O texto é útil porque discute algo que tem estado ausente das análises sobre o Brasil. Mostra que Dilma Roussef não teve azar com a crise que, segundo se diz, atingiu o Brasil. Não, a crise foi fabricada pela política económica da própria Dilma, assessorada pela sua equipa económica e financeira, gente formatada pela teoria económica neoliberal. Dilma traiu o seu programa eleitoral logo após a reeleição quando decidiu agradar ao poder financeiro através de um "ajustamento" orçamental que encomendou ao economista neoliberal Joaquim Levy. A enorme recessão produzida pela nova política orçamental foi decisiva para a erosão da base social de apoio ao PT e, finalmente, a sua derrota. Sem a crise que o governo produziu, os outros factores de erosão do PT teriam sido menos eficazes.
" Parece mais razoável acreditar que a combinação do ressentimento, dominante na classe média, relativamente à expansão dos programas sociais, com a aceitação dentro do partido de vários elementos do discurso neoliberal, que minou o apoio da sua base, estão no centro dos seus problemas actuais.
Os protestos de 2013 começaram com base em problemas legítimos ligados ao custo dos transportes públicos. Mas os protestos rapidamente alargaram o seu âmbito e os grupos da extrema-direita que lutavam contra o PT tomaram a liderança. Note-se, porém, que apesar dos protestos de massa, e das queixas por razões económicas e sobre a corrupção, Dilma Roussef ganhou as eleições em 2014 com a promessa de expandir os programas sociais do PT. O verdadeiro problema para o PT surge com o volte-face após as eleições, quando Dilma nomeia Joaquim Levy, um neoliberal do Bradesco, um dos maiores bancos, para ministro das finanças, com o mandato de realizar um ajustamento orçamental.
Política orçamental conservadora é, desde sempre, uma ideologia do PT, apenas posta entre parêntesis durante a crise de 2009 com um Plano para a Aceleração do Crescimento (PAC). Mas essas ideias estavam impregnadas, e as ideias dos peritos anti-austeridade, Keynesianos (Lernerianos, para ser mais preciso) eram marginais. Não me interpretem mal. Depois de uma austeridade inicial e da promessa de adoptar políticas orçamentais responsáveis (a vergonhosa carta ao povo brasileiro), o PT expandiu a despesa social, e isso seguramente foi importante para o crescimento económico e o aumento das receitas fiscais (por isso, os saldos orçamentais não se deterioraram), e ainda mais depois do PAC com mais investimento. Mas a noção ideológica de que os défice são problemáticos manteve um lugar central no partido e, sem surpresas, a equipa económica de Dilma aceitou o veredicto de que o ajustamento era necessário.
A enorme recessão causada pelas políticas de austeridade conduziu ao colapso da economia, o que facilitou a acusação de incompetência e permitiu inventar razões para o derrube de Dilma (essencialmente, a criminalização de políticas rotineiras relativamente inócuas, o atraso nos pagamentos aos bancos públicos, as chamadas "pedaladas").* Pior, algumas das ideias que estavam em discussão durante o ajustamento orçamental de 2015, como o limite para a despesa pública, já estão a ser implementadas. O Projecto de Emenda Constitucional 241/55 impõe um limite para a despesa real (despesa corrigida da inflação) durante 20 anos. A norma pretende resolver um problema que não existe, ou seja, pressupõe que a Constituição de 1988 deu demasiado no que toca a benefícios sociais e que isto causou a inflação recente e a falta de crescimento.** De qualquer forma, estas regras são criadas sobretudo para impedir políticas progressistas no futuro.
Portanto, uma combinação de erros do PT*** com o rancor revanchista da direita, beneficiando de importante apoio na classe média, explicam o inacreditável colapso do PT. (...)
Os actuais acontecimentos no Brasil têm importantes implicações. O escândalo da corrupção não só impediu uma discussão séria sobre o investimento público, já que o 'modus operandi' das regras para as compras públicas no Brasil exigiam várias destas práticas que agora estão sob escrutínio, mas também consolidou um consenso de que os défices orçamentais são, por definição, um instrumento de corrupção. Mais ainda, a crise quase certamente destruiu a possibilidade de usar a Petrobras como instrumento de política industrial, para comprar equipamento especializado, etc. (o meu palpite é de que os grupos da direita vão, pelo menos, tentar privatizá-la). Note-se que nos EUA a corrupção é tão endémica como no Brasil, até nalguns casos prevista na lei (quer dizer, não é ilegal, mesmo que seja moralmente inaceitável). E mesmo assim os EUA preservam a capacidade de fazer política industrial através do orçamento da defesa. (...)
Sem um partido do centro-esquerda capaz de ganhar eleições e usar o aparelho do Estado para promover um mínimo de redistribuição do rendimento através do aumento da despesa social e do salário mínimo, como fez o PT, o Brasil parece condenado a manter a sua longa história de desigualdade social. E isto não augura nada de bom para o resto da esquerda na América Latina."
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* Algo semelhante está a acontecer na Argentina, criminalizar a decisão sobre a taxa de câmbio tomada pelo banco central. Mais sobre isto quando escrever sobre a Argentina.
** Evidentemente, a inflação recente não está relacionada com a política orçamental expansionista. Nos últimos anos, ela andou a par com a recessão e a contracção orçamental. O comportamento dos salários e a taxa de câmbio são muitíssimo mais importantes. E se a recessão causada pela contracção orçamental não o convenceu quanto à falácia da "austeridade expansionista", então nada o convencerá.
*** Sobre isto, devemos acrescentar que os membros do PT sempre se tinham queixado da corrupção, uma questão moral, e sugerido que o seu governo seria diferente. Um erro enorme, pois o problema da corrupção - que deve ser combatida, não me interpretem mal - é estrutural. Isto é, a corrupção é intrínseca ao modo como o país é governado, e era óbvio que a administração do PT não lhe ficaria imune e que seriam necessários mecanismos para lidar com ela e reduzi-la.
11 comentários:
Harold Wilson e François Miterrand, seguidos pouco depois por Clinton, têm um legado histórico de capitulação que nunca mais deixa de nos trazer miséria. Uma lição que alguém há-de aprender quando não houver outra opção.
Olho assim de relance para uns gráficos e lembro-me de na altura ter pensado para mim mesmo:
"Esta gaja (Dilma) está a fazer uma burrada monumental".
Lembro no entanto que houve factores externos que influenciaram a má resposta de Dilma, nomeadamente o "tapering" do quantitative easing da FED americana. Recordo que o problema era que a liquidez injectada na economia mundial estava a diminuir e isso levava a que os capitais abandonassem os mercados emergentes. A resposta de Dilma ou do seu MF aumentando os juros apanhou desprevenida muita gente no Brasil com créditos que se viram em dificuldades.
A queda do preço do petróleo foi também um factor poderoso porque quase toda a produção brasileira é em offshore, com custos de produção superiores aos preços de então no mercado internacional.
Vivemos um período que é a continuação da mesma tendência geral com episódios de agudização com a subida dos juros nos USA que já tiveram o efeito de colocar a Turquia em dificuldades cambiais. Isto porque os capitais que "andam por aí" à procura de rentabilidade afluem agora aos USA.
S.T.
Como isto aqui parece um cantinho sossegado, sem josés nem pimenteis à vista, talvez seja um bom lugar para "trocar uns cromos".
Embora o tema do link (tinha que haver um link, né?:) encontre reflexos na situação do Brasil o seu âmbito é muito mais vasto.
http://bostonreview.net/class-inequality/j-w-mason-market-police
Trata-se da recenção de um livro de um autor para mim desconhecido, Quinn Slobodian.
O livro, "Globalists: The End of Empire and the Birth of Neoliberalism" aborda o neoliberalismo sob uma perspectiva a meu ver original, ou pelo menos eu nunca a tinha encontrado.
Eis alguns trechos que me despertaram mais a atenção:
"But Slobodian is right to identify a consistent position from the 1920s down to the present that a sovereign, democratic state cannot be relied on to defend the concentrated power and privilege of private property. If claims on the material world and on our collective labor are ultimately decided on by us all, shouldn’t they be distributed on some basis of equity or efficiency rather than whatever property titles happen to have been inherited from the past?"
"But the project was also broader than that. One of Slobodian’s great insights is that the neoliberal program was not simply a move in the distributional fight, but rather about establishing a social order in which distribution was not a political question at all. For money and markets to be the central organizing principle of society, they have to appear natural—beyond the reach of politics."
"Globalism in this story is the creation of property rights that, precisely because they span multiple sovereignties, cannot be touched by one government without inviting conflict with another."
"The goal wasn’t so much any particular economic outcome so much as a world in which ordinary people and policymakers experienced economic outcomes, whatever they were, as beyond human control.
As Slobodian’s title suggests, the main path toward this goal was an effort to shift power away from the national realm where democratic politics operated."
"Under these conditions, formal legal protections were a weak reed for private property to rest on. The only force strong enough to restrain government, it seemed clear, was other governments. National politics must be enmeshed and tied down in a web of border-crossing economic relations. "
"Organizing property and production across borders—whether through free trade, protections for foreign investment, currency unions or other devices—does more than limit the power of governments. It also serves, Slobodian writes, “to dissolve the small, discrete collective of mutual identification—the miners or Papuans—in a larger unity.” Hayek spent much of his life searching for “a political model that would undermine the ‘solidarity of interests’ that naturally cohered” among similarly-situated people. Open borders played a critical role here, ensuring that economic interests were never “lastingly identified with the inhabitants of a particular region.”"
Enfin, o texto é rico e para quem souber tirar as devidas ilações explica muitas das aparentes "falhas" de estados e organizações internacionais.
S.T.
Segundo cromo para a troca, um excelente texto, uma pérola, de Ann Pettifor, "The indefatigable efforts of J. M. Keynes"
Por aqui, senhoras e senhores:
https://www.the-tls.co.uk/articles/public/jm-keynes-footnotes-to-plato/
Como de costume, boa leitura!
S.T.
Bastante interessante de facto o texto de Slobodian. E há mais
O país da América Latina mais próspero, com maior qualidade de serviços públicos, melhores salários e maior PIB per capita, é o Chile. O mais miserável é a Venezuela. Alguém encontra um padrão com referência à teoria económica? A ciência baseia-se em factos e não em sonhos, e isso a esquerda jamais compreenderá.
Eu só vim aqui trocar uns cromos, não deitar palha ao Sr. Pimentel.
Precisa (o Sr Pimentel) de tomar uma medicação qualquer para a memória. É que do Chile já tratámos em comentários lá para trás, e que me lembre, ficou sobejamente estabelecido que o êxito do Chile não se ficou a dever aos boys da escola de Chicago e muito menos à besta do Pinochet.
Posto o que voltamos aos nossos cromos :)
E voltando à recensão do livro do Sr Slobodian, a conclusão que se tira é que, sendo o objectivo neoliberal entravar o mais possível o processo de redistribuição de riqueza e a implementação de direitos de propriedade absolutos, isso teria impactos previsíveis desde já na estrutura social dos países sob a alçada de tal regime.
A primeira consequência é o enfraquecimento da democracia como instrumento de escolha e de expressão da vontade da maioria. Até agora os neoliberais usaram o seu poder financeiro para dominar os orgãos de informação e, consequentemente, as opiniões públicas dos países onde imperam. As redes sociais vieram baralhar um pouco as coisas, mas como o episódio Bolsonaro prova à saciedade basta os interessados investirem maciçamente em desinformação para o povão ser mais uma vez enrolado.
A segunda consequência é o modelo de longo prazo que a ideologia neoliberal visa criar. E a sociedade resultante teria inevitávelmente um grau extremo de desigualdade, com elites privilegiadas e ociosas reinando sobre uma multidão de miseráveis, vivendo em cidades com infraestruturas altamente degradadas e com elevados índices de insegurança.
Mais do que isso, ao implementar a segregação social e a destruição dos elevadores sociais uma tal sociedade seria práticamente imutável com um sistema de castas a lembrar o pior da sociedade indiana e as corporações a funcionarem como feudos verticalizados.
O texto lança luz também sobre o determinismo das funções produtivas dos países, com a limitação de facto do que cada um pode produzir ou fazer. Nesse contexto Portugal epenas poderia almejar produzir turismo e serviços, sendo irrelevante a quantidade de engenheiros que produza porque nunca teriam ocasião de criar indústrias de alto valor acrescentado em Portugal. O mais que tais engenheiros poderiam almejar seria um bilhete para a Alemanha, onde aí sim, poderiam desenvolver a actividade para que se formaram.
Será esta a sociedade que queremos? Se não é isto que queremos o preço é sermos capazes varrer os argumentários falaciosos dos pimenteis-ferreira que por aí andam.
S.T.
Mais dois cromos para a troca.
O primeiro é um blogpost de Branko Milanovic sobre o mesmo livro de Slobodian:
http://glineq.blogspot.com/2018/10/globalists-neoliberals-in-search-of.html
O segundo é um texto que prevê a instabilidade de uma sociedade fundamentada em valores neoliberais.
http://axisoflogic.com/artman/publish/Article_81711.shtml
Note-se que este último artigo está em aparente contradição com o meu comentário acima (ainda não publicado). Mas se se considerar o domínio da populaça através do controle dos meios de informação, de psyops, de bastantes pimenteis-ferreira, de restrições à democraticidade das sociedades e de restrições à soberania dos povos, temo que tais sociedades se tornem viáveis apesar de terrivelmente distópicas.
Já agora, Branko Milanovic é certamente um bloger a seguir.
Talvez http://glineq.blogspot.com/ merecesse um lugarzinho na coluna da direita do LdB, juntamente com o Les Crises que alberga Jacques Sapir.
S.T.
Não é tão catita?
Pimentel Ferreira a repetir em todos os posts o mesmo comentário, feito caixa de ressonância dos rapazes de Pinochet.
Enquanto enche diariamente as caixas de comentários de jornais com comentários à medida da sua altura, ou seja , abaixo do solo
A fazer tirocínio há muito tempo para um sicário de um qualquer bolsonaro
Tenho mais dois cromos para a troca! :)
Lembram-se do infame Sr. Poul M. Thomsen? Esse mesmo! Aquele homem do FMI que veio cá supervisionar a austeridade passista.
Ora bem, pasmem as alminhas, o Sr. Poul M. Thomsen decidiu escrever sobre como a abordagem da Islândia à crise foi afinal tão, mas tão, tão bem sucedida. Espantoso, não é?
https://blogs.imf.org/2011/10/26/how-iceland-recovered-from-its-near-death-experience/
Segundo cromo: O Sr Merz, que é candidato à sucessão da Sra Merkel, falou e disse:
“And this currency, which is in the meantime too weak for our economy, is still too strong for most of the others,” he added, speaking English at the event in Berlin.
“We are benefiting within the European Union, within the internal market, but beside that we are benefiting in international trade - towards China, towards the U.S., towards other regions in the world - from this currency policy.”
Ou seja:
"E essa moeda, que entretanto é muito fraca para a nossa economia, é no entanto forte demais para a maioria das outras (economias)", acrescentou ele, falando em inglês no evento em Berlim.
"Somos beneficiados dentro da União Europeia, dentro do mercado interno, mas além disso somos beneficiados no comércio internacional - em relação à China, em relação aos EUA e em relação a outras regiões do mundo - por esta política monetária".
“We have to tell the people in this country that the Germans have to contribute more than others to the success of the European Union,” he added, calling for close cooperation with France to find a way forward on European economic policy.
“We have to do more than we are actually doing because if Europe fails - and this is a clear option, no one can deny it, Europe is really at the threshold at the moment - if Europe fails, the Germans will be those who suffer most from that.”
Tradizindo:
"Temos de dizer às pessoas neste país que os alemães têm que contribuir mais do que outros para o sucesso da União Européia", acrescentou, pedindo uma cooperação próxima com a França para encontrar um caminho para a política econômica européia.
"Temos que fazer mais do que realmente estamos fazendo, porque se a Europa falhar - e esta é uma opção clara, ninguém pode negar, a Europa está realmente no limiar no momento - se a Europa falhar, os alemães serão aqueles que sofrem mais disso. ”
https://uk.reuters.com/article/uk-germany-economy/conservative-merz-says-germany-benefits-from-weak-euro-idUKKBN1ND21L
Haaaaaaa! Nada como um bom apertar de calos bem populista para fazer vir à superfície a racionalidade nas cabecinhas germânicas.
S.T.
Para quem domine a língua francesa, goste de história e geopolítica e tenha duas horas para gastar proponho não um cromo mas um poster. Uma entrevista com Emmanuel Todd no Les Crises:
https://www.les-crises.fr/emmanuel-todd-trahison-des-elites-francaises-par-thinkerview/
S.T.
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