terça-feira, 9 de outubro de 2018

A nova questão da habitação


A Secretária de Estado da Habitação, Ana Pinho, deu ontem uma entrevista ao Negócios. É muito esclarecedor que esta entrevista se tenha centrado na proposta de benefícios fiscais para os proprietários e na criação de um pacote de seguros para o arrendamento. É a política pública reduzida a estímulos fiscais e engenhosas soluções financeiras para incentivar promotores privados a fornecer os bens e serviços que o Estado só marginalmente provisiona, gerando mais desigualdades. Estas ideias já foram expostas num artigo que escrevi para o Le Monde diplomatique - edição portuguesa de Agosto,  intitulado Financeirização do Estado, política de habitação e subsídios à especulação, e que deixo agora aqui:

Um dos desenvolvimentos mais marcantes do capitalismo contemporâneo é a expansão do setor financeiro e sua crescente influência na vida das famílias e empresas, e dos Estados. No caso português, este processo de financeirização caracterizou-se essencialmente pelo mais facilitado acesso a financiamento externo a baixo custo a partir de meados da década de 1990. Contudo, a economia portuguesa não beneficiou da disponibilidade acrescida de capital. Foi mesmo das economias que menos cresceu no novo milénio, registando uma taxa de crescimento do produto abaixo da média da União Europeia. Este processo já é bem conhecido, assim como o papel do Estado, que de uma forma mais ou menos convicta, o conduziu. Menos notada, talvez, é a crescente financeirização do próprio Estado.

Parte fraca, com moeda forte, de uma União Económica e Monetária, os constrangimentos do Estado português não pararam de aumentar. Suscetível à chantagem do capital que exige condições (fiscais e laborais) para produzir e dependente dos mercados financeiros externos para se financiar, Governos sucessivos foram pressionados a levar a cabo políticas de austeridade. A crise financeira agravou ainda mais estes constrangimentos. O subsequente ataque especulativo à dívida pública culminou num Memorando de Entendimento com credores oficiais, que reforçou a austeridade como contrapartida política do financiamento externo garantido agora pelas instituições europeias (Comissão Europeia, Banco Central Europeu) e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI).

Num contexto que continua a ser de forte contenção orçamental, a provisão de bens e serviços essenciais assenta cada vez mais em novos estímulos fiscais e engenhosas soluções financeiras para incentivar promotores privados a fornecer os bens e serviços que o Estado vai abdicando de fornecer. Na era da Troika, as soluções assentes na provisão privada eram consentâneas com a sua ideologia neoliberal. No atual momento, a adoção deste tipo de políticas denotará talvez a cristalização de um senso comum que se foi entranhando, mas que importa questionar. A política de habitação servirá de exemplo ilustrativo do que está em causa.

A Financeirização da Habitação em Portugal

Em Portugal nunca existiu uma política de habitação capaz de garantir uma oferta pública suficiente, tendo o Estado tido um papel marginal, e decrescente, nesta área de provisão. Hoje a habitação social não ultrapassa os 2% do total do parque habitacional.

Na ausência de uma política pública de promoção direta de habitação, transferiu-se para o sector mercantil e para as próprias famílias, através da autoconstrução, a supressão das necessidades habitacionais. Esta ausência terá favorecido a aceitação de normas de provisão consentâneas com soluções individualizadas, não emergindo movimentos sociais com força para reivindicar um papel mais interventivo por parte do Estado e mais próximo das áreas da educação e da saúde.

Já nos anos oitenta se optava por medidas de apoio ao crédito para a aquisição de casa própria. Porém, a financeirização do capitalismo português criou as condições necessárias para o sucesso de um modelo de política focado na aquisição de casa própria a crédito, que se tornara mais barato e abundante.

O Estado contribuiu ativamente para a expansão deste modelo de provisão através de mecanismos de bonificação do crédito e de concessão de benefícios de natureza fiscal, que representaram cerca de dois terços do total da despesa pública entre 1987 a 2011, sendo muito inferior o valor despendido em programas de promoção direta de empreendimentos habitacionais (isto é, habitação social), representando cerca 2%, ou de apoio ao arrendamento (isto é, concessão de subsídios ao arrendatário), na ordem dos 8%.

A nova estratégia para a política de habitação, designada Nova Geração de Políticas de Habitação (NGPH), procura introduzir uma nova filosofia, promovendo a passagem de uma política assente na construção de novos alojamentos e no apoio à compra de casa para uma política que privilegia a reabilitação e o arrendamento. Contudo, as medidas continuam a obedecer a lógicas mercadorizadas e financeirizadas, expondo os enormes constrangimentos do na definição das políticas públicas.

A Nova Geração de Políticas de Habitação

A NGPH propõe-se atingir duas metas ambiciosas, tendo em conta o desapontante ponto de partida e a magnitude dos problemas habitacionais. Em primeiro lugar, aumentar de 2% para 5% a habitação com apoio público; e, em segundo, reduzir de 35% para 27% a população que vive em agregados familiares cujas despesas com habitação no regime de arrendamento são superiores a 40% do rendimento disponível.

Estas metas reconhecem de modo inequívoco que o Estado pode e deve ter um papel mais significativo na provisão deste bem essencial e que as despesas com habitação são excessivas para uma parte importante das famílias portuguesas, designadamente as que recorrem ao arrendamento.

Um dos objetivos da NGPH é precisamente promover o arrendamento a preços acessíveis. As medidas propostas para este fim assentam em novos incentivos fiscais e produtos financeiros para estimular a oferta habitacional por parte dos proprietários, a principal “falha de mercado” identificada. Contudo, a NGPH assume o bom funcionamento do mercado de arrendamento na definição daqueles benefícios fiscais e instrumentos financeiros. Fá-lo ao deixar no essencial incólume o Novo Regime de Arrendamento Urbano, que é uma das principais causas da escassez de alojamentos para arrendamento e dos valores excessivos das rendas, ao facilitar a cessação e o encurtamento da duração dos contratos, acelerando a renovação dos valores das rendas. Fá-lo ao aceitar as atuais circunstâncias do mercado de arrendamento como ponto de referência na definição da política de habitação.

Tomando como um dado inquestionável a inviabilidade económica das rendas a preços acessíveis, o governo procura estimular a disponibilização de alojamentos para o arrendamento, oferecendo um desconto de 50% sobre a tributação dos rendimentos prediais em sede de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) e uma redução de pelo menos 50% do imposto municipal sobre imóveis (IMI), podendo chegar à isenção, por decisão da Assembleia Municipal. Em contrapartida, o proprietário reduz a renda em 20% face ao valor de mercado e estende a duração do contrato. A criação de um seguro de arrendamento é outra medida com o mesmo propósito, garantindo aos proprietários o pagamento das rendas em caso de incumprimento por parte dos arrendatários. Um regime fiscal regulatório, que permita a criação das sociedades de investimento em património imobiliário (os designados “Real Estate Investment Trusts”), é outra das medidas delineadas, reforçando o papel das novas soluções financeiras. De facto, a dotação orçamental prevista para o Programa Arrendamento Acessível em 2018 e 2019, de 6 milhões de euros, destina-se única e exclusivamente à criação dos seguros de renda.

Não menos relevante é a aceitação do “valor de referência de mercado” das rendas sobre o qual se aplicará o desconto de 20%, apesar do atual momento especulativo do mercado imobiliário. Desde 2015 que os preços das rendas não param de aumentar, tendo-se registado um aumento de 20% só nos primeiros três meses deste ano nas cidades de Lisboa e Porto, para uma média nacional de 13%. Ao tomar como referência o valor de mercado das rendas, o Governo não só não contém a sua subida, como acaba por contribuir para a dinâmica especulativa que quer conter. Assim acontece porque o desconto a conceder aos inquilinos, definido a partir destes valores, será pago pelo Estado aos proprietários através de descontos ou isenções fiscais. E este não é caso único. Outras medidas padecem do mesmo problema. O pré-existente, mas reforçado, Programa Porta 65 Jovem (com uma orçamentação de 35 milhões de euros), também subsidia inquilinos jovens, sustentando as rendas de mercado dos proprietários.

Mas esta crença no bom funcionamento dos mercados não parece emergir apenas dos atuais constrangimentos. A NGPH evidencia uma crença mais arreigada, que faz lembrar a dos reguladores financeiros, ao propor a disponibilização de informação como solução para as “falhas de mercado”, supostamente resultantes de escolhas deficientes porque mal informada. Argumenta-se que a disponibilização de informação sobre os preços da habitação melhorará o funcionamento do mercado por via de uma melhor decisão individual, tanto dos cidadãos em matéria de habitação, como dos proprietários e empresas “na avaliação de alternativas e viabilidade de investimentos”, como se as questões da habitação se tratassem de meros problemas de decisão individual. Mais, considera-se que aqui reside a solução para as “dinâmicas especulativas alimentadas por falta de informação rigorosa e atualizada”. Não é muito claro quais seriam as decisões acertadas dos cidadãos, proprietários e empresas. Mas se nos detivermos um pouco nestas entrelinhas, e em outras medidas que promovem a mobilidade, percebemos que a falha a corrigir é afinal a pretensão dos cidadãos de viverem nas suas cidades e não onde os seus baixos e precários salários lhes permitem.

Alternativas

Ao não intervir diretamente sobre as causas do problema – o mercado de arrendamento liberalizado – a NGPH arrisca-se a escavar mais fundo as desigualdades sociais num dos mais desiguais países da Europa. Os descontos concedidos através de subsídios aos inquilinos ou de benefícios fiscais aos proprietários não passam de uma transferência de rendimento do Estado para estes, mantendo as rendas elevadas e aumentando a desigualdade entre os proprietários e os demais, amplificando as disparidades de classe, étnicas, género e geracionais que lhe subjazem.

A promoção da habitação acessível requer que o Estado assuma a regulação da provisão deste bem essencial, redefinindo os termos da relação contratual entre proprietário e inquilinos, incluindo prazos de arrendamento e os valores da rendas. Os direitos de propriedade não são ilimitados e têm de ser acompanhados de obrigações de propriedade. Não podem dar direito à imposição de rendas especulativas, só acessíveis aos ricos ou muito ricos, nem ao direito ao incentivo fiscal.

Um governo que esteja efetivamente interessado em promover o arrendamento acessível deve eliminar todas as medidas geradoras de dinâmicas especulativas, como o Regime de Autorização de Residência para Atividade de Investimento (os Vistos Dourados) ou o Regime Fiscal para o Residente não Habitual, incluindo os benefícios fiscais previstos no Programa de Rendas Acessíveis. Se o não fizer estará a contribuir ativamente para uma continuada transferência de riqueza dos sectores produtivos para os sectores rentistas, e dos mais vulneráveis para os mais privilegiados. Estará a contribuir para a acumulação de rendas fundiárias, permitindo que proprietários auferiram um rendimento que advém sobretudo da posse de um bem escasso que tende a valorizar-se com a mera passagem do tempo. E estará a contribuir para a própria fragilização do Estado, com cada vez menos recursos e por isso mais vulnerável ao poder económico e político da finança e do imobiliário na condução das suas políticas públicas.

8 comentários:

Anónimo disse...

A opção do estado tem sido no sentido de beneficiar os mais fortes seja na habitação ou em qualquer outra área de intervenção, muitas vezes utiliza a fragilidade dos que não têm como se defender como pretexto para a transferência de rendimentos. A sociedade de mercado precisa de um estado activo e influente e é isso que temos visto. A aceitação generalizada deste modelo de sociedade diz muito sobre a decência dos cidadãos que a compõem. Porque razão as pessoas com menos rendimentos não devem poder viver, sem qualquer apoio, no centro das grandes cidades, onde aliás sempre viveram? O que significa exactamente este afastamento?

Anónimo disse...

Ha países em que é possível um indivíduo viver a mais de 100km do local de trabalho e deslocar-se diariamente para o mesmo.
Isso é possível em Portugal?
Claro que não...
O trabalho está em Lisboa e Porto, logo é nessas zonas metropolitanas que há maior pressão urbanística.
Horários flexíveis, bolsa de horas, trabalho remoto, bons transportes, semana de 35 horas, e vão ver que Lx e Porto ficam livres para os turistas e para quem QUER lá morar.

Jose disse...

« Este processo já é bem conhecido»
Esta é a frase-chave para não denunciar as políticas públicas promotoras da mediocridade e iniciar o processo de demonização dos mercados e à acção dos privados.

Em tudo que não sejam acções de soberania nunca o Estado foi capaz de produzir com vantagem sobre o privado o que quer que seja, desde a banca ao mais insignificante produto. Nada que impressione os crentes de que só o que é público é bom.

Anónimo disse...

Jose ensandeceu

De todo

"nunca o Estado foi capaz de produzir com vantagem sobre o privado o que quer que seja, desde a banca ao mais insignificante produto.

Olhem para o ensino elitista defendido e praticado por privados onde até alguns tentam impor o criacionismo. Jose opta apenas pelo ensino baseado no senso-comum

Há mais. E muito

Anónimo disse...

Muito mais, para vergonha do crente jose a tentar impingir negócios privados.

Lembram-se dos louvores e cantares aos donos disto tudo, aos banqueiros terratenentes? Lembram-se dos hinos cantados em prol de mafiosos?

Os banqueiros são afinal uma máfia. Uma máfia vergonhosa. Dos outrora donos do país, junto com aqueles outros néscios e nutridos representantes do capitalismo monopolista de Estado, protegidos e abençoados por um tipo de nome salazar, sob a vigilância atenta da pide, passou-se para a novel geração de donos do país. Entregue de mão-beijada o poder económico, mesmo antes das privatizações, partiram para a bandalheira a que todos assistimos.

Com a degradação dos serviços públicos. Excepto para aqueles que assumiram o saque e o produto do saque.

Exemplos de vampiros há muitos. Alguns também cantados por este jose. Desde um conhecido mafioso, ligado à coluna vertebral do sistema, um tal antónio borges, até fulanos que representam a fina flor da podridão dos mercados uberalles, de nomes como Oliveira e Costa, Dias Loureiro, Zeinal Bava, Mexia, Barroso ou outros passarões

A mediocridade aí bem patente e expressa nesta seita a que faltam muitos nomes de outros porno-ricos que se apropriaram do país e da sua riqueza.
Mas não só mediocridade. Outras coisas bem piores e mais sinistras

Os tais que fizeram, com a cumplicidade dos seus boys no governo do estado, transformar a dívida privada em pública

Mas há muito mais. Desde a saúde, em que alguns canalhas defendem que quem a quer, que a pague. Ou casos como os CTT, paradigmáticos do que são estes gordos,néscios, lustrosos, gordurosos interesses privados

Anónimo disse...

"Um dos desenvolvimentos mais marcantes do capitalismo contemporâneo é a expansão do setor financeiro e sua crescente influência na vida das famílias e empresas, e dos Estados. No caso português, este processo de financeirização caracterizou-se essencialmente pelo mais facilitado acesso a financiamento externo a baixo custo a partir de meados da década de 1990. Contudo, a economia portuguesa não beneficiou da disponibilidade acrescida de capital. Foi mesmo das economias que menos cresceu no novo milénio, registando uma taxa de crescimento do produto abaixo da média da União Europeia. Este processo já é bem conhecido, assim como o papel do Estado, que de uma forma mais ou menos convicta, o conduziu. Menos notada, talvez, é a crescente financeirização do próprio Estado".

A esta frase, jose retira-lhe uma frase que considera como "chave".

Não se percebe porque o faz, a menos que seja uma muleta para o seu choradinho habitual em prol dos interesses privados.

(Compare-se com o seu rancor, ódio mesmo, a quem trabalha.)

E depois confirme-se a vacuidade aflitiva e a gratuitidade das suas afirmações metidas a martelo e obedecendo ao seu critério maior de servir os seus e os seus interesses de classe

Manuel Galvão disse...

O problema é que o Centro de Lisboa foi inchando, inchando, e agora já engloba Oeiras, Amadora, Odivelas, Sacavém. Causa? - Melhoria substancial dos transportes que servem os movimentos pendulares.

Já andaram no RER?

Não há volta a dar: os preços são aquilo que resulta da negociação entre a procura e a oferta.

Já lá dizia o Sr. La Palice...

Querer combater a "especulação" com leis é o mesmo que querer parar o vento com as mãos...

Anónimo disse...

Não me parece que os preços são apenas o que resulta da negociação entre a procura e a oferta.
Como de resto é confirmado quando se fala no combate à especulação com leis
Há muito mais água debaixo das pontes. E muito mais caminhos do que os caminhos que nos impingem