quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Pequenas heresias #2: Microcrédito

A minha primeira posta nesta série de pequenas heresias suscitou uma forte crítica por parte de Paulo Pedroso. Entre outras coisas, considera que a minha avaliação da funcionalidade, para a agenda neoliberal, do discurso e prática em torno da inovação social padece de “marxismo mecanicista”; e acusa-me de ignorar o facto de numerosas inovações sociais terem tido um impacto importante na vida de muitas pessoas e comunidades concretas.

Pela minha parte, considero que Paulo Pedroso acerta na barra, pois é incapaz de rebater os meus dois argumentos principais: por um lado, a ideia da progressiva transformação do debate em redor da ‘inclusão social’ numa problemática cada vez mais técnica e menos política; por outro lado, a tese de que o elogio da descentralização da política social, que acompanha habitualmente o discurso acerca da inovação social, deslegitima a acção do Estado e legitima a sua reengenharia em moldes neoliberais. Não se trata de rejeitar liminarmente tudo o que é feito sob a bandeira da inovação social – trata-se, isso sim, de questionar criticamente os aspectos perversos do discurso e da prática.

O mesmo vale para o microcrédito, sobre o qual incide a segunda posta nesta série. Em que consiste, afinal? Fundamentalmente, na criação de mecanismos que permitem o acesso ao crédito para investimento por parte de indivíduos que, em condições normais, não lhe conseguiriam aceder devido a não possuírem bens susceptíveis de constituírem garantias reais. No contexto dos países do Sul, especialmente em meios rurais, estes mecanismos assentam tipicamente na concessão de empréstimos a grupos de indivíduos, que se tornam responsáveis de forma solidária pelo pagamento das dívidas. Nalguns casos mais louváveis (como o da Associação Nacional de Direito ao Crédito, aqui em Portugal), a intervenção vai além da criação de mecanismos que permitam superar esta falha de mercado, incluindo também o acompanhamento dos novos negócios por parte de agentes de microcrédito – acompanhamento esse que na prática acaba por constituir uma forma de formação profissional.

Indivíduos pobres e excluídos, com boas ideias de negócio, sem possibilidade de acesso ao crédito pelas vias normais, a quem o microcrédito permite ultrapassar este obstáculo inicial de modo a conseguirem ‘criar riqueza’ por si mesmos. Na maioria dos casos (especialmente no caso seminal do Banco Grameen e das iniciativas nos países do Sul), os beneficiários são mulheres. As taxas de incumprimento são em geral mais baixas do que as caracterizam as linhas de crédito ‘normais’. Como é que o microcrédito não há-de agradar a todos? É solidário, inclusivo e ‘progressista em matéria de género’, o que agrada à esquerda. Assenta na responsabilidade, no empreendedorismo e na recusa da subsídio-dependência, o que agrada à direita. Então qual é o problema?

Infelizmente, os problemas são vários, no discurso e na prática. Em primeiro lugar, concentra todas as atenções numa única falha de mercado, à qual atribui a responsabilidade pelos problemas de pobreza e exclusão e em cuja superação faz assentar as esperanças de um mundo mais justo e inclusivo. Como se a desigualdade e a exclusão adviessem de falhas do mercado e não da própria lógica de funcionamento do modo de produção. Em segundo lugar, assenta muitas vezes numa falácia de composição, evocando uma sociedade composta por uma imensidade de micro-empresários rumando heroicamente em direcção ao desenvolvimento. Acontece, infelizmente (desculpem lá o marxismo mecanicista…), que a lógica interna da pequena produção mercantil é incompatível com o rápido desenvolvimento das forças produtivas, pelo que está longe de poder ser essa a ‘solução’ para o subdesenvolvimento à escala de toda uma sociedade (ainda que Mohammed Yunus não se abstenha de sugerir essa possibilidade no seu livro mais conhecido). Em terceiro lugar, esquece-se de salientar o facto de que todo o crédito é também uma dívida. Quando a ideia de negócio falha, como muitas inevitavelmente falham, as consequências para os indivíduos mais pobres, que entretanto passaram a ter em cima de si o encargo adicional da dívida, tornam-se ainda mais dramáticas. Em quarto lugar, o microcrédito de carácter mais benigno (mais próximo da tradição das mutualidades de crédito, ou que se faz acompanhar por acompanhamento e formação) tem sido incapaz de impedir a entrada em jogo de um outro tipo de microcrédito, puramente predatório - novas formas da banca comercial aceder a segmentos de mercado ainda por explorar, de forma a ‘banqueirizá-los’ e assim alargar a sua base de expropriação financeira, cobrando juros e comissões especialmente elevados e externalizando para o terceiro sector a responsabilidade pela selecção e supervisão dos clientes. Em quinto lugar, há muitas vezes uma relação de substituição entre estratégias de actuação na área social. O problema é que apenas uma pequena parte das situações de pobreza e exclusão social são ultrapassáveis através do microcrédito, pois só uma pequena parte dos pobres e excluídos o são em resultado de não conseguirem aceder ao crédito comercial normal.

Bem intencionado, louvável e eficaz nalguns casos, sem dúvida. Mas também, muitas vezes, eivado de perversidades reais e potenciais. Recusemos por isso o unanimismo e questionemo-lo criticamente. Hereticamente, se necessário.

6 comentários:

JM disse...

Alem do mais, juros de 20% ou mais nao sao assim tao "desinteressados" e fomentadores do desenvolvimento. Seria interessante saber quantas pessoas se afundaram em dividas com estes equemas.
http://en.wikipedia.org/wiki/Grameen_Bank#Criticism

Ricardo S. Coelho disse...

Há já estudos publicados que demonstram que o micro-crédito não reduz a pobreza. Na Índia, também já há sérios problemas com agiotas destes bancos, que cobram juros altíssimos e recorrem frequentemente à violência para cobrar dívidas. Mas também quem é que acredita que se resolve o problema da pobreza dando crédito aos pobres?

João Carlos Graça disse...

Caro Alexandre
Obrigado pelo seu post.
Em todas as abordagens da "economia social", "terceiro sector", etc. há, segundo me parece, duas atitudes fundamentais a distinguir/opor:
1) De um lado os que, na senda do mutualismo e sindicalismo já do século XIX, consideram que a organização da sociedade em "grupos intermédios" propicia (e na verdade pode mesmo ser uma condição de) uma cidadania mais informada e mais interventiva. Quanto a isto, "pequenas heresias" podem ser rampa de lançamento para "grandes heresias": não esqueçamos que, ao fim e ao cabo, os grandes partidos operários (do SDP alemão e do Labour aos PCs da Eupora meridional, p. ex.) têm uma génese extra-parlamentar, sendo permanentemente suportados (e suportes) de redes de associações (sindicatos, cooperativas...) pululando à sua volta.
2) Do outro, os que nos "grupos intermédios" sempre viram uma saída que possibilitasse a manutenção do mundo operário (e mais amplamente dos pobres em geral) adentro dos limites da sociedade "ordeira". Se para os primeiros a organização da "sociedade civil" é pensada como um potenciador da intervenção num patamar mais "elevado", político, para os últimos ela é um sucedâneo ou uma "diversão", destinando-se precisamente a inibir a tal intervenção mais politizada.
Mais recentemente, a conversa sociológica à la Giddens, com a sua tese de que o aumento da "reflexividade" impede ou inibe a vida política correspondente ao exercício da "liberdade positiva" (a autodeterminação colectiva, democrática), insere-se com facilidade no segundo grupo, acrescentando-lhe um toque de "capital social" (e correspondente ideário "comunitarista") complementado ainda por um análogo da tese das "expectativas racionais" à la Robert Lucas: o que o Estado quiser fazer, os agentes privados acabam por desfazer directa ou indirectamente, pela sua tal correcção permanente de actuações em nome da "reflexividade"/"racionalidade". Em todo o caso, a conclusão é: futilidade fundamental do que o Estado fizer. O melhor a fazer é, em suma, não fazer nada...
O discurso do Alexandre, virando às avessas o argumento da "futilidade", leva-o a afastar-se da segunda versão... e a aproximar-se assim implicitamente da primeira.
Mas note: isto, claro, na minha modesta opinião de "diletante de coxia"...

Manuel Brandão Alves disse...

Meu caro Alexandre Abreu,
Começo com uma espécie de declaração de interesses: fui durante 4 anos Presidente da Associação Nacional de Direito ao Crédito (ANDC).
Dito isto quero agradecer ao Alexandre o texto que nos preparou por, do meu ponto de vista, alertar para algumas das perversões com que podem envolver o microcrédito, nomeadamente, a de se poder pensar que o microcrédito é o instrumento que vai acabar com a pobreza e os riscos por que pode passar o microcrédito por quem dele quer fazer uma espécie de “chá de caridade”.
Dito isto, creio que algumas precisões devem ser feitas.
Diz o Alexandre:
1. O microcrédito “concentra todas as atenções numa única falha de mercado, à qual atribui a responsabilidade pelos problemas de pobreza e exclusão e em cuja superação faz assentar as esperanças de um mundo mais justo e inclusivo”. Se é certo que há uma falha de mercado que é referida com maior frequência, ninguém lhe atribui a responsabilidade exclusiva pelos problemas da pobreza e, também, ninguém tem a expectativa de que o microcrédito baste para acabar com a pobreza. Feliz, ou infelizmente a questão da pobreza é muito mais complexa do que a simples relação de causa e efeito entre falha de mercado – microcrédito – eliminação da pobreza.
2. Admitindo como verdadeira a conclusão de que a desigualdade e a exclusão têm a sua génese no “modo de produção” fica sempre a questão de saber o que faremos à pobreza enquanto não chegar o tempo em que vai ser mudado o “modo de produção”.
3. O microcrédito “é uma dívida” e se o negócio falha as pessoas ficam em pior situação que a situação de partida. Isso é verdade, mas não será por isso que tudo deve ser feito para que não falhe. E mesmo que um reduzido número falhe com o microcrédito não será essa situação preferível à de falharem todos sem microcrédito?

Alexandre Abreu disse...

Obrigado pelos comentários. Desta feita, responderei apenas ao Manuel Brandão Alves, por considerar importante esclarecer o meu ponto de vista. Na verdade, talvez devesse eu próprio ter começado por fazer uma declaração de enquadramento, uma vez que há alguns anos dediquei alguns meses a estudar o caso do microcrédito em Portugal no contexto de um projecto de investigação sobre inovação social. Nessa altura, tive ocasião de conhecer com alguma profundidade não só o trabalho da ANDC como também a actuação das instituições financeiras que intervinham na área do microcrédito – tanto em parceria com a ANDC como através de iniciativas autónomas. A bem da verdade, devo dizer que desse contacto me ficaram duas sensações principais: por um lado, o mérito do trabalho da ANDC, principalmente no que se refere à sua abordagem integrada (não se trata simplesmente de emprestar dinheiro, mas sim de criar condições de acesso ao crédito no âmbito de um processo de acompanhamento, motivação e ‘formação’); por outro lado, o apetite com que a banca privada se lançava então sobre um segmento de mercado até então inexplorado, colhendo dividendos em termos de imagem exterior (motivo pelo qual o microcrédito está muitas vezes sob a tutela dos departamentos de marketing e comunicação externa), cobrando taxas de juro acima do normal e, em diversos casos, externalizando para o terceiro sector os custos da selecção e acompanhamento dos clientes.
Não sei se isso terá ficado claro na minha posta original, mas, neste contexto, a minha intenção fundamental é argumentar que: i) o microcrédito é uma ferramenta interessante e com provas dadas como resposta a certos tipos de situações de pobreza e exclusão social; ii) porém, não constitui a resposta para todas as situações de pobreza e exclusão social, nem sequer para a maioria; iii) neste contexto, o tipo específico de discurso anti-assistencialista que por vezes acompanha a promoção do microcrédito pode ser bastante perverso (por exemplo, “porque não substituir o rendimento social de inserção por acesso generalizado ao crédito?”); e iv) em muitos casos, o microcrédito constitui mais uma das múltiplas faces do processo de financeirização, através do qual o capital financeiro vai penetrando e dominando um conjunto crescente de esferas da vida social. Pelo que: microcrédito acompanhado de formação e acompanhamento, idealmente a par de iniciativas mutualistas de poupança ou do acesso ao crédito público em condições bonificadas, parece-me muito bem; microcrédito como extensão da teia da dívida aos grupos sociais mais vulneráveis, mediante taxas de juro bastante acima do normal e no contexto do qual a banca ‘fica com a carne’ dos lucros enquanto o terceiro sector ‘rói o osso’ da selecção e acompanhamento, já não me parece nada bem. A maior parte dos casos concretos está algures entre estes dois extremos - de onde o apelo ao questionamento crítico, por oposição ao louvor acrítico e unanimista...

Alexandre Abreu disse...
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