quarta-feira, 23 de junho de 2021

O direito a estar calado...

Público, 23/6/2021


A ministra proferiu aquela frase, mas a frase tem mais conteúdo. Disse a ministra durante uma conferência a propósito do Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho: 

“É inaceitável termos situações de trabalho temporário que duram décadas e é evidente para todos que temos de encontrar formas de garantir que isso não aconteça”. Na sua opinião, a pandemia veio tornar ainda mais evidente a existência de “dois mundos paralelos” no mercado de trabalho, pondo “completamente a descoberto” a situação dos trabalhadores informais e precários, o que requer mecanismos mais fortes de combate à segmentação laboral. 

A ministra do Trabalho deveria ver mais séries policiais. Sobretudo naquela parte em que os polícias detêm um suspeito e lhe dizem:

Tem o direito de permanecer em silêncio e recusar-se a responder a perguntas. Qualquer coisa que diga pode ser usado contra si em tribunal. Tem o direito de consultar o advogado antes de responder à polícia e de ter um advogado presente durante os interrogatórios, agora ou no futuro. 

É que, senhora ministra, tem sido o grupo parlamentar do PS a viabilizar esse permanente uso abusivo da figura legal do "trabalho temporário". Tem sido o grupo parlamentar do PS a chumbar todas as propostas que visam cercear de alguma forma esse uso abusivo. Foi o grupo parlamentar do PS que aprovou em 2019 um pacote supostamente contra a precariedade no trabalho em que se prevê a possibilidade dos contratos de trabalho temporário se renovarem... por seis vezes! Um pacote que, aliás, a senhora ministra tem elogiado nas sessões parlamentares. Tem sido o grupo parlamentar do PS - juntamente com a direita -. que, ao longo das últimas décadas, tem viabilizado esse aborto legal que é o trabalho temporário. Veja lá que foi um ex-dirigente do PS - Vitalino Canas - a pessoa escolhida para provedor - não dos trabalhadores com contratos de trabalho temporário - mas das empresas de trabalho temporário, cuja legalização representou mais um dos passos da privatização de agências de emprego, as quais se mostram sempre tão relutantes, em litígios laborais, em contratar permanentemente um trabalhador que permanentemente execute trabalhos temporários, isso já não falando da relutância da empresa beneficiária do "trabalho temporário" em contratá-lo. É o próprio site do IEFP - que é o organismo público responsável pela política de emprego e formação tutelado pela senhora ministra - que as propagadeia, como às agências privadas de emprego

Se há alguma segmentação no Trabalho - tese bastante polémica e que nem une os especialistas - muito se deve ao papel que o PS tem tido desde 1976 nas questões laborais.

Mas eu percebo-a, senhora ministra. Essa vai ser a linha que o Governo vai propor à oposição de esquerda para melhorar a legislação laboral. De repente, o PS vai acordar para o problema - bem vindo seja! -  e vai encontrar um "culpado" de tudo o que está mal na legislação laboral. E vai ser o trabalho temporário.

Convém lembrar que, ao longo de décadas mas sobretudo nas duas últimas, se ergueu todo um edifício legal - que vai desde a desprotecção do emprego (de que as empresas de trabalho temporário são um dos alicerces, tal como o falso trabalho por conta própria), o embaratecimento do trabalho - seja pela desvalorização do trabalho suplementar, pelo fim do descanso por trabalho sulementar, pela depreciação do valor do trabalho ao prolongá-lo para lá dos limites legais e sem pagamento adequado, pela desarticulação da rede de proteção da contratação colectiva, pelo torpedear dos mínimos legais ao aceitar que a contratação colectiva possa prever normas mais recuadas que a própria lei - o embaratecimento do despedimento, a redução na protecção no desemprego, tudo mantido com os votos do PS e que tem levado a que tenha caído o peso dos salários no produto criado e aumentado a  pobreza entre trabalhadores. A chamada desvalorização interna. 

O problema não é, pois, de "combate à segmentação laboral", mas de fazer desaparecer as condições legais que tornam a precariedade viável e cada vez mais generalizada, num verdadeiro contrato único de trabalho indigno.

Cá estaremos, pois, para ver se que forma é que o PS vai querer rever esse edifício e como vai afrontar as empresas - nomeadamente as da sua anterior área de tutela no Governo (o turismo) - que usam e abusam dessas figuras contratuais e dessa desvalorização salarial. Ou será que vai ser apenas para as estufas alentejanas?

5 comentários:

Mário Pinto disse...

Como alguém (quase) disse, "Seja bem vinda à defesa dos direitos dos trabalhadores temporários, Sra. ministra".
Também poderia escrever que - e à falta de outras razões que desconheço - esta frase da Sra. ministra está toda ela envolta em hipocrisia.

estevesayres disse...

hipocrisia de uma ministra!
Senhora ministra deveria se demitir...
Porquê?
Porque até hoje a senhora e o seu partido, e não só, são responsáveis políticos desta situação que se vive ao longo dos anos, desde os governos de traição-nacinal!!!

TINA's Nemesis disse...

A minha aposta é que o Partido “Socialista” vai mudar tudo para que tudo fique na mesma.

Para mim Passos Coelho é um criminoso e devia ser levado à Justiça por ter feito o que fez mas o mal não começou com Passos Coelho… É inegável que o Partido “Socialista” é responsável por muito do mal-estar que agora se sente em Portugal.
Eu não acredito que alguma coisa de substancial mude pela iniciativa dos “socialistas”, a sua infecção pelo vírus neoliberal está completa, não conseguem tomar decisões que não tenham o ADN neoliberal embutido. O fanatismo europeísta que os “socialistas” demonstram constantemente é, para mim, a prova que a mudança que nos faça sair deste pântano não virá dos “socialistas”.

O Partido “Socialista” comporta-se como se estivéssemos nos anos 90 do século passado, uma década com uma relativa percepção de prosperidade, a partir de 2000 essa percepção levou um forte golpe.
Quando vejo António Costa a comportar-se como se estivesse tudo uma maravilha sinto raiva! Porque nós estamos a enfrentar crises profundas umas a seguir às outras.
António Costa já só quer saber do lugar que lhe vão atribuir em Bruxelas (por ter sido um óptimo aluno e carrasco de tanto povo) e que o filho (que está metido na política) tenha um glorioso futuro no partido!

Manuel Galvão disse...

O que está em causa aqui é a indemniação por despedimento sem justa causa. Mas mesmo essa garantia é fácil ultrapassar pelo patrão, pois há uma vasta lista de opções para despedir pessoas "do quadro" sem grande custo (inadaptação ao posto de trabalho, extinção do posto de trabalho, quebra abrupta de vendas, etc.)

antero seguro disse...

Ana Mendes Godinho que tenha cuidado com o que diz pois está a atacar um seu colega de partido, deputado e alto dirigente do PS que toda a gente sabe que é o responsável pela associação das empresas de trabalho temporário que como sabemos vivem do sangue suor e lágrimas deste sector neo-esclavagista que trafica carne humana. É caso para dizer que o PS vai a todas.