A intervenção do BoE seguiu-se a dias de intensa pressão sobre os fundos de pensões do Reino Unido que gerem as poupanças de milhões de britânicos. A longo prazo, juros mais elevados são úteis para os regimes de pensões uma vez que os ajudam a obter rendimentos mais elevados. Mas a curto prazo, o colapso dos preços das obrigações britânicas tem martelado as chamadas estratégias de investimento orientadas pelos passivos [liability-driven investment] (LDI), que muitos utilizam para se proteger de movimentos adversos na inflação.
Entre £1 bilião e £1,5 biliões das responsabilidades detidas pelos fundos de pensões com salários são cobertas por estratégias de LDI que são apoiadas por garantias tais como acções, obrigações de empresas e obrigações do Tesouro. Mas o valor dessas obrigações do Tesouro desceu a pique, colocando os fundos de pensões numa corrida para vender activos com o objetivo de manter os níveis exigidos em termos de colateral de garantia. Alguns fundos venderam obrigações do Estado para satisfazer essas exigências de colateral, criando um círculo vicioso de descida dos preços daquelas obrigações.
Excerto de artigo do Financial Times, com tradução e sublinhados meus.
Quando os juros das obrigações do tesouro descem, os fundos [de pensões] recebem margem e quando esses juros sobem, [os fundos de pensões] têm obrigatoriamente de depositar mais garantias. Após o pico nos juros das obrigações do tesouro na sexta-feira e até esta semana [até à intervenção de emergência do Banco de Inglaterra para baixar os juros], os gestores de fundos LDI foram atingidos por margin calls dos seus bancos de investimento.
O colateral de garantia dos fundos LDI são parcialmente estabelecidos utilizando dados históricos que alimentam modelos baseados na probabilidade de movimentos da taxa de juro das obrigações do tesouro (...). O súbito aumento recente da taxa de juro das obrigações do tesouro ‘desestabilizou os modelos e o colateral de garantia'.
Excerto de artigo na Bloomberg, minha tradução.
Este processo colocou os fundos de pensões em risco de insolvência, porque as vendas em massa [das obrigações do tesouro] fizeram baixar ainda mais o preço destas obrigações detidas pelos fundos como activos, obrigando-os a acumular ainda mais dinheiro. ‘A dada altura, esta manhã, estava preocupado que este fosse o início do fim’, disse um banqueiro sénior com sede em Londres, acrescentando que a dada altura, na quarta-feira de manhã, não havia compradores de obrigações do tesouro do Reino Unido de longo prazo. ‘Não foi bem um momento Lehman’. Mas chegou perto.
Excerto de artigo do Financial Times, com tradução e sublinhados meus.
Dito do modo mais simples que me é possível:
Os fundos de pensões gerem poupanças dos trabalhadores; por este serviço pagam-se principescamente, claro. E especulam, obviamente.
No processo, investem aquelas poupanças no mercado de capitais.
Entre outros ativos, compram obrigações de tesouro. Dado que os juros daquelas obrigações variam ao longo do tempo, por forma a proteger a sua rentabilidade futura, estes fundos utilizam instrumentos financeiros derivados para se protegerem da descida da taxa de juro e, se isso acontecer, recebem pela diferença entre a taxa de juro contratada e a taxa de juro efetiva.
Dado o carácter especulativo destes instrumentos financeiros, dado que, essencialmente, são uma aposta, a cobertura do risco de descida da taxa de juro tem consequências associadas ao cenário inverso.
O problema surge quando os juros das obrigações de tesouro sobem.
Nesta situação, os fundos são obrigados a mostrar que serão capazes de continuar a honrar os seus compromissos de pagamento com estas taxas mais elevadas, ou seja, são alvo de margin calls, o que significa que são obrigados a fornecer à outra parte neste contrato financeiro o colateral, os ativos de garantia que provem aquela capacidade.
Para este efeito, para obter liquidez que possa ser usada como colateral, estes fundos de pensões são obrigados a vender, pelo menos, parte daquelas obrigações de tesouro.
Nesta fase surge um segundo problema. Inundar o mercado de obrigações faz descer o seu preço e com a descida do preço, a taxa de juro, que é função inversa daquele, sobe.
E aqui começa o círculo vicioso dado que, com taxas de juro mais elevadas, aumentam as necessidades de fornecer colateral.
Ann Pettifor pergunta se estamos perante a “Paralisia Súbita do Sistema” e, ligando estes desenvolvimentos ao que se passa do outro lado do Atlântico, divulga o gráfico abaixo que dá nota do desinvestimento, medido em biliões de dólares, em activos financeiros previamente investidos em ações de empresas e em ativos de rendimento fixo nos EUA.
(Fonte aqui)
A corrida à liquidez, a troca de ativos menos líquidos por outros mais líquidos, já representa 57,8 biliões de dólares, ou seja, mais de 2,5 vezes o seu PIB em 2021. Compare-se este valor com aqueles muito menores de 2008 (crise sub-prime) ou de 2020 (crise pandémica).
Assim como assim, uma questão central de política monetária devia para sempre ficar dirimida: não pode haver dúvidas de que a taxa de juro das obrigações soberanas é uma variável de política que não depende dos mercados. Como a História evidencia repetidamente.
A volatilidade nos preços causada pela guerra está ter consequências potencialmente desastrosas. Não é mais que chegado o momento de uma solução negociada?
Na UE, pensa-se que não: mais sanções, que obviamente excluem o gás Russo, a caminho. Os ministros que tutelam a energia reúnem-se amanhã para discutir, entre outros assuntos, esta questão do colateral de garantia; a Comissão propõe que se alargue o âmbito dos ativos que, para este efeito de garantia, podem ser usados, nomeadamente, o uso de garantias bancárias. Com aval público, claro, que o nervosismo dos mercados, o gigantismo das perdas potenciais, assim o exige. As consequências para as finanças públicas são, ou deviam ser, evidentes.
E aqui em Portugal? Uma palavrinha do Governo e/ou do Banco (que não é) de Portugal acerca deste e destoutro assuntos que exercem uma força conjunta perigosamente desestabilizadora do sistema financeiro global? Continua a não ser devida?
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