A minha primeira posta nesta série de pequenas heresias suscitou uma forte crítica por parte de Paulo Pedroso. Entre outras coisas, considera que a minha avaliação da funcionalidade, para a agenda neoliberal, do discurso e prática em torno da inovação social padece de “marxismo mecanicista”; e acusa-me de ignorar o facto de numerosas inovações sociais terem tido um impacto importante na vida de muitas pessoas e comunidades concretas.
Pela minha parte, considero que Paulo Pedroso acerta na barra, pois é incapaz de rebater os meus dois argumentos principais: por um lado, a ideia da progressiva transformação do debate em redor da ‘inclusão social’ numa problemática cada vez mais técnica e menos política; por outro lado, a tese de que o elogio da descentralização da política social, que acompanha habitualmente o discurso acerca da inovação social, deslegitima a acção do Estado e legitima a sua reengenharia em moldes neoliberais. Não se trata de rejeitar liminarmente tudo o que é feito sob a bandeira da inovação social – trata-se, isso sim, de questionar criticamente os aspectos perversos do discurso e da prática.
O mesmo vale para o microcrédito, sobre o qual incide a segunda posta nesta série. Em que consiste, afinal? Fundamentalmente, na criação de mecanismos que permitem o acesso ao crédito para investimento por parte de indivíduos que, em condições normais, não lhe conseguiriam aceder devido a não possuírem bens susceptíveis de constituírem garantias reais. No contexto dos países do Sul, especialmente em meios rurais, estes mecanismos assentam tipicamente na concessão de empréstimos a grupos de indivíduos, que se tornam responsáveis de forma solidária pelo pagamento das dívidas. Nalguns casos mais louváveis (como o da Associação Nacional de Direito ao Crédito, aqui em Portugal), a intervenção vai além da criação de mecanismos que permitam superar esta falha de mercado, incluindo também o acompanhamento dos novos negócios por parte de agentes de microcrédito – acompanhamento esse que na prática acaba por constituir uma forma de formação profissional.
Indivíduos pobres e excluídos, com boas ideias de negócio, sem possibilidade de acesso ao crédito pelas vias normais, a quem o microcrédito permite ultrapassar este obstáculo inicial de modo a conseguirem ‘criar riqueza’ por si mesmos. Na maioria dos casos (especialmente no caso seminal do Banco Grameen e das iniciativas nos países do Sul), os beneficiários são mulheres. As taxas de incumprimento são em geral mais baixas do que as caracterizam as linhas de crédito ‘normais’. Como é que o microcrédito não há-de agradar a todos? É solidário, inclusivo e ‘progressista em matéria de género’, o que agrada à esquerda. Assenta na responsabilidade, no empreendedorismo e na recusa da subsídio-dependência, o que agrada à direita. Então qual é o problema?
Infelizmente, os problemas são vários, no discurso e na prática. Em primeiro lugar, concentra todas as atenções numa única falha de mercado, à qual atribui a responsabilidade pelos problemas de pobreza e exclusão e em cuja superação faz assentar as esperanças de um mundo mais justo e inclusivo. Como se a desigualdade e a exclusão adviessem de falhas do mercado e não da própria lógica de funcionamento do modo de produção. Em segundo lugar, assenta muitas vezes numa falácia de composição, evocando uma sociedade composta por uma imensidade de micro-empresários rumando heroicamente em direcção ao desenvolvimento. Acontece, infelizmente (desculpem lá o marxismo mecanicista…), que a lógica interna da pequena produção mercantil é incompatível com o rápido desenvolvimento das forças produtivas, pelo que está longe de poder ser essa a ‘solução’ para o subdesenvolvimento à escala de toda uma sociedade (ainda que Mohammed Yunus não se abstenha de sugerir essa possibilidade no seu livro mais conhecido). Em terceiro lugar, esquece-se de salientar o facto de que todo o crédito é também uma dívida. Quando a ideia de negócio falha, como muitas inevitavelmente falham, as consequências para os indivíduos mais pobres, que entretanto passaram a ter em cima de si o encargo adicional da dívida, tornam-se ainda mais dramáticas. Em quarto lugar, o microcrédito de carácter mais benigno (mais próximo da tradição das mutualidades de crédito, ou que se faz acompanhar por acompanhamento e formação) tem sido incapaz de impedir a entrada em jogo de um outro tipo de microcrédito, puramente predatório - novas formas da banca comercial aceder a segmentos de mercado ainda por explorar, de forma a ‘banqueirizá-los’ e assim alargar a sua base de expropriação financeira, cobrando juros e comissões especialmente elevados e externalizando para o terceiro sector a responsabilidade pela selecção e supervisão dos clientes. Em quinto lugar, há muitas vezes uma relação de substituição entre estratégias de actuação na área social. O problema é que apenas uma pequena parte das situações de pobreza e exclusão social são ultrapassáveis através do microcrédito, pois só uma pequena parte dos pobres e excluídos o são em resultado de não conseguirem aceder ao crédito comercial normal.
Bem intencionado, louvável e eficaz nalguns casos, sem dúvida. Mas também, muitas vezes, eivado de perversidades reais e potenciais. Recusemos por isso o unanimismo e questionemo-lo criticamente. Hereticamente, se necessário.
Pela minha parte, considero que Paulo Pedroso acerta na barra, pois é incapaz de rebater os meus dois argumentos principais: por um lado, a ideia da progressiva transformação do debate em redor da ‘inclusão social’ numa problemática cada vez mais técnica e menos política; por outro lado, a tese de que o elogio da descentralização da política social, que acompanha habitualmente o discurso acerca da inovação social, deslegitima a acção do Estado e legitima a sua reengenharia em moldes neoliberais. Não se trata de rejeitar liminarmente tudo o que é feito sob a bandeira da inovação social – trata-se, isso sim, de questionar criticamente os aspectos perversos do discurso e da prática.
O mesmo vale para o microcrédito, sobre o qual incide a segunda posta nesta série. Em que consiste, afinal? Fundamentalmente, na criação de mecanismos que permitem o acesso ao crédito para investimento por parte de indivíduos que, em condições normais, não lhe conseguiriam aceder devido a não possuírem bens susceptíveis de constituírem garantias reais. No contexto dos países do Sul, especialmente em meios rurais, estes mecanismos assentam tipicamente na concessão de empréstimos a grupos de indivíduos, que se tornam responsáveis de forma solidária pelo pagamento das dívidas. Nalguns casos mais louváveis (como o da Associação Nacional de Direito ao Crédito, aqui em Portugal), a intervenção vai além da criação de mecanismos que permitam superar esta falha de mercado, incluindo também o acompanhamento dos novos negócios por parte de agentes de microcrédito – acompanhamento esse que na prática acaba por constituir uma forma de formação profissional.
Indivíduos pobres e excluídos, com boas ideias de negócio, sem possibilidade de acesso ao crédito pelas vias normais, a quem o microcrédito permite ultrapassar este obstáculo inicial de modo a conseguirem ‘criar riqueza’ por si mesmos. Na maioria dos casos (especialmente no caso seminal do Banco Grameen e das iniciativas nos países do Sul), os beneficiários são mulheres. As taxas de incumprimento são em geral mais baixas do que as caracterizam as linhas de crédito ‘normais’. Como é que o microcrédito não há-de agradar a todos? É solidário, inclusivo e ‘progressista em matéria de género’, o que agrada à esquerda. Assenta na responsabilidade, no empreendedorismo e na recusa da subsídio-dependência, o que agrada à direita. Então qual é o problema?
Infelizmente, os problemas são vários, no discurso e na prática. Em primeiro lugar, concentra todas as atenções numa única falha de mercado, à qual atribui a responsabilidade pelos problemas de pobreza e exclusão e em cuja superação faz assentar as esperanças de um mundo mais justo e inclusivo. Como se a desigualdade e a exclusão adviessem de falhas do mercado e não da própria lógica de funcionamento do modo de produção. Em segundo lugar, assenta muitas vezes numa falácia de composição, evocando uma sociedade composta por uma imensidade de micro-empresários rumando heroicamente em direcção ao desenvolvimento. Acontece, infelizmente (desculpem lá o marxismo mecanicista…), que a lógica interna da pequena produção mercantil é incompatível com o rápido desenvolvimento das forças produtivas, pelo que está longe de poder ser essa a ‘solução’ para o subdesenvolvimento à escala de toda uma sociedade (ainda que Mohammed Yunus não se abstenha de sugerir essa possibilidade no seu livro mais conhecido). Em terceiro lugar, esquece-se de salientar o facto de que todo o crédito é também uma dívida. Quando a ideia de negócio falha, como muitas inevitavelmente falham, as consequências para os indivíduos mais pobres, que entretanto passaram a ter em cima de si o encargo adicional da dívida, tornam-se ainda mais dramáticas. Em quarto lugar, o microcrédito de carácter mais benigno (mais próximo da tradição das mutualidades de crédito, ou que se faz acompanhar por acompanhamento e formação) tem sido incapaz de impedir a entrada em jogo de um outro tipo de microcrédito, puramente predatório - novas formas da banca comercial aceder a segmentos de mercado ainda por explorar, de forma a ‘banqueirizá-los’ e assim alargar a sua base de expropriação financeira, cobrando juros e comissões especialmente elevados e externalizando para o terceiro sector a responsabilidade pela selecção e supervisão dos clientes. Em quinto lugar, há muitas vezes uma relação de substituição entre estratégias de actuação na área social. O problema é que apenas uma pequena parte das situações de pobreza e exclusão social são ultrapassáveis através do microcrédito, pois só uma pequena parte dos pobres e excluídos o são em resultado de não conseguirem aceder ao crédito comercial normal.
Bem intencionado, louvável e eficaz nalguns casos, sem dúvida. Mas também, muitas vezes, eivado de perversidades reais e potenciais. Recusemos por isso o unanimismo e questionemo-lo criticamente. Hereticamente, se necessário.
6 comentários:
Alem do mais, juros de 20% ou mais nao sao assim tao "desinteressados" e fomentadores do desenvolvimento. Seria interessante saber quantas pessoas se afundaram em dividas com estes equemas.
http://en.wikipedia.org/wiki/Grameen_Bank#Criticism
Há já estudos publicados que demonstram que o micro-crédito não reduz a pobreza. Na Índia, também já há sérios problemas com agiotas destes bancos, que cobram juros altíssimos e recorrem frequentemente à violência para cobrar dívidas. Mas também quem é que acredita que se resolve o problema da pobreza dando crédito aos pobres?
Caro Alexandre
Obrigado pelo seu post.
Em todas as abordagens da "economia social", "terceiro sector", etc. há, segundo me parece, duas atitudes fundamentais a distinguir/opor:
1) De um lado os que, na senda do mutualismo e sindicalismo já do século XIX, consideram que a organização da sociedade em "grupos intermédios" propicia (e na verdade pode mesmo ser uma condição de) uma cidadania mais informada e mais interventiva. Quanto a isto, "pequenas heresias" podem ser rampa de lançamento para "grandes heresias": não esqueçamos que, ao fim e ao cabo, os grandes partidos operários (do SDP alemão e do Labour aos PCs da Eupora meridional, p. ex.) têm uma génese extra-parlamentar, sendo permanentemente suportados (e suportes) de redes de associações (sindicatos, cooperativas...) pululando à sua volta.
2) Do outro, os que nos "grupos intermédios" sempre viram uma saída que possibilitasse a manutenção do mundo operário (e mais amplamente dos pobres em geral) adentro dos limites da sociedade "ordeira". Se para os primeiros a organização da "sociedade civil" é pensada como um potenciador da intervenção num patamar mais "elevado", político, para os últimos ela é um sucedâneo ou uma "diversão", destinando-se precisamente a inibir a tal intervenção mais politizada.
Mais recentemente, a conversa sociológica à la Giddens, com a sua tese de que o aumento da "reflexividade" impede ou inibe a vida política correspondente ao exercício da "liberdade positiva" (a autodeterminação colectiva, democrática), insere-se com facilidade no segundo grupo, acrescentando-lhe um toque de "capital social" (e correspondente ideário "comunitarista") complementado ainda por um análogo da tese das "expectativas racionais" à la Robert Lucas: o que o Estado quiser fazer, os agentes privados acabam por desfazer directa ou indirectamente, pela sua tal correcção permanente de actuações em nome da "reflexividade"/"racionalidade". Em todo o caso, a conclusão é: futilidade fundamental do que o Estado fizer. O melhor a fazer é, em suma, não fazer nada...
O discurso do Alexandre, virando às avessas o argumento da "futilidade", leva-o a afastar-se da segunda versão... e a aproximar-se assim implicitamente da primeira.
Mas note: isto, claro, na minha modesta opinião de "diletante de coxia"...
Meu caro Alexandre Abreu,
Começo com uma espécie de declaração de interesses: fui durante 4 anos Presidente da Associação Nacional de Direito ao Crédito (ANDC).
Dito isto quero agradecer ao Alexandre o texto que nos preparou por, do meu ponto de vista, alertar para algumas das perversões com que podem envolver o microcrédito, nomeadamente, a de se poder pensar que o microcrédito é o instrumento que vai acabar com a pobreza e os riscos por que pode passar o microcrédito por quem dele quer fazer uma espécie de “chá de caridade”.
Dito isto, creio que algumas precisões devem ser feitas.
Diz o Alexandre:
1. O microcrédito “concentra todas as atenções numa única falha de mercado, à qual atribui a responsabilidade pelos problemas de pobreza e exclusão e em cuja superação faz assentar as esperanças de um mundo mais justo e inclusivo”. Se é certo que há uma falha de mercado que é referida com maior frequência, ninguém lhe atribui a responsabilidade exclusiva pelos problemas da pobreza e, também, ninguém tem a expectativa de que o microcrédito baste para acabar com a pobreza. Feliz, ou infelizmente a questão da pobreza é muito mais complexa do que a simples relação de causa e efeito entre falha de mercado – microcrédito – eliminação da pobreza.
2. Admitindo como verdadeira a conclusão de que a desigualdade e a exclusão têm a sua génese no “modo de produção” fica sempre a questão de saber o que faremos à pobreza enquanto não chegar o tempo em que vai ser mudado o “modo de produção”.
3. O microcrédito “é uma dívida” e se o negócio falha as pessoas ficam em pior situação que a situação de partida. Isso é verdade, mas não será por isso que tudo deve ser feito para que não falhe. E mesmo que um reduzido número falhe com o microcrédito não será essa situação preferível à de falharem todos sem microcrédito?
Obrigado pelos comentários. Desta feita, responderei apenas ao Manuel Brandão Alves, por considerar importante esclarecer o meu ponto de vista. Na verdade, talvez devesse eu próprio ter começado por fazer uma declaração de enquadramento, uma vez que há alguns anos dediquei alguns meses a estudar o caso do microcrédito em Portugal no contexto de um projecto de investigação sobre inovação social. Nessa altura, tive ocasião de conhecer com alguma profundidade não só o trabalho da ANDC como também a actuação das instituições financeiras que intervinham na área do microcrédito – tanto em parceria com a ANDC como através de iniciativas autónomas. A bem da verdade, devo dizer que desse contacto me ficaram duas sensações principais: por um lado, o mérito do trabalho da ANDC, principalmente no que se refere à sua abordagem integrada (não se trata simplesmente de emprestar dinheiro, mas sim de criar condições de acesso ao crédito no âmbito de um processo de acompanhamento, motivação e ‘formação’); por outro lado, o apetite com que a banca privada se lançava então sobre um segmento de mercado até então inexplorado, colhendo dividendos em termos de imagem exterior (motivo pelo qual o microcrédito está muitas vezes sob a tutela dos departamentos de marketing e comunicação externa), cobrando taxas de juro acima do normal e, em diversos casos, externalizando para o terceiro sector os custos da selecção e acompanhamento dos clientes.
Não sei se isso terá ficado claro na minha posta original, mas, neste contexto, a minha intenção fundamental é argumentar que: i) o microcrédito é uma ferramenta interessante e com provas dadas como resposta a certos tipos de situações de pobreza e exclusão social; ii) porém, não constitui a resposta para todas as situações de pobreza e exclusão social, nem sequer para a maioria; iii) neste contexto, o tipo específico de discurso anti-assistencialista que por vezes acompanha a promoção do microcrédito pode ser bastante perverso (por exemplo, “porque não substituir o rendimento social de inserção por acesso generalizado ao crédito?”); e iv) em muitos casos, o microcrédito constitui mais uma das múltiplas faces do processo de financeirização, através do qual o capital financeiro vai penetrando e dominando um conjunto crescente de esferas da vida social. Pelo que: microcrédito acompanhado de formação e acompanhamento, idealmente a par de iniciativas mutualistas de poupança ou do acesso ao crédito público em condições bonificadas, parece-me muito bem; microcrédito como extensão da teia da dívida aos grupos sociais mais vulneráveis, mediante taxas de juro bastante acima do normal e no contexto do qual a banca ‘fica com a carne’ dos lucros enquanto o terceiro sector ‘rói o osso’ da selecção e acompanhamento, já não me parece nada bem. A maior parte dos casos concretos está algures entre estes dois extremos - de onde o apelo ao questionamento crítico, por oposição ao louvor acrítico e unanimista...
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