sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Ajustar o foco na crise do Reino Unido


Os recentes acontecimentos no Reino Unido têm sido interpretados por cá, de forma quase consensual*, mais ou menos da seguinte forma: O governo chefiado por Liz Truss apresentou um pacote de medidas irresponsável, que previa um brutal aumento do défice, ao que os mercados reagiram ferozmente, verificando-se uma subida acentuada das taxas de juro das obrigações do governo, uma forte desvalorização da libra e a quase falência de fundos de pensões, o que forçou o Banco de Inglaterra a intervir e, mais recentemente, o governo a recuar na medida mais polémica, o corte de impostos para os rendimentos mais altos.

Por mais tentador que seja aproveitar este episódio para atacar quem vê na redução de impostos uma solução para todos os problemas do país, não me parece que adoptar uma narrativa simplificada e equivocada, que reforça a ideia do poder dos mercados, ao qual não nos resta alternativa além da submissão, seja o caminho a seguir.

Parece-me bem mais importante destacar, em primeiro lugar, o poder do banco central em estabilizar as taxas de juro da dívida pública em valores que considere apropriados, mesmo perante uma reacção violenta dos mercados, como a que se verificou. Além disso, importa realçar que a compra e venda de dívida publica por parte do banco central para atingir os seus objectivos de política monetária não tem nada de excepcional. Neste caso, o menos normal terá sido a demora na intervenção e o desconhecimento, que não permitiu antecipar o sucedido, das frágeis e complexas estruturas do sistema financeiro.

O que me leva ao ponto mais importante que tem que ver com a própria reacção dos mercados. Alterações políticas e orçamentais têm impacto nas perspectivas de crescimento económico, de inflação e de estabilidade social que consequentemente são reflectidas nos mercados, o que terá também acontecido inicialmente neste caso. Mas o que também parece certo, é que sem as necessidades de liquidez dos fundos de pensões britânicos resultantes das suas estratégias de investimento (que o Paulo Coimbra aqui bem descreve) que os obrigaram a vender as obrigações do tesouro que tinham nos seus balanços, exacerbando dramaticamente a subida das taxas de juros das obrigações do governo, esta história não teria sequer existido. E é aqui que deve estar o foco da análise, na instabilidade criada por estas obras complexas e opacas de engenharia financeira. Citando Adam Tooze sobre este mesmo tema:

“Faz realmente sentido perpetuar um sistema em que riscos financeiros desastrosos são incorporados na provisão, impulsionada pelo lucro, de produtos financeiros básicos, como pensões e hipotecas? Sim, o banco central pode actuar como os bombeiros, mas por que temos de aceitar como normal uma situação tão perigosa. Porque é que os detectores de fumo falham repetidamente? E porque é que a casa não é mais resistente ao fogo? É altura de perguntar quem beneficia e quem paga o custo para continuar com este sistema perigosamente inflamável.”


*Entretanto, um dos nossos mais ilustres economistas, depois de na semana passada ter incrivelmente comparado o sucedido no Reino Unido à crise da dívida pública grega, veio na última edição do Expresso reconhecer o papel da engenharia financeira no desenrolar dos acontecimentos, descartando a possibilidade de uma “crise orçamental”. Claro que a conclusão que tira é responsabilizar a gestão de risco dos fundos de pensões e a má regulação, nunca pondo em causa o sistema que permite, incentiva e premeia tais comportamentos.

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