de um acordo, atirou esta responsabilidade futura para quem há-de vir. "Daqui a uns anos já nem estou cá".
Para quê tanta pressa, pois, em fechar um acordo com consequências tão gravosas? Foi a Autoridade Tributária ouvida? E se foi, concordou? A julgar pelo que os seus dirigentes pensavam no passado, é mais do que provável que o sentimento tenha sido bem contrário.
Ficam as questões cujas respostas nunca se conhecerá.
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