quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Excelente orçamento para gerir a resignação


A discussão do Orçamento do Estado para 2019 tem dado atenção a uma lista de medidas que alguns comentadores consideram ter sido composta sobretudo para um ano de eleições. Esse não é o meu critério de avaliação de um orçamento. 
Acabar com a penalização das reformas antecipadas, repor algum poder de compra perdido pelas pensões mais baixas, aumentar um pouquinho o valor abaixo do qual não se paga IRS porque se é pobre, aliviar em cerca de 5% o custo da luz nos alojamentos com baixa potência contratada, manter algum apoio aos desempregados de longa duração, sobretudo quando têm filhos, ou criar um esquema de desconto nos passes sociais para o transporte público das famílias, tudo isto é o mínimo que se espera de um orçamento que procure melhorar o bem-estar dos cidadãos mais modestos. É o normal funcionamento de uma democracia, por muito que isso incomode alguns (demasiados) analistas.
Compreendo o seu incómodo. Andaram, durante anos, a moer-nos o juízo com a ladainha das contas certas e a aldrabice da austeridade expansionista, como se a economia de um país fosse semelhante a uma economia doméstica. Agora, com um défice previsto de 0,2%, não podem ter o topete de dizer que o orçamento é mau. Ainda por cima, quando foi elaborado pelo presidente do chamado Eurogrupo. Que mais querem?
Há sempre aquele argumento da necessidade de um excedente, de uma “folga orçamental” para, numa conjuntura adversa, o défice poder subir através dos estabilizadores automáticos. Mas isso não é política orçamental, isso é apenas o funcionamento da imbricação economia-orçamento que (às vezes) não querem ver. Uma política orçamental, digna desse nome, usa o orçamento para promover o pleno emprego e a estabilidade dos preços. Como ensina a boa teoria, o orçamento é apenas um instrumento de política económica para a promoção daqueles objectivos. Bem sei, na zona euro a política orçamental está proibida. Assim, a próxima crise financeira vai apanhar vários países ainda a recuperar da última e, mais uma vez, sem política orçamental para a enfrentar. Um dia destes, virão lembrar-nos que somos como Sísifo: nova recessão, mais desemprego, novos cortes e novas recapitalizações, tudo sob a condicionalidade do Mecanismo Europeu de Estabilidade que passa a substituir a troika.
Isto remete para o cenário de um crescimento de 2,2%. Aqui, importa lembrar que as medidas acima enunciadas, acrescidas do que se destina à Administração Pública (aumentos modestos dos funcionários, progressões nas carreiras, novas contratações), reforçadas por um aumento do investimento público que ainda assim o mantém, em percentagem do PIB, em valores historicamente baixos, terão um efeito multiplicador significativo. O público-alvo tem elevada propensão a consumir produção nacional. Com alguma sorte, o crescimento pode ser superior a 2,2%, convertendo então o défice em excedente, tudo para a maior glória de Mário Centeno e a “credibilidade” de Portugal. As enormes carências do país, essas terão de esperar por nova legislatura.
E se um mau alinhamento dos astros – “Trump-China-Brexit-Itália-petróleo-finança” – fizer descarrilar este cenário, com o regresso do tempo da grande turbulência? Nesse caso, só me resta esperar que ainda haja alguém no governo que saiba para que serve um orçamento, fora do ordoliberalismo dos Tratados, e perceba que a verdadeira política orçamental trabalha articuladamente com a política monetária. Porém, a conversa sobre os 600 milhões que o Banco (que já não é) de Portugal vai entregar ao Estado – depois de avaliar cautelosamente os riscos do seu balanço! –, não me deixa tranquilo. Fica-se com a impressão de que não sabem que um banco central cria a moeda de que precisa e garante sempre o reembolso da dívida pública emitida em moeda nacional.

(Publicado ontem no Jornal de Negócios)

6 comentários:

Anónimo disse...

Aprecio neste OE, em particular, a descida do iva na electricidade. Que afinal é só na potência. E não em toda.

E as ajudas ao transmontano que quer tirar um curso no Técnico ou na FEUP? Ajudar o interior.

Vejo com agrado a questão dos passes nas zonas metropolitanas. Claro que quem vive fora, mesmo usando transportes públicos, paga e não chora.

Anónimo disse...

Um post comedido mas que acerta no alvo várias vezes.
Muito bom

Anónimo disse...

As ajudas ao transmontano, a descida do IVA na electricidade, a questão dos passes nas zonas metropolitanas são de facto boas notícias, enquadradas no comentário mais geral de Jorge Bateira

Que ainda se tornam melhores quando comparadas com os orçamentos austeritários e criminosos da seita retintamente neoliberal.

A Nossa Travessa disse...

Gostei. Nada de exageros, suave, criterioso, com os pés bem assentes na terra. Parabéns ao articulista e também a quem o transcreveu.

Anónimo disse...

A justificação da mediocridade recorrendo aos maus exemplos do passado é tão português, que devia ser elevado a património.

Anónimo disse...

A mediocridade é tramada

Mas a governação anterior não foi apenas medíocre. Foi criminosa.

E há que respeitar as devidas diferenças, sob pena de se andar a esconder crimes.

Certo?

Agora há que romper com as grilhetas a que este euro nos obriga