sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Das (in)dependências


Se dúvidas houvesse sobre os tempos de transição que atravessamos, a recente proposta apresentada pela Comissão Europeia para discussão no Parlamento Europeu é o mais claro sinal de crise e desorientação institucional.

O texto apresentado começa pela habitual insistência no reforço do controlo orçamental por parte dos Estados-membro. Esta é uma preocupação que vem sendo expressa pela Comissão pelo menos desde o Tratado Orçamental, de 2012. Vale a pena recordar algumas das normas orçamentais europeias a que os países se encontram vinculados.

O TSCG (Treaty on Stability, Coordination and Growth, normalmente conhecido como Tratado Orçamental), aprovado em 2012, tem como fundamento a ideia de que os orçamentos dos países que assinaram o tratado devem estar equilibrados ou em excedente. O Tratado incentiva os países a inscrever na lei nacional (se possível, a nível constitucional) a regra de um saldo orçamental equilibrado, considerando-se como condição do cumprimento deste critério que o défice estrutural do país não ultrapasse 0,5% do PIB. Além disso, impõe a implementação de mecanismos de “correção” caso o país registe desvios significativos em relação ao seu objetivo orçamental de médio prazo. Como explica o Ricardo Cabral:

“Das novas regras e limites orçamentais destaca-se a obrigatoriedade de: reduzir, em cada ano, a dívida pública acima de 60% do PIB em 1/20 avos; atingir, em cada ano, um défice estrutural de 0,5% do PIB ou estar numa trajetória de convergência para esse objetivo; fazer convergir o saldo orçamental a uma taxa suficientemente rápida para um Objetivo de Médio Prazo (do inglês, MTO), em teoria, definido por cada país, mas, na prática, condicionado por “objetivos mínimos” definidos pela Comissão Europeia; não exceder um limite à taxa de crescimento nominal da despesa pública. Simultaneamente, foram definidos procedimentos sancionatórios mais apertados e quase automáticos caso um país membro não cumpra as regras e limites orçamentais.”

A novidade introduzida no documento agora apresentado é a proposta de criação de “corpos independentes” para fiscalizarem as políticas orçamentais. Na prática, estes corpos (não eleitos e com autonomia em relação aos governos) teriam autoridade para “avaliar a adequação das orientações orçamentais” e “recomendar aos governos medidas de correção de desvios significativos em relação aos objetivos de médio-prazo”. Além disso, o documento estipula a obrigatoriedade de os governos aceitarem estas recomendações ou recusá-las com justificações adequadas, numa lógica de “comply-or-justify” (cumprir ou justificar o incumprimento).

Se o fetiche do défice zero já deixou de ser novidade, o documento vai mais longe na discussão dos mecanismos de constrangimento. Assumir explicitamente a necessidade de um controlo pós-democrático dos orçamentos nacionais é o expoente máximo do consenso austeritário que se instalou entre as lideranças europeias, e que tão maus resultados originou nos últimos tempos. Os dirigentes europeus já perceberam há muito que numa Europa em que não há plano resta correr sem sair do lugar.

15 comentários:

Anónimo disse...

Todo e qualquer tratado que não tenha legitimidade democrática deve ser imediatamente revogado, este absurdo tem de acabar e os autores de politicas económicas que inevitavelmente rebentam com os países têm de ser apontados e julgados por isso mesmo. A desgraça que é esta desunião monetária tem de ser amplamente denunciada, e não qualquer justificação para o estado a que isto chegou, e a separação não é entre os que têm excedentes e os que têm défices, a separação é entre quem quer viver em democracia e quem exige a ditadura. Já ninguém nesta parte da Europa consegue olhar para o espelho e ver decência.

Anónimo disse...

Muito bem: "Os dirigentes europeus já perceberam há muito que numa Europa em que não há plano resta correr sem sair do lugar". E o caminho que a UE parece trilhar é sempre à direita, em direcção ao abismo.

Jose disse...

A fixação pela liberalização do défice sempre vem associada a:

- Vitimização soberanista - direito soberano ao endividamento sem especificar se tal endividamento é interno (democrático) ou externo (potencialmente predador).

- Rejeição institucional - todo o agravo é dirigido às instituições europeias, as mesma que promovem ajudas financeira e viabilizam a dívida a juros razoáveis.

- Indefinição de estratégia económica - mesmo ignorando a cena espasmódica do capitalismo/socialismo; sempre se invoca a necessidade de investimento e sempre se constata que é a despesa a motivação dominante na manutenção dos défices.


Anónimo disse...

Jose não terá percebido ou faz-se de tonto

Ninguém aqui falou na “ fixação pela liberalização do défice “ Isto é uma asnice pura, que tem um duplo objectivo:

-Servir como mote para a explanação ideológica austeritária, com as características espasmódicas habituais

-Esconder a vergonhosa defesa da submissão rasteira aos interesses que Jose defende e prega.

Anónimo disse...

A “ vitimizaçao soberanista “ tem também duas vertentes:

Uma mais finória de quem não os tem no sítio para confessar que não passa de um vende- pátrias vulgar.

A parte cómica ê que inova do ponto de vista teórico ( será que leu nalgum artigo do Observador?) Fala num endividamento “ democrático “ e num endividamento potencialmente “predador”

O que esta malta inventa para esconder o seu ódio à soberania de um país...

Anónimo disse...

Mas há uma vertente um pouco mais boçal

Este fala em vitimizaçao. O outro, o bolsinaro a quem vai buscar vocabulário, fala em “ coitadismo”

Anónimo disse...

A cena continua agora em torno duma misteriosa “ rejeição institucional”.

Se passarmos ao largo do jargão tonto, veremos objectivamente apenas a defesa primária e servil dos agiotas e especuladores

Com aquele tom em que se adivinha o de Passos, quando, na presença de Merkel. Como se sabe foi retratado genialmente e em tempos idos, como um canideo a lamber as botas da dita

Passos quando viu a caricatura terá tido também um espasmo ou foi-se queixar à troika e ao herr?

Anónimo disse...

Quanto à estratégica económica...

Todos ( ou quase) sabemos a autentica armadilha que constitui o euro e os tratados predadores que norteiam esta UE

Este excelente texto de Vicente Ferreira dá pistas claras para o debate

É preciso mais investimento, cortando nos juros agiotas e nas mordomias de um grande patronato predador A riqueza é apropriada fundamentalmente por um punhado de gente que vive à custa da exploração desenfreada dos demais. E que vai ficando cara vez mais rica. Porno-rica.

Mais do que idiotices sobre motivações dominantes ou por dominar, resquícios quiçá da cena bufa do diabo, interessa sim optar decididamente por um outro rumo económico, com a retomada da soberania também económica

É contra isto que se move Jose. É contra este pano de fundo soberanista, desenvolvimentista, mais justo e mais digno que Jose brama quotidianamente.

A dívida privada convertida em dívida pública, uma banca enxameada por banqueiros porno-ricos, actuais e de antanho, perdões fiscais inexplicáveis, fuga para offshores com o alto patrocínio de governantes neoliberais , a tudo isto este jose diz nada. O seu jogo é o oposto

Temos assim direito ao fadinho da “fixação pela liberalização do défice” e todas as tretas associadas

S.T. disse...

Convinha perceber a dinâmica da sustentabilidade da dívida pública antes de dizer disparates, Herr José.

Este artigo pode ajudar:

https://www.forbes.com/sites/francescoppola/2018/04/17/everything-youve-been-told-about-government-debt-is-wrong/#203498ca314f

Básicamente a sustentabilidade depende do diferencial entre os juros da dívida e o crescimento do produto interno bruto nominal. Há várias formas de encarar o problema. Pelo ponto de vista do pensamento primário da CE há que actuar no sentido de reduzir o stock da dívida. Só que essa abordagem tem falhado miseravelmente em todos os países da EU em que tem sido aplicado. O governo italiano propõe-se intervir na outra variável, a do crescimento do PIB.

Para uma abordagem mais aprofundada a S.ra Francis Copolla dá o link de um trabalho de um pesquisador do IMF/FMI:

https://www.imf.org/en/Publications/WP/Issues/2018/04/11/Interest-Growth-Differentials-and-Debt-Limits-in-Advanced-Economies-45794

Herr José esquece-se que em sociedades capitalistas o consumo é o motor da economia. Se quiser asfixiar o consumo que a "despesa" proporciona podemos discutir o caso dentro da lógica da economia planificada, mas suspeito que não seja essa a sua intenção. LOL

A lógica keynesiana implica que os governos devem ter uma política fiscal contracíclica, aumentando a despesa quando a economia contrai e cortando-a quando a economia está em expansão.

S.T.

S.T. disse...

O texto do post esclarece a intenção confessa por parte das elites da core-EU de blindarem ainda mais o corpo regulamentar da EU, reforçando a sua vantagem face aos países periféricos.

Esta obsessão pela regulamentação e pelas regras fixas mas vantajosas para os países do core-EU insere-se em duas ordens de motivação:

A primeira é o ênfase da doutrina ordo-liberal na regulamentação das relações económicas. A segunda é a relutância da Alemanha em exercer de forma explícita o seu poder como hegemon regional, preferindo delegar esse poder em "regras", mas regras essas cuidadosamente enviesadas no sentido de favorecer as suas elites. É a forma cobarde que os dirigentes alemães têm de exercer um poder de forma subreptícia devido à memória ainda vívida dos desmandos alemães que destruíram uma grande parte do continente em duas guerras no século passado.

S.T.

S.T. disse...

Embora sem grandes dados sobre a economia italiana, este artigo do Figaro (¡ jornal de direita francês ¡) dá uma ideia do jogo de manobras políticas entre o governo italiano e a CE.

http://www.lefigaro.fr/vox/politique/2018/10/25/31001-20181025ARTFIG00121-rejet-du-budget-italien-la-commission-joue-un-jeu-dangereux.php?fbclid=IwAR25QWXubiE2_-5U6fwnviPFR-ZBycZUWGpSJAnzbCF5t_lxt4qbnes_c9s

Em suma, os italianos parecem ter alguns trunfos na manga que não revelam. As suas provocações parecem tão deliberadas como um forcado que cita o touro para o forçar a sair das tábuas. E parece que está a resultar. :)

S.T.

Jose disse...

Ensina-nos o S.T., no trágico desamparo dos seus links, que as regras europeias, aprovadas por unanimidade pelos governos da UE são dictats da Alemanha, como se pode deduzir de duas guerras em que obviamente toda a culpa cabe à Alemanha como potência derrotada.

Anónimo disse...

Toda a culpa cabe à Alemanha como potência derrotada???

Há aqui algo de tenebroso.

Falemos da segunda guerra mundial, iniciada pelo nazi-fascismo.

A culpa da Alemanha não reside no facto dela ter sido derrotada. Reside em muitos outros factos mas sobretudo em assumir a mais sinistra ideologia a que assistimos até hoje

E espanta ( ou ralvez nao) ver por aqui alguém a lamuriar-se, feito simpatizante da barbárie, pelo facto do nazismo ter sido derrotado e esmagado na altura

Obsceno e de vomito.

S.T. disse...

A "ajuda" à Grécia foi aprovada até pelo governo grego. O que não significa que a sua aprovação não tenha sido isenta de coacção.

Idem para os programas de "ajustamento". Alguém pode de boa fé afirmar que as condições em que foram negociados foram livres e isentas de coacção?

Durante a II Grerra Mundial a Grécia emprestou uma avultada soma ao ocupante nazi. Terá sido um empréstimo voluntário?

Só quem não saiba como se processam as negociações de tais acordos é que pode dizer que não se torcem braços (no sentido figurado).

Nesse aspecto o livro do Varoufakis é esclarecedor das pressões e chantagens que são feitas em tais negociações em sede do eurogrupo.

Quem joga xadrez sabe que não se ganha quando se faz xeque-mate. Ganha-se quando se faz uma série de movimentos aparentemente inócuos mas que se traduzem numa vantagem por vezes apenas posicional que só é percebida pelo adversário quando já não é possível oposição.

S.T.

S.T. disse...

Errata:

Onde se lê:

"O que não significa que a sua aprovação não tenha sido isenta de coacção."

Deve ler-se:

"O que não significa que a sua aprovação não tenha sido fruto de coacção.

S.T.