sexta-feira, 21 de outubro de 2022

Dívida, os primeiros 5000 anos

 

Se a história demonstra alguma coisa, é que não há melhor maneira de justificar relações fundadas na violência, de fazer com que essas relações pareçam morais, do que reenquadrá-las na linguagem da dívida — acima de tudo, porque isso faz imediatamente com que pareça que é a vítima quem está a fazer algo de errado. Os mafiosos compreendem isto. Tal como os comandantes de exércitos conquistadores. Durante milhares de anos, muitos homens violentos puderam dizer às suas vítimas que elas próprias lhes deviam alguma coisa.

Foi com grande satisfação que soube que acabou de ser lançada, pelas Edições 70, a tradução para português de uma das obras mais importantes dos últimos anos, Dívida - Os Primeiros 5000 Anos, de David Graeber.

Uma obra fundamental, lançada originalmente em 2011 que explica a origem e a história da dívida (e por definição, da moeda) e as consequências para uma sociedade baseada nela. Partindo da questão moral: “certamente todos temos de pagar as nossas dívidas”, esta obra segue com uma enorme erudição, começando por apresentar a destruição do mito da origem da moeda a partir da troca direta (que ainda povoa hoje quase todos os manuais de Introdução à Economia), até à descrição de como a dívida, ou seja, a economia monetária, se impôs, ao longo dos séculos, através da violência, terror, guerra, escravatura, afetando e transformando toda a estrutura moral das sociedades humanas onde se inseriu, desde tempos bíblicos até hoje. A história da dívida é uma história de poder onde esta se assume como imposição económica transformada em código moral: “a dívida é uma promessa corrompida pela matemática e pela violência”.

A história mostra que a dívida não é, nem natural, nem única e daí a importância de nos recordarmos que “o dinheiro não é inefável, que pagar as próprias dívidas não é a essência da moralidade, que todas estas coisas são arranjos humanos e que, se a democracia tem algum significado, é a capacidade de todos concordarem em organizar as coisas de uma forma diferente.”

É uma história particularmente importante para economistas que continuam a acreditar no mito da neutralidade da moeda e na ideia de que existe um mercado livre baseado nas livres escolhas de agentes económicos observando apenas o seu próprio interesse, que nos amarra à ausência de alternativas.

Infelizmente, o autor deixou-nos, precocemente, em 2020. Fica a sua obra, da qual destaco também Trabalhos de Merda (também editado pelas Edições 70) e The Dawn of Everything: A New History of Humanity (ainda não traduzido para português).


1 comentário:

Anónimo disse...

Pagar uma dívida que não é, não foi nem nunca será nossa é sempre de uma enorme indignidade.