segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Comissão


Provedora de Justiça Europeia durante mais de uma década, Emilly O’Reilly resumiu bem a Comissão Europeia, em geral, e a de Von der Leyen, em particular, agora que está de saída: “Uma instituição opaca, gerida por poderosos e não eleitos consiglieri”. Já agora, o insuportavelmente europeísta Politico esclarece que, em língua inglesa, consigliere é usado para referir os conselheiros do padrinho, do líder da mafia...

A inflação já voltou ao normal? Depende do que entendemos por isso

 

Este é o primeiro de uma série de cinco textos sobre o que aprendemos acerca da inflação nos últimos três anos e o que podemos esperar para os próximos tempos.


Desde que, há cerca de três anos, a taxa de inflação começou a subir para valores que a maioria dos países ocidentais não registava há algum tempo, a prioridade expressa pelos bancos centrais foi a de fazer com que esta regressasse aos 2%. Este é o “alvo” que a maioria dos bancos centrais define e em torno do qual se centra o seu mandato: tomar as medidas necessárias para garantir que o ritmo de aumento dos preços não é superior (ou, nalguns casos, inferior) a 2%, pelo menos durante muito tempo.


Ainda que o mandato dos bancos centrais não seja igual em todo o lado, existe um amplo consenso em relação ao “alvo” que definiram para a inflação. A meta dos 2% é oficial em mais de 60 países por todo o mundo. A pergunta óbvia que surge é: de onde é que veio este número? Ao contrário do que se possa pensar, o alvo não foi definido por nenhuma das maiores potências económicas que hoje o adotam, como os EUA, a Zona Euro, o Reino Unido ou o Japão. O primeiro país a adotar formalmente os 2% de inflação como alvo do banco central foi a Nova Zelândia, em 1989. E a história de como se chegou ao valor ainda é mais surpreendente.

O presidente do banco central, Don Brash, começou as suas funções num contexto em que a economia neo-zelandesa – à semelhança do resto do mundo – enfrentava níveis de inflação elevados após os choques petrolíferos da década de 1970. Com o paradigma da independência dos bancos centrais em relação ao poder político a cimentar-se, Don Brash e David Caygill, então ministro das Finanças, foram mandatados para definir um alvo para a inflação e formalizar a independência do banco central.

Durante este processo, o antecessor de Caygill no ministério das Finanças deu uma entrevista em que disse que a meta do governo era garantir que a inflação se fixasse entre 0% e 1%. Como Brash reconheceu mais tarde, “Foi quase uma frase ao calhas […] O número surgiu do nada para influenciar as expectativas na opinião pública”. E teve impacto no processo de decisão. Brash e Caygill consideraram que seria melhor ter uma margem de manobra ligeiramente maior e acabaram por definir o alvo do banco central nos 2%. A taxa de inflação da Nova Zelândia atingiu esse valor ao fim de dois anos e o alvo começou a ser adotado por outros países, como o Canadá ou o Reino Unido, até se generalizar.

O mais surpreendente é que, como os próprios intervenientes reconhecem, não havia nenhuma justificação teórica para o alvo dos 2%. Não provém de nenhum estudo académico ou de cálculos rigorosos. Foi um número que “caiu do céu” e se tornou a norma adotada pela maioria dos países.

Desde então, tem havido várias tentativas de encontrar evidências para justificar o alvo dos 2%. Uma das ideias que ganhou relevo foi a de que a inflação constitui um entrave ao crescimento. O pressuposto é o de que as economias têm melhor desempenho quando o banco central controla de forma estrita a evolução do nível geral dos preços. Contudo, não é isso que a história das economias sugere. A história mostra que níveis de inflação relativamente mais altos estão associados a períodos de crescimento real mais robusto. A investigação de Robert Pollin e Hannae Bouazza, investigadores na Universidade de Amherst (EUA) que analisaram uma amostra de 130 países ao longo de seis décadas, aponta para que o crescimento das economias seja superior quando a inflação se encontra entre 4% e 5%.


Mesmo olhando apenas para os 37 países classificados pelo Banco Mundial como sendo de “rendimento elevado”, com PIB per capita superior, o resultado é semelhante: as economias tendem a crescer mais (em termos reais) quando a inflação é relativamente superior a 2%. Se fosse este o critério, não faria sentido fixar limites tão baixos para a inflação.

Outro problema desta abordagem é que a resposta que os bancos centrais adotam quando a inflação excede o alvo dos 2% – que passa por aumentar as taxas de juro – é cega em relação às origens da inflação. Esta medida é pensada para responder a pressões inflacionistas que resultam de excesso de procura agregada: se os preços começam a aumentar devido ao facto de haver demasiada procura para a oferta existente (por exemplo, devido a um aumento acentuado da despesa pública ou do poder negocial e dos salários dos trabalhadores), a subida dos juros tem como propósito comprimir o investimento e o emprego e estancar a pressão sobre os preços.

Só que a inflação pode não ser motivada por problemas do lado da procura, mas sim da oferta. E é isso que sugerem os dados disponíveis sobre a inflação dos últimos três anos: sem sinais de excesso de procura, o que motivou a subida inicial dos preços da energia (que depois se alastraram ao resto das atividades económicas que dela dependem) foram os constrangimentos da oferta provocados pelas medidas de confinamento e, sobretudo, pela guerra na Ucrânia, que fez disparar os preços do petróleo e do gás.

Aumentar as taxas de juro não tem nenhum efeito óbvio sobre os preços da energia. No entanto, o mandato dos bancos centrais – sobre o qual não temos controlo, uma vez que estes foram tornados independentes do poder político – determina que utilizem o único instrumento de que dispõem, i.e. a política monetária. Para quem só tem um martelo, todos os problemas parecem pregos.

É difícil perceber que papel desempenhou a política monetária na descida da taxa de inflação para valores próximos dos 2%. A redução da pressão sobre os preços não aconteceu por via do arrefecimento do mercado de trabalho, visto que, durante a subida e a descida da taxa de inflação, tanto o desemprego como o rácio de ofertas de emprego sobre o desemprego mantiveram-se essencialmente inalterados. O que se verificou foi uma descida dos preços da energia e uma diminuição dos constrangimentos do lado da oferta, o que pode ajudar a explicar porque é que a redução da inflação aconteceu de forma generalizada, mesmo em países onde o banco central não aumentou a taxa de juro diretora, como o Japão. Como escreveu Joseph Stiglitz, “a desinflação ocorreu apesar das ações dos bancos centrais e não por causa delas”.

Também convém ter em conta que os custos da política monetária não são iguais para todos. Um aumento das taxas de juro afeta de forma diferente grupos diferentes: por um lado, tende a prejudicar quem tem dívidas, penalizando sobretudo os que se encontram nos escalões de rendimento mais baixos, e a beneficiar os credores e/ou detentores de ativos financeiros, tipicamente nos escalões mais altos; por outro, se comprimir a atividade económica e aumentar o desemprego, que atinge primeiro os trabalhos mais precários e com piores salários, também prejudica quem ganha menos. Ao definir um alvo demasiado baixo para a inflação considerada aceitável, os bancos centrais ficam mandatados para aplicar uma política de subida dos juros que não afeta todos da mesma maneira.

Como o alvo dos 2% é arbitrário, tem sido alvo de controvérsia mesmo entre os economistas convencionais. Figuras como Paul Krugman (nobel da Economia) e Olivier Blanchard (ex-líder do FMI) já defenderam que o limite poderia ser aumentado, para evitar uma política monetária demasiado restritiva que provoque uma recessão. No Financial Times, Martin Sandbu avançou recentemente a possibilidade de o BCE implementar um sistema de taxas de juro diferentes para beneficiar investimentos em prioridades estratégicas da União Europeia (desde a descarbonização à inovação digital). Sandbu considera que o BCE não pode “fingir uma pureza tecnocrática”, embora reconheça que este tipo de políticas implica uma “realocação de recursos [entre setores] que requer prioridades democraticamente definidas”.

Esse é um dos principais problemas do paradigma atual, visto que as decisões dos bancos centrais estão longe de ser “neutras” ou “técnicas”. A política monetária, tal como a política orçamental, é política: depende de premissas discutíveis sobre as origens, os custos e os benefícios da inflação. Esta questão não se vai tornar menos relevante nos próximos anos, sobretudo porque há motivos para crer que a inflação vai continuar a ser influenciada por fatores em relação aos quais a política monetária tem pouca utilidade. Será o tema dos próximos posts.

domingo, 22 de dezembro de 2024

Todo um modelo



Pedro Góis foi escolhido pelo Governo para dirigir o Observatório das Migrações, afiançando que “precisamos de um fluxo de cem mil imigrantes por ano”. Ao mesmo tempo, diz que “os salários são baixos, e como há uma chegada recorrente de mão-de-obra, eles não tendem a aumentar, e isso, ano após ano, acaba por ter influência em todo o sistema”. 

O drama, claro, é que se reforçou desde a troika uma economia de baixa pressão salarial, demasiado concentrada em sectores como a construção, o agronegócio ou o turismo, onde os patrões exigem uma força de trabalho barata, abundante e descartável. 

Sem instrumentos de política económica, furtados pela integração europeia, este é o modelo que nos cabe na divisão europeia do trabalho. Quem não quiser falar de capitalismo globalizado e da respetiva arbitragem laboral, deve calar-se sobre a corrida laboral para o fundo e sobre os seus efeitos sociais e políticos.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

No mesmo dia


«Em Portugal existem hoje, e existiram sempre, nas últimas décadas, muitos cidadãos – alguns até já estiveram regularizados, mas que por falta de um documento ainda não se conseguiram voltar a regularizar, revalidar a sua autorização de residência – que, durante algum tempo, se encontram em situação irregular. Quer o PSD que os filhos desses cidadãos não se vacinem, não possam ir ao médico de família, não possam ir a consultas? Ou quer, ou não quer. A nossa pergunta é simples: o PSD quer fazer com que cidadãos, que ainda não têm a sua situação regularizada e precisam, por exemplo, de um acompanhamento de diabetes, não tenham esse acompanhamento e acabem na urgência porque tiveram um AVC, ou tiveram um ataque cardíaco? Aí a serem atendidos e a serem muito mais caros ao SNS? É essa a pergunta. E por isso eu reafirmo: o Partido Socialista defende o SNS tal como ele foi pensado. E foi pensado para atender todos os que residem no nosso país. Combater a fraude, totalmente disponíveis. Melhorar o processo de cobrança, totalmente disponíveis. Criar bolsas de exclusão na nossa sociedade, não aceitamos. A ação conjunta do fim da manifestação de interesse, daquilo que aqui hoje aprovam, e daquilo que querem aprovar amanhã sobre a impossibilidade de as juntas de freguesia terem os seus certificados que confirmem a residência, provocará círculos de exclusão, de pobreza, de falta de acesso ao SNS, que todos, todos vamos pagar».

Mariana Vieira da Silva (intervenção no debate sobre o acesso ao SNS por cidadãos estrangeiros)

Ontem, no mesmo dia em que o governo instruiu as forças de segurança a desenvolver uma operação policial no Martim Moniz, intencionalmente aparatosa e descabida nos seus contornos, destinada apenas a fomentar a relação, inexistente, entre criminalidade e imigração, alimentando falsas perceções, AD e Chega aprovavam no parlamento regras que dificultam o acesso de imigrantes em situação não regularizada ao SNS.

Não se trata, como a direita tentou fazer crer, de responder à questão do «turismo de saúde». Aos estrangeiros que se deslocam a Portugal apenas para usufruir, indevidamente e sem pagar, cuidados não urgentes do SNS. Essa foi apenas a cortina de fumo, o pretexto para a amálgama deliberada - e politicamente nada inocente (ou não estivesse o governo a disputar eleitorado do Chega) - entre imigrantes residentes e estrangeiros pontuais.

Está tudo ligado e o diabo está nos detalhes. No caso do acesso ao SNS, com a supressão - na proposta apresentada pelo PSD e CDS-PP, ontem aprovada por estes partidos e pelo Chega - de uma pequena frase (sombreada a amarelo, na imagem) da nova Lei de Bases da Saúde, que foi aprovada por toda a esquerda em 2019.

Estado policial


Chega e IL são criaturas das frações mais reacionárias do capital, apostadas em subverter o que resta do regime democrático e do Estado social que é a sua base. O PSD não se distingue destas forças políticas, como ontem ficou patente, numa operação chocante e destinada a criar alarme social: menos Estado social, mais Estado policial, sabemos há muito. 

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

A nebulosa de números e um banho de realidade

Aqui chegados, sobrou a confusão total. Com a contabilidade criativa e a manipulação de dados para simular os resultados pretendidos, o ministério da Educação chega ao final do 1º período sem ser capaz de responder, de forma clara, a duas coisas simples: quantos alunos terminaram este período sem aulas a pelo menos uma disciplina e, nesse universo, quantos deles não têm aulas a pelo menos uma disciplina desde o início do ano letivo.

Quer isto dizer que não há números? Não. A questão é que são valores sempre colados a um «mas», a um detalhe difuso, a um qualquer «mormente» que impede comparações consistentes. No último debate quinzenal, por exemplo, Luís Montenegro afirmou, em resposta a Pedro Nuno Santos, que eram 26 mil os alunos sem aulas a uma disciplina «de forma não permanente». Isto é, «que se confrontaram com a circunstância de não ter professor a uma disciplina», em algum momento desde o início do ano letivo.

Na mesma resposta, o Primeiro-Ministro disse serem 878 os alunos que, «de forma permanente», não tinham professor a uma disciplina desde o início do ano, contando-se «o aluno tantas vezes quantas as disciplinas a que não tem professor». Logo aqui, erro grosseiro: quando se conta o aluno «tantas vezes quantas as disciplinas a que não tem professor», a unidade da medida deixa de ser o número de «alunos» e passa a ser o número de «disciplinas». Que alguém como Fernando Alexandre, vindo «da academia», não perceba isto, é um mistério.


Apesar da dificuldade atual em estabelecer comparações, dada a nebulosa de critérios e valores que o governo criou - da inflação de alunos sem aulas em setembro de 2023 às contas feitas com universos diferentes (ponderando alunos sem aulas num dado momento com alunos sem aulas desde o início do ano), pode fazer-se uma aproximação. Como sugere o gráfico aqui em cima, a situação pouco ou nada se alterou face ao ano passado, havendo mais alunos sem aulas e, eventualmente, um menor número de alunos sem aulas desde o início do ano letivo.

Sendo que, porém, as estimativas da Fenprof e da Missão Escola Pública convergem num valor: são cerca de 2 mil os alunos sem aulas a pelo menos uma disciplina desde o início do ano letivo. Ou seja, em linha com o valor do ano passado e bem acima dos 878 referidos pelo Primeiro-Ministro (com a agravante de esse valor contabilizar disciplinas, e não alunos, sem professor). Eis pois que, mesmo sem assumir o fracasso das medidas e do objetivo que fixou, Fernando Alexandre reconhece, finalmente, que o problema é estrutural, não se resolvendo com a simples mudança de governo, como chegou a sugerir Luís Montenegro, em setembro do ano passado. Nada como um banho de realidade.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Mais que uma crise de habitação

Um dos gráficos essenciais do recente estudo da Causa PúblicaPortugal tem uma das maiores crises habitacionais da Europa»), coordenado por Guilherme Rodrigues, é o que estabelece relação, desde 1995, entre o rendimento médio disponível das famílias e o preço médio da habitação. Desde logo por evidenciar que a deterioração da capacidade de acesso a um alojamento para viver tem início em 2013, invertendo a tendência favorável registada até então.


Este indicador deveria ser suficiente para fazer refletir todos quantos incorrem no simplismo dominante de interpretar a atual crise como resultando de uma mera falta de casas. Por um lado, pelo facto de não se terem registado alterações em termos demográficos (procura) e do parque habitacional (oferta) que justifiquem o aumento vertiginoso dos preços. Por outro, porque a própria lógica de funcionamento do mercado, quando encarada com um desprezo olímpico pelas novas procuras de habitação, não colhe: se os rendimentos estagnam, não deveria o preço das casas diminuir?

Aludindo à relevância decisiva das novas procuras, sem as quais não é sequer possível interpretar, de forma adequada, a génese da atual crise habitacional (e, portanto, adotar as respostas que contribuem para a superar), o estudo da Causa Pública assinala ainda uma dimensão essencial que tem sido negligenciada. Isto é, o facto de não estarmos apenas perante uma crise circunscrita à incapacidade de assegurar o acesso generalizado a um alojamento, mas antes perante uma crise que transborda para lá dessa questão, já de si fundamental.

De facto, a crise de habitação que estamos a viver atravessa a própria economia, não só pela relevância que as atividades ligadas ao setor imobiliário e ao turismo adquiriram, mas também pelas dificuldades criadas na capacidade para atrair e fixar trabalhadores do setor público e privado, sobretudo nas áreas onde a subida de preços - e o desfasamento face aos salários - é mais pronunciada. Por outras palavras, já não é só a questão da habitação que está em causa, mas sim, também, o próprio modelo de desenvolvimento económico e social do país.

Elogio


Alguém traduza este elogio já com uns anos: “A fronteira é o escudo dos humildes [os fortes são fluidos] (...) uma fronteira reconhecida é a melhor vacina contra a epidemia dos muros”. 

Graças à economia política soberanista de Jaques Sapir, por exemplo, sabemos que sem fronteira política, economicamente relevante, não há responsabilização democrática, nem capacidade de pilotar democraticamente a economia. 

Não é por acaso que os neoliberais sempre procuram erodir o impacto económico da fronteira política, meio crucial de erosão da democracia. Os capitalistas, num contexto de fronteiras abertas a todos os fluxos pela liberalização, atiram os trabalhadores de diferentes países uns contra os outros, numa corrida para o fundo. 

Quem se recusar a pensar a fronteira, a explorar as suas virtudes, corre o risco de a deixar entregue aos inimigos da democracia, alimentados pelo neoliberalismo e pelas suas consequências reacionárias.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Um congresso arreliador


Essa União Europeia que é cada vez mais um instrumento e espaço de domínio dos monopólios, determinada pelas grandes potências capitalistas europeias, elas mesmas alinhadas e subordinadas à estratégia dos EUA e da NATO. Se dúvidas houvesse, aí está a promoção do aumento das despesas militares e da indústria do armamento à custa da Paz, dos direitos e das condições de vida dos trabalhadores e dos povos. Um militarismo insaciável e desumano que leva já o actual secretário-geral da NATO a atrever-se a propor que se corte nos orçamentos da saúde e das pensões de reforma para gastar mais no armamento e na guerra. 

O País tem recursos, meios, forças e gente séria capaz de construir a vida melhor que a maioria justamente ambiciona. O País precisa de responder à emergência nacional do aumento significativo dos salários e das pensões, precisa de combater a chaga da precariedade, de valorizar carreiras e profissões, precisa de respeitar quem trabalha e trabalhou uma vida inteira. O País precisa de pôr fim aos benefícios fiscais, às privatizações, à corrupção e pôr fim, de uma vez por todas, à rapina de recursos públicos por parte dos que se acham donos disto tudo. 

Excertos representativos das intervenções de Paulo Raimundo, na abertura e no encerramento do último Congresso do PCP. Tendo tido a oportunidade de ler as teses, aceitei o convite para assistir aos trabalhos comunistas. Não dei o meu tempo por perdido, antes pelo contrário, até porque levei um banho de realidade. 

A seguir ao discurso de abertura de Raimundo, discursou Inês Santos de Rio Maior. Falou da luta nas carnes Nobre, onde trabalha, das sucessivas greves por melhores salários e condições de trabalho, da necessidade de organizar e de consciencializar. 

Pelo meio, falou Ana Cristina Pejapes, operária conserveira e dirigente sindical em Peniche, numa empresa de 800 trabalhadoras: “trabalho na ESIP há 34 anos, 40 horas por semana, trabalho aos ritmos que as máquinas mandam e estou sujeita a temperaturas elevadas, com tanta humidade que às vezes parece que nos chove em cima”. E isto para auferir o salário mínimo. Mas “lá na empresa há organização sindical”. Enquanto houver organização, há esperança, incluindo na luta contra a precariedade, com 60 trabalhadoras precárias que passaram a estar integradas nos quadros da empresa. 

A verdade é que sem a vontade e a coragem comunistas, ainda menos, ou nenhuns, entrariam para lá das portas onde se diz “proibida a entrada a pessoas estranhas ao serviço”, ali onde de cria a riqueza e onde vigora, na ausência de ação coletiva, o mais liberticida despotismo patronal, a mais cavada das desigualdades, que tudo contagia e de forma tão antidemocrática. 

Há uma correlação entre a militância comunista e a organização dos trabalhadores, isso fica claro para quem quiser olhar, ver e reparar. E como disse Jorge Cordeiro: “entre o querer e o poder do grande capital, há esse pormenor arreliador que é a luta dos trabalhadores”.

Habitação: mais um sinal do agravamento da crise

Acumulam-se os sinais, sendo talvez já mais adequado dizer que se trata de uma evidência: com as medidas adotadas pelo atual governo, como os incentivos à aquisição de habitação e o fim das restrições ao Alojamento Local, a crise aprofundou-se, com os valores de aquisição e arrendamento a regressar a ritmos de aumento mais elevados.

Um recente sinal é dado pelos valores da avaliação bancária, a regressar à tendência de subida, depois de uma fase de estagnação no final de 2023. Se em fevereiro de 2024 a mediana rondava os 1.550€ por m2, em outubro aproxima-se dos 1.700€, confirmando o reconhecimento, por parte da ministra da Juventude e Modernização, de que as medidas adotadas pelo governo, poderiam acabar por fazer subir o preço das casas.


É este o sentido de declarações de agentes do setor ao DN. Beatriz Rubio, da REMAX, assinala que se tem «assistido a um aumento dos preços, na maioria das regiões, e assim fecharemos o ano de 2024». Rui Torgal, da ERA, refere que o preço médio dos imóveis mediados pela marca aumentou 11% face ao final de 2023. Marco Tairum, da Keller Williams, interpreta o aumento da procura, induzido pelas políticas de apoio aos jovens, como «uma reação natural do mercado», considerando que «a evolução dos preços em 2025 será inevitavelmente crescente».

De facto, o simples anúncio, pelo governo, da inversão da política habitacional - com retrocessos na regulação e aposta em medidas de subsidiação, nomeadamente ao nível da aquisição por jovens - terá sido suficiente para aumentar a procura e impulsionar os preços (a ponto de absorver os benefícios resultantes da isenção de IMT e Imposto de Selo, que já de si beneficiam apenas uma minoria). Ou seja, o governo que diz ter como prioridade o combate à emigração jovem é o mesmo governo que deteriora as condições materiais para que os jovens optem por ficar no país.

domingo, 15 de dezembro de 2024

Cristo em Gaza


«Há dias li uma reportagem sobre a desgraça que se abateu sobre Israel agora porque não há turistas. Era uma daquelas reportagens que quase parece gozar connosco, de tanta falta de noção. Mas era tudo genuíno, desgraça genuína, desolação genuína. Bolha genuína.
Entretanto, milhões de palestinianos que mal viviam de algumas lojas, e alguns hotéis, vivem do nada agora, com a diferença de serem reféns de Israel. De estarem a morrer em Gaza, e a serem queimados, roubados, assassinados por colonos na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental. De não terem um Estado. De serem milhões de reféns de Israel, em vez de 100 reféns do Hamas.
(…) Não sei quando o turismo vai voltar à Terra Santa. Este Natal volta a não haver Árvore em Belém. As ruas continuam desertas, as portas fechadas. Só que com muito mais mortos do que há um ano. Muito mais pobres. Muito mais emigrados (quem pôde).
(…) A Terra Santa não é do Estado de Israel. Natal não é quando Israel quiser. Este Natal, como o anterior, é uma vala comum. Muitos cristãos se angustiam, sei bem, muitos têm feito muito contra. Mas onde estão todos os outros? Esse quase terço do mundo desde 7 de Outubro?
»

Alexandra Lucas Coelho, Cristo está morto em Gaza, e não vai nascer sozinho

sábado, 14 de dezembro de 2024

Salutar pluralismo


Pode ser impressão minha, embora creia não ser o caso. Pelo menos ontem, a SIC Notícias fez vários diretos para o Congresso do PCP, ao longo do dia, à semelhança da cobertura que faz de outros congressos partidários. É de saudar, claro, sobretudo por se tratar do partido português com menos presença nos debates televisivos, num défice de pluralismo já de si significativo, a favor da direita, na generalidade dos canais privados de televisão.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

O que um ano de liberalismo à Milei trouxe aos argentinos

 

Há um ano, o resultado das eleições argentinas foi visto com surpresa por uns e entusiasmo por outros. A eleição de Javier Milei, que se descreveu como “anarco-capitalista” e fez campanha com uma motosserra para simbolizar os cortes que pretendia implementar no Estado, foi aplaudida pelos investidores internacionais e saudada por segmentos importantes da direita devido às profundas reformas prometidas. Um ano depois, é importante olhar para o que têm sido os resultados desta estratégia.

Depois de ter sido eleito, Milei não perdeu muito tempo a pôr em prática o seu plano. Os cortes no orçamento do Estado afetaram quase todas as áreas, da Saúde à Educação e à investigação científica, e incluíram o despedimento de milhares de trabalhadores do setor público. Além disso, levou a cabo um conjunto de reformas abrangentes com o objetivo de liberalizar a economia, promover a iniciativa privada e atrair investimentos.


Os cortes parecem ter sido suficientes para a Argentina passar a registar um excedente orçamental, depois de, no ano passado, ter tido um défice de 4,4% do PIB. Por outro lado, a taxa de inflação mensal tem vindo a diminuir e situa-se agora nos 2,4%. Estes números valeram a Milei elogios de instituições como o FMI e de uma parte da imprensa internacional. Por cá, o Instituto +Liberdade publicou um artigo em que se elogiam os “sinais de recuperação” visíveis em indicadores como o índice de produção industrial e o volume das exportações, ainda que se admita que a “situação social permanece sensível” – o que é um forte candidato a eufemismo do ano.

O problema é que nem todos os números contam uma história tão positiva. A taxa de pobreza, que andava em torno dos 40% quando Milei tomou posse, disparou ao longo do ano e atingiu uns impressionantes 52,9%, o que significa que, só este ano, 3,4 milhões de argentinos foram empurrados para a pobreza. Dois terços das crianças no país vivem sob pobreza, o que não impediu o presidente de cortar o orçamento destinado ao apoio aos mais vulneráveis, incluindo através da distribuição de alimentos em cantinas comunitárias.


Outro grupo especialmente afetado pelos cortes de Milei são os pensionistas. A fórmula de atualização das pensões definida pelo governo impôs uma perda de poder de compra significativa para os reformados. Quando o Congresso tentou compensar esta perda através de um aumento extraordinário, Milei vetou a lei e chamou aos congressistas “degenerados orçamentais”.

Os cortes no orçamento da Saúde estão a colocar em causa a capacidade de prestar os cuidados necessários à população. A agência Reuters dá conta do desinvestimento na prevenção de doenças graves e da redução dos medicamentos disponíveis para o tratamento dos pacientes.

O investimento em ciência e tecnologia colapsou e atingiu os níveis mais baixos desde a restauração da democracia no país, em 1983. Além dos cortes no financiamento das instituições públicas, também houve cortes salariais e uma redução acentuada das bolsas de estudo, o que, de acordo com as instituições do setor, está a incentivar a emigração dos jovens nestas áreas.

Com os cortes nos subsídios do Estado à energia e aos transportes, o custo dos serviços públicos disparou. De acordo com um relatório do Interdisciplinary Institute of Political Economy, o valor que uma família de classe média gasta, por mês, em eletricidade, gás, água e transportes públicos passou de 30,105 pesos no final do ano passado para 141,543 pesos em setembro deste ano. A poupança para os cofres do Estado foi atingida à custa de um agravamento das condições de vida para a maioria dos argentinos.

Face a este cenário desastroso, há quem argumente que estas eram medidas dolorosas mas necessárias. Só que 2024 está longe de ser um ano de sucesso para a economia argentina. Muito pelo contrário: na primeira metade do ano, a economia contraiu mais do que se esperava e a Argentina entrou em recessão técnica. O desemprego, que se encontrava nos 6,1% no final de 2023, aumentou para 8,2% até outubro deste ano. A austeridade agravou substancialmente a crise em que o país se encontra mergulhado.


A amnistia fiscal aprovada por Milei encorajou os mais ricos do país a depositar as poupanças que detinham em offshores ou guardadas em casa, o que atraiu 18 mil milhões de dólares para os bancos argentinos e permitiu acumular reservas de moeda estrangeira. No entanto, as reservas continuam a ser insuficientes para cumprir os pagamentos da dívida e o país continua dependente do FMI.

Em simultâneo, a desigualdade agravou-se: o índice de Gini, que mede a desigualdade de rendimento num país e que varia entre 0 (igualdade máxima) e 1 (desigualdade máxima), aumentou para o valor mais alto desde 2005. A austeridade provocou uma quebra de rendimento e poder de compra bastante mais acentuada para quem ganha menos, aumentando o fosso para os mais ricos.


A estratégia orçamental socialmente repressiva é conjugada, sem grande surpresa, com o negacionismo climático. Milei cortou o orçamento destinado à proteção ambiental, tentou remover regulações que definem áreas protegidas e aprovou o Regime de Incentivo a Grandes Investimentos, desenhado para acelerar a exploração de recursos naturais. Ao longo do último ano, têm sido várias as tentativas de reduzir regulações e entraves que permitam ao Estado leiloar terrenos pertencentes a comunidades indígenas para a exploração de cobre e outros minérios por parte de empresas privadas.

problemas estruturais que a economia argentina enfrenta há décadas e que não podem ser atribuídos à gestão do último (ou dos últimos) anos. No entanto, a estratégia liberal de Milei para conter a inflação tem consistido em promover o colapso da economia e aumentar os níveis de pobreza e desigualdade. Descrever esta experiência como um sucesso é revelador das prioridades de quem o faz.

O economista argentino Matías Vernengo resume os problemas da estratégia de Milei: “O desemprego e a pobreza estão a aumentar e a austeridade está a ter um impacto social terrível – mas também temos de olhar para o futuro da economia, já que o presidente Milei está a cortar significativamente o investimento público, o que tem um efeito bastante negativo no longo prazo. […] Estão a construir um país que só é rentável para alguns”.

Em resumo


É o fundamentalismo de mercado em todo o seu esplendor inigualitário: a visão do Livro Verde que anuncia favorecer a sustentabilidade da Segurança Social apenas promove a redução dos custos do trabalho para o empregador, pretende pôr o Estado a organizar para os privados o mercado das pensões e procura acabar com o direito (universal e incondicional) a uma pensão mínima na reforma, que previne a pobreza, para o substituir por complementos selectivos para idosos pobres. 

Reduzir os impostos das empresas que mais ganham, nos sectores com menor potencial de transformação da economia, privando o Estado das receitas de que os serviços públicos e o investimento precisam. Acenar aos jovens com medidas de que a maioria não poderá beneficiar, por exemplo, face à crise da habitação, ou que até lhes podem aumentar a precariedade. Promover alterações na Segurança Social ou na contratualização de seguros de saúde para favorecer mercados privados. A partir do Estado, a reconfiguração neoliberal do país acentua-se.

A forma e o papel dos Estados é, em particular nas economias periféricas, essencial para se pensar as escolhas de sociedade. No caso português, a inserção na arquitectura europeia, que transforma o «Estado-nação» em «Estado-membro», faz-se acompanhar por uma «integração pela desintegração», visível, por exemplo, nas diferenças salariais. Por aqui passa também a crise democrática actual, em que os Estados são esvaziados e endurecidos.

Três resumos de três artigos importantes de economia política e de política económica que sairam no Le Monde diplomatique - edição portuguesa, da autoria, respetivamente, de Maria Clara Murteira, Vicente Ferreira e Catarina Príncipe. 

É uma oportunidade para fazer um apelo: assinai este jornal, apoiai este projeto cooperativa de crítica e alternativa. 

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Debater a ideologia



Hoje, conferência Praxis sobre o Livro Verde do Sistema Previdencial

Promovida pela Praxis, pretende-se que a sessão constitua «uma contribuição para que participemos de modo ativo e informado no debate deste Livro Verde colocado pelo Governo em apreciação pública. Está em causa a defesa e o desenvolvimento de um dos principais, mais sólidos e estáveis pilares do Estado Social, a Segurança Social pública. E precisamos barrar o caminho aos que, a pretexto da (in)sustentabilidade do sistema previdencial mais não querem que limitar os benefícios e favorecer a apropriação privada das suas contribuições e economias.
O conteúdo das 18 recomendações principais do Livro Verde, que respeitam a matérias críticas do sistema, justifica uma reflexão esclarecida por parte dos trabalhadores e das suas organizações e por todos quantos defendem a Segurança Social pública».

Participam neste debate por videoconferência, com início às 21h00, os especialistas convidados Vítor Junqueira (economista e membro da Comissão do Livro Verde), José Cid Proença (jurista e ex-Director Geral da Segurança Social) e Maria Clara Murteira (economista e professora da FEUC). A apresentação do tema e a moderação estão a cargo de Henrique Sousa (Praxis). O evento é aberto à participação de todos os interessados, bastando registar aqui a respetiva inscrição prévia.

Afinal, para que servem as regras europeias?

O alerta mais recente da Comissão Europeia diz respeito aos riscos que as economias da UE enfrentam devido... às regras orçamentais que a própria Comissão impõe. É um tema que tem estado ausente do debate público por cá, mas tem implicações importantes para Portugal.

As regras orçamentais europeias, que voltaram a entrar em vigor este ano, exigem um esforço significativo de consolidação orçamental a boa parte dos países. Tal como anteriormente, o objetivo declarado continua a ser o de reduzir a dívida pública, que aumentou durante o combate à pandemia. A Comissão reconhece que, ao restringir a despesa/investimento dos Estados, as regras podem ser um entrave ao crescimento, mas justifica a sua aplicação com a necessidade de reduzir o nível de endividamento dos Estados.

No entanto, há motivos para pensar que os impactos negativos desta estratégia estão a ser subestimados. Um estudo publicado recentemente na Intereconomics analisa as hipóteses assumidas pela Comissão Europeia para avaliar a sustentabilidade da dívida pública. Entre estas, a mais relevante é a do multiplicador orçamental de 0,75: por cada €1 de aumento da despesa do Estado, assume-se que o PIB cresce €0,75, e vice-versa. Mas a maioria dos estudos sugere que, em regra, o valor do multiplicador é superior, sobretudo em períodos de recessão, o que significa que o impacto da despesa pública na economia é geralmente maior. Ao assumir um multiplicador muito baixo, a Comissão está a subestimar o impacto negativo que a restrição orçamental tem no desempenho das economias.

A discussão sobre multiplicadores não é nova. Foi a que esteve no centro do debate sobre os programas de austeridade na última crise financeira. Como o próprio FMI viria a reconhecer, ao subestimar o multiplicador, subestimou-se o impacto negativo da austeridade. Os resultados em países como a Grécia ou Portugal levaram o líder do FMI, Olivier Blanchard, a reconhecer o erro: "os analistas subestimaram significativamente o aumento do desemprego e a redução da procura interna resultantes da consolidação orçamental".

Este tipo de problemas de cálculo parece não ter desaparecido. E tem um grande impacto na forma como a Comissão avalia a sustentabilidade da dívida. Alterando as hipóteses sobre o multiplicador, os autores do estudo da Intereconomics mostram que a evolução dos rácios de dívida de França, Alemanha, Itália e Espanha é bastante pior que aquela que a Comissão prevê como resultado da aplicação das regras (como se vê no gráfico ao lado).

Além disso, se a consolidação orçamental for aplicada em vários países ao mesmo tempo, o impacto negativo no crescimento de uns afeta as trocas comerciais e o crescimento de outros (incluindo Portugal). E isso dificulta, em vez de promover, a redução sustentada da dívida. Nesse aspeto, as regras orçamentais que voltaram a entrar em vigor este ano não trouxeram mudanças de fundo na lógica de atuação das instituições europeias, apesar dos maus resultados do passado.

Ciência social da vida material


A entrevista do Negócios a José Reis (ver aqui ou aqui) não é de hoje. Foi publicada no passado dia 5, mas a sua leitura continua a justificar-se, claro. Desde logo por se iniciar a insistir no entendimento rico e plural da ciência económica: «Gosto de chamar à economia a disciplina que estuda a vida material. Outros dizem outras coisas: que estuda os mercados, que estuda as decisões individuais, ou a ciência que quantifica determinadas relações económicas». A ideia de «economia como a ciência da vida material e da deliberação coletiva», acrescenta.

É a partir daqui, deste entendimento de uma disciplina impura, que não dispensa o espaço nem o tempo, nem tampouco o diálogo com outras ciências sociais, que José Reis sinaliza o ciclo de crescimento e desenvolvimento associado ao 25 de Abril, marcado desde logo pela criação significativa de emprego, «o grande mecanismo de coesão social» que nos deve levar hoje a questionar o «perfil de especialização» produtiva da economia portuguesa: «Quando três quartos da mão-de-obra estão em setores cuja produtividade é inferior à média, às vezes muito inferior à média, temos um problema de criação de riqueza».

Apelando a uma discussão crítica da inserção europeia de Portugal, José Reis identifica três «desequilíbrios perante o exterior: produtivo, migratório e financeiro», sublinhando ainda, entre outros temas, a importância de as economias se autoestruturarem, e «não estarem dependentes de lógicas de abertura muito ousadas».

Li a entrevista no momento em que ecoava, na Casa da Democracia, um discurso miserável e equívocado sobre a descolonização. Também aqui, uma referência certeira: «no prazo de dias, não foi anos, tivemos meio milhão de pessoas. (...) Em dada altura, o Rossio era um grande sítio de aglomeração destas pessoas. Mas a maior parte dispersou-se rapidamente pelo território. É extraordinário que tenha acontecido. Temos aqui um dinamismo de uma sociedade e de uma economia que é forte. E que é um dinamismo para dentro, para a reorganização interna. Como sabemos, hoje temos dinamismos para fora».

terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Juizinho, Baleiras


Rui Baleiras, coordenador da Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO), afiançou que “temos de ter juizinho” por causa do necessário aumento da comprimida despesa pública. 

Já não é a primeira vez que este tecnocrata austeritário exibe em público o seu desprezo pelas suprancionalmente condicionadas instituições democráticas nacionais, exorbitando escandalosamente funções que exigem reserva e contenção. 

Aposto que sonha com os cortes de Milei na Argentina. Reparai no colapso da despesa em ciência, tecnologia e inovação e no brutal aumento da despesa com espionagem nesse país causticado. Não é defeito, é feito neoliberal. 

Juizinho, Baleiras.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Um jornal contra o assalto

[O]s neoliberais, que ainda há pouco impuseram a países como Portugal um austeritarismo ligado a uma crise financeira, preparam-se agora para fomentar um novo ciclo de austeridade, relacionada com uma crise «guerreira». Alguém tem dúvidas do que fará aos orçamentos dos Estados um aumento brutal das despesas com a defesa e a segurança? Das consequências que isso terá sobre os direitos, os salários, as pensões, os serviços públicos, as políticas sociais, culturais, ambientais? Ou sobre quem vai lucrar, em termos políticos e económicos, com a militarização e a securização na Europa?

A mesma União Europeia neoliberal que retirou aos Estados instrumentos de política económica, actualmente concentrados no Banco Central Europeu e no sistema financeiro internacional, vem agora dizer que não há alternativa a fazer os investimentos necessários, como disse António Costa na mesma ocasião, a «sermos mais autónomos em defesa e segurança». Mas onde estava a União Europeia quando a arquitectura internacional destinada a garantir a paz desde o pós-guerra foi sistematicamente corroída, desrespeitada, para favorecer todas as escaladas bélicas? «Temos de demonstrar que respondemos eficazmente às preocupações das pessoas», acrescentou o novo presidente do Conselho Europeu. Fazer de 2025 um ano de justiça e paz seria um bom começo.

Sandra Monteiro, A violência das novas direitas, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, dezembro de 2024.
 

domingo, 8 de dezembro de 2024

Precaução anti-imperialista


O Estado colonialista e genocida de Israel, apoiado pelos EUA como nenhum outro, rejubila, pela voz do seu criminoso Primeiro-Ministro, com os acontecimentos na Síria, ou não tivesse bombardeado maciçamente o país. Aproveita agora para expandir o seu mortífero projeto de ocupação, a partir dos ilegalmente ocupados montes Golã. 

Incapazes de estabelecer ligações básicas, “progressistas” otanizados celebram não se percebe bem o quê desde ontem, tal como fizeram no Afeganistão, no Iraque ou na Líbia, com os resultados conhecidos. 

Por muito que os fundamentalistas islâmicos da Al-Qaeda e sucedâneos sejam reabilitados pela máquina de propaganda ocidental, elevados ao estatuto quase apolítico de rebeldes, o dever de memória exige que nos lembremos de notícias do fim da história, pura precaução anti-imperialista. Todos têm a obrigação de saber quem os fabricou e fabrica.

sábado, 7 de dezembro de 2024

Parabéns


Ontem comecei a ler este livro, lançado este ano, e continuei a lê-lo hoje de manhã, antes do jogo de futebol do meu filho. Já há uns anos que não lia um livro seu. Por coincidência, faz hoje 96 anos. 

Este é escrito em coautoria, sendo uma até agora ótima súmula, também para as mais jovens gerações, das principais preocupações de sempre deste imprescindível intelectual público, como nos informa o sociólogo e fundador da Current Affairs, Nathan J. Robinson, no prefácio que escreveu sozinho: “Aprendi [lendo-o] a questionar a sabedoria convencional e a analisar forensicamente os documentos governamentais e a comunicação social dominante.” 

Aprende-se sempre com os melhores, incluindo a tentar não perder de vista a referência à verdade, sobretudo quando se está cercado pela ofuscação ideológica e pela mentira pura e dura.

Um dos pontos que desde logo me chamou atenção é a forma clara como os autores indicam que a combinação entre “economia de esquerda e nacionalismo político” sempre esteve literalmente na mira da política externa dos EUA, da Guatemala ao Irão, da Indonésia ao Chile, de Arbenz a Allende.  

A doutrina do Conselho de Segurança Nacional dos EUA era clara logo em 1954: “regimes nacionalistas mantidos através de apelos às massas” tinham de ser removidos, anulados. Para uma esquerda europeia predominantemente desmemoriada, europeizada e otanizada, não há lembrete mais importante nas presentes circunstâncias históricas. 

Lembrai-vos do golpe de Estado financeiro na Grécia, em 2015. A vassala UE serve para manter a ordem por aqui. Na Roménia, num contexto político radicalmente diferente, uma eleição acaba de ser escandalosamente anulada por causa do tik-tok. Não era conveniente do ponto de vista geopolítico. Vale tudo, valerá tudo, quando acumularmos potência plebeia suficiente.

O mito do idealismo norte-americano, fabricado pelos aparelhos ideológicos dominantes, tem de ser constantemente denunciado. Na realidade, trata-se de um realismo tão mortífero como um sistema capitalista que se quer sem freios e contrapesos. 

A realidade violenta do sistema imperialista e das suas fontes de poder, também internas ao capitalismo dos EUA, tem de ser criticamente interpretada na sua totalidade, do holocausto na Palestina à catástrofe ambiental, passando pelo cerco à China: o passado ainda não passou, afinal de contas.   

Parabéns, Noam Chomsky: “Se você assume que não existe esperança, então você garante que não haverá esperança”.
 

Conversar, conversar, conversar sempre

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Lata imobiliária


O presidente da APPII, que andou em digressão pelo Brasil e pelos Estados Unidos a promover a compra de casas em Portugal, é o mesmo presidente da APPII que se queixou de a oposição, com exceção da IL, ter chumbado o pedido de Autorização Legislativa da AD para descer o IVA da construção para 6%. E que teve, ainda, o topete de pedir «coragem e sentido de Estado aos políticos nacionais para resolverem o problema da habitação», alegando que, por causa do referido chumbo, «os portugueses vão continuar sem ter uma casa que possam pagar».

Foi em São Paulo que, em outubro, Hugo Santos Ferreira reivindicou o regresso dos regimes de Residentes Não Habituais e Vistos Gold, alegando conhecer brasileiros interessados em viver em Portugal, pessoas «com altíssimo poder aquisitivo, (...) bilionários, para quem o tema segurança e atratividade fiscal é essencial». Isto antes de rumar aos EUA, para reunir com investidores que «querem conhecer as formas de ir para Portugal». Há o risco, em seu entender, de os milionários estrangeiros optarem por outros destinos, sendo necessário «colocar Portugal no mapa».

Como é improvável que Hugo Santos Ferreira, representante do setor imobiliário, desconheça o efeito de arrastamento dos preços das casas gerado pela procura externa, cujo poder aquisitivo supera, em média, o das famílias portuguesas, só por sonsise fingirá não perceber que este é um dos principais fatores que tem contribuído para a subida incessante dos preços, que faz com que os portugueses continuem «sem ter uma casa que possam pagar».

Não é difícil compreender que o imobiliário vive na sua própria bolha e trata da sua vidinha, defendendo a sua atividade e os seus negócios. Mas poupem-nos, por favor, a declarações piedosas que apenas visam ofuscar os interesses em jogo, criando uma ilusão de preocupação com a sociedade em geral e o acesso das famílias a uma casa para viver, em particular. Sobretudo quando, ao mesmo tempo, o setor contribui ativa e significativamente para que a capacidade de aceder à habitação seja uma miragem.

Capitalismo de guerra neoliberal


As coisas estão de tal forma más no capitalismo do Atlântico Norte que um cartaz soviético encerra uma mensagem poderosa e de grande atualidade.

Mark Rutte, o novo secretário-geral da OTAN, tão liberal quanto austeritário, sugeriu esta semana que os Estados gastem menos em funções sociais e mais em funções guerreiras. No tempo da Guerra Fria, tal escolha era mais difícil. Havia medo do socialismo. 

Nada que surpreenda nesta tradição de economia política inscrita numa UE, criada em Maastricht na década de 1990, sempre vassala dos EUA: capitalismo assumidamente de guerra ao Estado social, afinal de contas. Já não havia medo do socialismo.

Entretanto, a UE continua a planear esverdear o investimento no ambientalmente danoso complexo militar-industrial, a sua primeira prioridade, classificando tal desperdício de “sustentável”. É também para esta ofuscação que servem os verdes com bombas ou o social-liberalismo travestido de social-democracia, por exemplo. O anterior secretário-geral da OTAN vinha desta área política, também dita trabalhista na Noruega.

Sim, há uma esquerda otanizada que vai aceitar mais este pretexto para erodir o Estado social, a mesma que aceitou a austeridade em nome da integração europeia que destrói e aliena a sua base social de apoio.

E ainda ontem ficámos a saber pelo Financial Times que os países da UE estão a planear criar “um fundo de defesa” de 500 mil milhões de euros, uma engenharia financeira para dar dinheiro a ganhar aos grandes bancos e à indústria da morte, o capital financeiro na sua forma clássica.

Claramente, a luta anti-imperialista pela paz é hoje uma parte decisiva da luta para superar o capitalismo de guerra neoliberal prenhe de monstros neofascistas.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

Debater, debater, debater sempre

 

Genocídio e impunidade, complacência e cumplicidade


Num novo relatório de referência hoje publicado, a Amnistia Internacional encontrou fundamentos suficientes para concluir que «Israel cometeu e continua a cometer genocídio contra os palestinianos na Faixa de Gaza ocupada», desencadeando «o inferno e a destruição contra os palestinianos em Gaza de forma descarada, contínua e com total impunidade».

Para Agnès Callamard, secretária-geral da AI, o relatório «demonstra que Israel levou a cabo atos proibidos pela Convenção sobre o Genocídio, com a intenção específica de destruir os palestinianos em Gaza. Estes atos incluem assassinatos, causar lesões corporais ou mentais graves e infligir deliberadamente aos palestinianos em Gaza condições de vida calculadas para provocar a sua destruição física. Mês após mês, Israel tem tratado os palestinianos em Gaza como um grupo sub-humano indigno dos direitos humanos e da dignidade, demonstrando a sua intenção de os destruir fisicamente». E acrescenta: «as nossas conclusões condenatórias devem servir de alerta para a comunidade internacional: isto é genocídio. Tem de acabar já».

O alerta deixado por esta organização de defesa dos Direitos Humanos é por isso óbvio e claro: «os Estados que, neste momento, continuam a transferir armas para Israel devem saber que estão a violar a sua obrigação de prevenir o genocídio e correm o risco de se tornarem cúmplices do genocídio. Todos os Estados com influência sobre Israel, em especial os principais fornecedores de armas, como os EUA e a Alemanha, mas também mais Estados-Membros da UE, o Reino Unido e outros, devem agir agora para pôr termo imediato às atrocidades cometidas por Israel contra os palestinianos em Gaza».

Hoje, em Coimbra


No âmbito das Conversas Almedina, organizadas por Carlos Fiolhais, apresentação da obra «Nos 50 anos do 25 de abril - Memórias e reflexões sobre as mudanças da sociedade portuguesa», com a presença de Manuela Martins, Eloy Rodrigues e José Reis. A partir das 18h00, na livraria Almedina Estádio.

Baixar impostos à espera que chova... uma gota?

Um estudo publicado pelo Banco de Portugal esta semana inclui uma análise aos impactos da descida do IRC em 1 ponto percentual, aprovada no contexto do Orçamento do Estado para 2025. No melhor cenário, se as empresas reinvestirem todo o lucro adicional, a redução do IRC aprovada no OE 2025 leva a um crescimento extra de... 0,1% no longo prazo. Se, em vez disso, as empresas optarem por distribuir os ganhos adicionais pelos acionistas, o impacto para a atividade económica torna-se mesmo negativo.

As conclusões do estudo dão força à ideia de que a relação entre a fiscalidade e o crescimento económico é tudo menos linear. Uma revisão de literatura recente, que avaliou dezenas de estudos empíricos publicados, concluiu que os resultados são inconclusivos: não é possível afirmar, com base nos estudos disponíveis, que baixar impostos às empresas estimula o crescimento.

Isso implica colocar a questão: quem beneficia verdadeiramente desta medida? Em Portugal, é preciso ter em conta que os ganhos se concentram nas 0,4% maiores empresas do país, que pagam quase metade da receita atual.


Além da dimensão das empresas beneficiadas, se olharmos para o IRC liquidado por setor, o que vemos é que a maior parte da receita é proveniente de cinco setores: o setor financeiro, o imobiliário, a construção, o alojamento e restauração e o comércio.


Estes dados dizem-nos duas coisas:

1. Uma redução do IRC beneficia de forma desproporcional as grandes empresas;

2. Em termos setoriais, a maior parte dos ganhos concentra-se em setores com pouco potencial para a transformação estrutural da economia portuguesa.

Se já havia poucos motivos para crer que a redução do IRC era a bala de prata para acelerar o crescimento da economia portuguesa, as conclusões do estudo do Banco de Portugal reforçam essa ideia. O que se sabe é que as principais beneficiadas desta medida serão as grandes empresas, sobretudo em setores que não podem queixar-se de falta de lucros nos últimos anos.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Arrastamento

Quem resume a atual crise de habitação a uma mera falta de casas, como sucede no caso da direita política ou entre agentes do setor imobiliário e da construção, tende a negligenciar - ou mesmo negar - o impacto das novas procuras no aumento dos preços. Isto é, não só desvaloriza a transferência de casas para o setor do turismo (sobretudo através do Alojamento Local), como a procura imobiliária por parte de estrangeiros e nacionais, como forma de valorização de rendimentos e poupanças.

Para sustentar esta desvalorização do impacto das novas procuras na formação de preços - que o Banco de Portugal, num estudo recente, chegou a designar por «choque de procuras» - é recorrente o argumento de que estas não são relevantes. No caso da aquisição de imóveis por estrangeiros, por exemplo, assinala-se que o volume de transações é escasso, oscilando apenas, nos últimos anos, entre 5% e 7% do total (mesmo que, no caso do Algarve, essa percentagem tenha atingido os 27% em junho de 2024).

O primeiro equívoco a assinalar diz respeito ao facto de as novas procuras não funcionarem de forma isolada, mas sim em conjunto e segundo uma lógica de incidência territorial cumulativa. Por outro lado, importa considerar que em muitos casos essas novas procuras - como sucede na compra de imóveis por estrangeiros - têm uma maior capacidade aquisitiva, desencadeando naturalmente, por arrastamento, a subida dos preços.


De facto, quando se analisa o valor mediano das transações segundo o domicílio fiscal do comprador (como ilustra o gráfico aqui em cima), constata-se que a diferença por m2, à escala nacional, quase atinge os 700€. Ou seja, a mediana da transação é cerca de 700€ mais elevada no caso de compradores estrangeiros, face ao valor pago por compradores nacionais. Sendo que, não menos importante, esse diferencial tende a ser mais acentuado nas regiões onde os preços das habitações são mais elevados, com destaque para os casos de Lisboa (quase 1.800€ de diferença) e da Grande Lisboa (com a diferença a rondar os 2.000€), mas também no caso do Porto e do Algarve.