domingo, 20 de junho de 2021

Querido diário - A essência da austeridade

Um dos conceitos mais riscados na esgrima ideológica sobre a austeridade - cortes de despesa pública e aumento de impostos para provocar uma recessão - é o de que foi necessária por causa da crise da dívidas soberanas. Os Estados teriam gastado demais e todos tinham de pagar por isso. No entanto, a realidade é outra. Um euro coxo gera uma correlação entre superávites no centro e défices e dívida na periferia ligadas a estagnação económica. A dívida - pública, mas sobretudo privada - dos países da periferia sempre foi apetecível ao centro pelo seu risco e, consequentemente, pelas suas altas taxas de remuneração. Quando os mercados forçaram níveis de extorsão - sem resposta ou protecção por parte do BCE - e se deu a ruptura, esses créditos tornaram-se tóxicos. Grandes investidores, como  foi o caso de bancos franceses e alemães, ficaram com lixo nas mãos. Solução: 1) os bancos assumirem o prejuízo e o  problema passava a ser  francês e alemão; 2) evitar a reestruturação da dívida dos devedores para que os credores não perdessem dinheiro (Passos Coelho esteve nesse lado, recordam-se? "as dívidas devem ser  pagas"); 3) forçar a "ajuda externa" para que esses créditos privados passassem a ser dívida pública, para que fossem os povos a pagar os investimentos especulativos feitos pela banca francesa e alemã. Para isso se fez ... a austeridade. E toda a direita esteve aí, acusando os portugueses de terem "vivido acima das suas possibilidades"!

Artigo publicado no jornal Público a 17/6/2013

4 comentários:

Jose disse...

O desgosto de não espoliar os privados fazendo-os pagar pelas tropelias públicas!

TINA's Nemesis disse...

O que acham que vai acontecer quando a população perceber que o Banco Central Europeu deixou os Estados à mercê dos especuladores e agiotagem sabendo perfeitamente que tinha o poder para não deixar que isto acontecesse?

O que acham que vai acontecer ao Passos Coelho e aos manipuladores da comunicação social quando a população perceber que a “bancarrota” foi uma invenção para alcançar fins políticos como a subjugação dos trabalhadores e transferir os rendimentos da base para o topo?

A “bancarrota” não é uma teoria da conspiração, é apenas uma conspiração, uma conspiração com efeitos nefastos para milhões de pessoas.

Acredito que a ladainha da bancarrota já não é suficiente para meter medo à população, por isso, a direita mais convencional e responsável pela farsa “bancarrota” precisa agora de outras distrações, distrações mais extremas…
Uma pessoa que preste atenção ao que tem sido a última década já percebeu o porquê da direita dita mais convencional socorrer-se da direita que mal esconde o seu fascismo.

O Partido Neoliberal “Socialista” julga que pode continuar a fingir que governa para o desenvolvimento e bem generalizado, está enganado, quando o projecto despótico UE/ Euro colapsar o Partido “Socialista” colapsa com ele.
A História será cruel para aqueles com responsabilidade que andaram a desmantelar a social democracia e a conspirar contra quem trabalha e contra as ambições de progresso da população.

Jaime Santos disse...

Mas aonde é que está a novidade que num processo como o que ocorreu entre 2011-2014 (e continuou depois) quem está do lado mais fraco da corda é que sofre? Como bem explicou o Daniel Bessa, o objetivo dos credores é recuperarem os créditos. O comportamento é racional, não tem que ser moral ou solidário (chama-se nacionalismo).

O moralismo que acompanha todo este processo serve mais de consolo aos ditos credores que justificam a sua prepotência do que aos devedores, que não precisam que lhes digam que viveram acima das suas possibilidades para perceberem que devem calar e pagar...

Por isso mesmo é que o melhor remédio é viver com níveis de endividamento baixos (mesmo em termos absolutos) do que persistir na miragem da Esquerda de que se conseguirmos manter os ratios dívida/PIB constantes, tudo está bem.

Não, não está, porque assim que a maré desce regressam as receitas de austeridade do costume. E os processos de reestruturação fazem-se sempre nas condições dos credores, porque ainda não vi ninguém, nem o PCP, defender que deveremos deixar de pedir dinheiro ao estrangeiro. Ora quem paga, manda.

João Ramos de Almeida disse...

Caro Jaime,

Acho que está mal informado. Não pode dizer que a Esquerda vive no consolo de cumprir os rácios como forma de passar entre os pingos da chuva. A Esquerda tem muito mais nuances do que isso. E se calhar essa sua percepção de uma esquerda acomodada se adeque mais a uma esquerda que, de ora em quando, abraça os valores do neoliberalismo para poder viver nos dois mundos.

É verdade que "quem paga, manda". Pelo menos, devia. Agrada-me vê-lo a defender esse princípio, já que nas últimas décadas tem sido o Estado a pagar... sem mandar. Por isso, caro Jaime, bem vindo seja ao princípio do "pagador-mandador". :-)

Mas é isso mesmo se passa nas reestruturações de dívidas. Uma reestruturação é, geralmente, do agrado do devedor porque a alternativa pode ser a de perder todo o dinheiro. Aquilo que Passos Coelho veio introduzir neste raciocício foi o de que "todo o devedor, deve pagar", colocando-se precisamente do interesse do credor, mais do que do devedor que éramos todos nós...