sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Um parágrafo, dois gráficos, algumas palavras.


O parágrafo é da autoria de Domenico Losurdo, em A luta de classes - uma história política e filosófica, editado, em 2015, pela Boitempo no Brasil. Já devia ter sido editado em Portugal, mas, como acontece com o melhor marxismo contemporâneo, não o foi.

Os dois gráficos são da insuspeita revista liberal. Todas as semanas populariza uma ideologia que se quer global, mas que é cada vez mais parcial, com cada vez menor poder explicativo e prescritivo. A República Popular da China representa 90% do investimento na cadeia de valor ligada às energias limpas; investimento que é em parte feito, e totalmente guiado, pelo Estado, como é óbvio. 

A mensagem é clara e é para a decadente esquerda ocidental, para uma certa “teoria crítica” que abandonou a promessa iluminista de crítica radical e de emancipação: parem de alinhar com o imperialismo e olhem para o mundo com olhos de ver, aproveitando para reparar nas várias modernizações necessárias. 

O pessoal é político: no dia a seguir à vitória de Trump almocei com o meu filho luminoso na esplanada com sombra de um restaurante vegetariano. Parecia verão. Assim que chegou disse com o otimismo que o caracteriza: a China é mesmo o futuro, tenho de ler sobre a China. 

Antes disso, eu tinha desabafado, em modo de provocação, com um amigo: apesar de tudo o que me afasta do modelo político chinês em abstrato, reconhecendo em concreto que o contexto histórico da República Popular é tudo menos geopoliticamente distendido, hoje consegui dormir melhor, porque me apaziguou pensar nos quase cem milhões de militantes do Partido Comunista Chinês e nos dois milhões de soldados do Exército de Libertação Popular. 

Não escolhemos as circunstâncias em que escolhemos o que nos dá segurança.

Dois pesos e uma impunidade total


«Senhora presidente, o mundo não devia habituar-se à morte de palestinianos. A ver morrer crianças palestinianas à fome. A ver mães carregar os seus filhos de um lado para o outro, deslocados à força. Não devia habituar-se a ver jornalistas serem assassinados, nem trabalhadores humanitários a serem mortos.
A ver palestinianos serem detidos, sequestrados, carregados em camiões para serem torturados, abusados sexualmente e violados. O facto de sermos palestinianos não torna isso menos chocante, nem menos ultrajante. Talvez para alguns nós tenhamos a nacionalidade errada, a fé errada, a cor de pele errada. Mas nós somos humanos! E devíamos ser tratados como tal. Existe uma Carta das Nações Unidas para Israel que é diferente da carta que todos aqui têm? Digam-nos!
Existe uma lei internacional para eles e uma lei internacional para nós? Têm eles o direito de matar e o único direito que nós temos é o de morrer?
»

Da intervenção de Majed Bamya, Vice-embaixador palestiniano na ONU, no dia em que os Estados Unidos vetaram mais uma resolução que apelava a um cessar-fogo imediato em Gaza. Isto é, os Estados Unidos ainda sob a administração de Joe Biden, que de forma consistentemente trágica, além de ceder armas, pouco ou nada mais fez, ao longo do último ano, que verter mediáticas lágrimas de crocodilo.

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Fascismo e antifascismo


Recordar é viver: um trol de extrema-direita, encerrado numa bolha reacionária estrangeira, usou a expressão “wokismo” nas cerimónias do 25 de abril e alguém o apanhou bem na RTP, com uma magnífica gralha. 

Agora, as extrema-direitas, IL-Chega, hifenizados por desejo de um certo capital, conseguiram transformar, com o decisivo contributo do PSD, uma mentira histórica numa cerimónia sem cravos vermelhos, num dia de novembro ao calhas. Quem fez abril, quem distribuiu cravos vermelhos, não estará lá, os comunistas não estarão lá, outros democratas não estarão lá. 

Razão têm os que, fiéis à melhor tradição marxista, identificam naqueles dois partidos de extrema-direita as expressões políticas da burguesia mais reacionária, a que quer confrontar o regime democrático de matriz constitucional antifascista. 

Perante este confronto, não há mesmo terceiras vias.

Obsessões que resistem a factos: João Marôco e o alegado «retrocesso educativo» de Portugal


Trazendo à memória o ex-ministro Nuno Crato e a sua peregrina tese da «década perdida» na educação – que corresponde justamente ao período em que o nosso país alcançou os progressos mais notáveis na aferição internacional PISA –, João Marôco insistiu recentemente, no Público de 4 de novembro, na ideia de que Portugal regista um «retrocesso educativo que ninguém quer ver».
O recente debate sobre a disciplina de Cidadania foi o pretexto para o regresso a esta tese, com João Marôco a lamentar que a relevância concedida a esse debate não permita que se discuta aquilo que, em seu entender, realmente importa: o recuo, «sem precedentes, nas literacias de leitura, matemática e ciências dos alunos, evidenciado no último PISA».
Sucede, porém, que a ideia de um recuo de Portugal no PISA de 2022, que em termos comparativos caracterize o nosso país como um caso isolado de fracasso – por não acompanhar uma tendência internacional generalizada – carece de fundamento. De facto, a descida verificada face ao PISA de 2018 está em linha com o decréscimo de resultados registado à escala da OCDE e da UE, refletindo assim, em idêntico grau, o impacto da pandemia nas aprendizagens. Ou seja, sem que as diferenças observadas sejam estatisticamente relevantes, como a própria OCDE e o Iave cuidaram oportunamente de assinalar.
(...) Em suma, o que a evolução dos resultados de Portugal neste exercício internacional de aferição das literacias demonstra é, portanto, algo muito claro. Depois de uma aproximação progressiva à OCDE em todos os domínios, conseguida com diferentes governos, passa-se a uma situação em que os alunos portugueses acompanham a evolução de valores à escala da organização.

O resto do artigo pode ser lido no Público de ontem.

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Choque de procuras

Contrariando a narrativa dominante e que persiste, de que a atual crise de habitação resulta simplesmente de um problema de falta de casas (bastando construir para que tudo se resolva), o Banco de Portugal tem sido uma das poucas instituições a assinalar a importância do surgimento das novas procuras na subida vertiginosa dos preços (ver por exemplo aqui ou aqui).

Nesta linha, foi recentemente divulgado um novo estudo, em que se procede a uma comparação entre Portugal e Espanha, constatando-se que as semelhanças entre os dois países, em termos de trajetória macroeconómica, não se refletem na evolução do preço das casas. De facto, desde 2013, «os preços da habitação em termos reais cresceram mais de 80% em Portugal e menos de 30% em Espanha».

Dando nota que os preços das casas em Portugal estão sobrevalorizados desde 2017, os autores do estudo concluem que «o crescimento dos preços em Portugal tem sido impulsionado maioritariamente por forças da procura, com a oferta a ser ineficaz em contrabalançar essas pressões, ao contrário do que sucede em Espanha».


A expressão «choque de procuras», sugerida no estudo, é particularmente feliz para descrever o essencial da génese e natureza da crise de habitação, contribuindo para refutar a tese simplista e ilusória da falta de casas, que tende a ignorar, desde logo, a relação entre população e alojamentos. Aliás, deste ponto de vista, tudo indica que Portugal até construiu mais ao longo da última década do que o nosso país vizinho, como ilustra o gráfico aqui em cima. Em média, entre 2010 e 2023, foram licenciados 1,8 fogos por mil habitantes em Portugal e apenas 1,5 em Espanha.

Ora, se a crise de habitação decorresse simplesmente da falta de construção, como dominantemente se afirma (ao arrepio do que nos dizem as comparações internacionais), os preços das casas em Espanha teriam até subido mais que em Portugal. Porque, de facto, como assinalam os autores do estudo, «o crescimento dos preços é marcadamente guiado pelas forças da procura», sendo a oferta «incapaz de contrabalançar este efeito» e contribuindo até, «em alguns períodos, ainda que de forma ligeira, para o crescimento dos preços».

terça-feira, 19 de novembro de 2024

Teses


Estas duas passagens, tão claras e justas, das teses que estão em discussão no PCP, no quadro do seu XXII Congresso (13, 14 e 15 de dezembro), são duas das principais razões para o meu apoio a um partido que é condição necessária, mas naturalmente não suficiente, para uma alternativa digna desse nome neste país. Não sou militante, mas ainda assim fui convidado, com outros independentes de Coimbra, para trocar umas ideias sobre este documento. Vamos a isso, então. 
 

Apresentação e debate


A hipótese de que se parte neste livro é a seguinte: nos capitalismos contemporâneos alteraram-se significativamente os equilíbrios que conhecemos noutras épocas entre público e privado, entre interesse comum e interesses individuais, e produziu-se um desequilíbrio a favor de poderes de mercado e de esferas particulares desses poderes, mas isso não quer dizer que tudo assente no mercado e muito menos no poder individual de cada um que nele participe. Pelo contrário, formaram-se novos poderes, que se tornaram dominantes, e a sociedade carece de um nível de concertação capaz de lhes contrapor o interesse comum, a sustentabilidade da vida coletiva e objetivos estratégicos de organização que estão para lá de cada esfera; nisto consiste o exercício do que deve ser designado planeamento.

Licínia Simão, José Reis e eu estaremos a apresentar e a debater este livro na próxima quinta-feira, dia 21 de novembro, às 17h, na sala Keynes (ora bem) da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Aparecei.

Pela minha parte falarei do capítulo que para aí escrevi sobre a história da economia política internacional em torno do planeamento no capitalismo. Deixo aqui os dois primeiros parágrafos, com referências omitidas:

Num livro já clássico sobre o “capitalismo moderno”, o britânico Andrew Shonfield argumentou que “o planeamento económico é a expressão mais característica do novo capitalismo”. Pelo mesmo diapasão alinhava Max Milikan, também nos anos 1960, num volume sobre “planeamento económico nacional”, da Índia à França, editado pelo influente National Bureau of Economic Research (NBER) dos Estados Unidos da América (EUA). Falando de uma “moda entre os economistas”, constatava então que um volume destes seria “inconcebível há trinta e cinco anos, há vinte e cinco anos seria sobre a União Soviética, há dez sobre o planeamento em países em vias de desenvolvimento e nos últimos dez sobre qualquer economia nacional”. 

O passado é feito de formas de economia política – de ideias e interesses cristalizados em instituições – distantes. Passadas cerca de quatro décadas de “desplaneamento”, há quem diagnostique atualmente “o grande regresso do planeamento”, dadas as lições extraídas da pandemia, a tendência para a desglobalização, os choques geopolíticos ou a crise ecológica e climática. A necessidade não garante, por si só, o regresso. Seja como for, neste contexto, pode ser útil revisitar brevemente algumas das práticas e das justificações subjacentes ao planeamento, muitas vezes dito indicativo, no quadro de uma “economia concertada”, sublinhando o contexto internacional que o favoreceu, mas também, ainda que de forma mais breve, as razões internacionais para a sua crise a partir dos anos 1980.  

Sábado, workshop Causa Pública sobre a crise de habitação


«A crise na habitação está hoje na ordem do dia em diferentes países como um dos problemas políticos que emergiram depois da crise financeira de 2008. Mas em Portugal a situação é pior do que na esmagadora maioria das economias desenvolvidas. A crise habitacional é hoje um dos mais graves problemas que a sociedade portuguesa enfrenta.
A Causa Pública tem vindo a trabalhar sobre a questão da habitação, sob a coordenação de Guilherme Rodrigues. No dia 23 de novembro iremos realizar um workshop em que apresentamos o primeiro de um conjunto de três relatórios dedicados a este tema.
Pretende-se apresentar o diagnóstico da crise habitacional portuguesa, discutir os seus custos sociais, mas também o seu impacto económico – que é muito relevante e que tende geralmente a ser ignorado no debate público. Finalmente, depois de anos em que foram lançados diferentes pacotes legislativos, queremos começar a debater políticas públicas que respondam efetivamente ao problema
».

Com a participação de Alexandre Abreu e João Pereira dos Santos, num debate moderado por Ana Drago, sobre o estudo que será apresentado por Guilherme Rodrigues. Sábado, 23 de novembro, a partir das 14h30, no SPGL (Lisboa). A participação é gratuita, devendo as inscrições ser feitas por email: iniciativas@causapublica.org.

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Haja luz e esperança


«Estive na primeira reunião de líderes do G20, convocada em Washington no contexto da crise financeira de 2008. Dezesseis anos depois, constato com tristeza que o mundo está pior.
Temos o maior número de conflitos armados desde a Segunda Guerra Mundial e a maior quantidade de deslocamentos forçados já registrada. Os fenómenos climáticos extremos mostram seus efeitos devastadores em todos os cantos do planeta. As desigualdades sociais, raciais e de género se aprofundam, na esteira de uma pandemia que ceifou mais de 15 milhões de vidas.
Segundo a FAO, em 2024, convivemos com um contingente de 733 milhões de pessoas ainda subnutridas. É como se as populações do Brasil, México, Alemanha, Reino Unido, África do Sul e Canadá, somadas, estivessem passando fome. São mulheres, homens e crianças, cujo direito à vida e à educação, ao desenvolvimento e à alimentação são diariamente violados. Em um mundo que produz quase 6 bilhões de toneladas de alimentos por ano, isso é inadmissível. Em um mundo cujos gastos militares chegam a 2,4 trilhões de dólares, isso é inaceitável.
A fome e a pobreza não são resultado da escassez ou de fenômenos naturais. A fome, como dizia o cientista e geógrafo brasileiro Josué de Castro, “a fome é a expressão biológica dos males sociais”. É produto de decisões políticas, que perpetuam a exclusão de grande parte da humanidade.
O G20 representa 85% dos 110 trilhões de dólares do PIB mundial. Também responde por 75% dos 32 trilhões de dólares do comércio de bens e serviços e dois terços dos 8 bilhões de habitantes do planeta. Compete aos que estão aqui em volta desta mesa a inadiável tarefa de acabar com essa chaga que envergonha a humanidade.
Por isso, colocamos como objetivo central da presidência brasileira no G20 o lançamento de uma Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. Este será o nosso maior legado. Não se trata apenas de fazer justiça. Essa é uma condição imprescindível para construir sociedades mais prósperas e um mundo de paz
».

Do discurso de abertura proferido por Lula da Silva, no início da Cimeira do G20, no Rio de Janeiro.

domingo, 17 de novembro de 2024

Obrigado, Celeste Caeiro


Eu trabalhava num restaurante na Rua Braancamp. A casa fazia um ano nesse dia e os patrões queriam fazer uma festa. O gerente comprou flores para dar às senhoras, enquanto aos cavalheiros se daria um porto. Nesse dia, quando chegámos, o patrão explicou que não ia abrir o restaurante, porque não sabia o que estava a acontecer, e disse-nos para levarmos as flores connosco. Chegámos ao armazém e vimos que eram cravos vermelhos e brancos. Cada um levou um molhe.

Celeste Caeiro (1933-2024), empregada da restauração, comunista com cravos, mulher de abril. 

sábado, 16 de novembro de 2024

A ascensão da extrema-direita não começou hoje


Como escreve Manuel Loff, no Público (13/11), a segunda vitória de Donald Trump configura uma viragem histórica. 

Esta vitória parece não encaixar nos modelos dos cientistas políticos da mesma maneira que a crise não existia nos modelos económicos neoclássicos. Abundam as análises, focando-se no papel da inflação e do custo de vida, no apoucamento, com décadas, de grande parte da classe operária americana, bem como o papel da desinformação e das redes sociais ou do jogo sujo da campanha baseada na mentira, no racismo, na xenofobia, na lgbtfobia, e num discurso populista reacionário, que pretende fazer retornar os EUA a um passado idílico que nunca existiu, contra uma suposta elite corrupta de que na verdade o próprio Trump sempre fez parte. Todos estes pontos, e outros, como o apoio demcrata ao genocídio, são válidos e cumulativos. 

O facto é que Trump não ganha apenas nos EUA. Qualquer análise que se preze não pode esquecer que Trump faz, obviamente, parte de uma tendência generalizada nos países do norte dito global, onde a extrema-direita ganha ou, pelo menos, cresce de uma forma tal que influencia os termos do debate, extrema as posições da direita tradicional e coloca a esquerda na defensiva.

Trata-se, portanto, de uma viragem histórica com alcance internacional. Uma tendência óbvia é olhar para outras eras históricas semelhantes. Estamos, de facto, bem próximos do período após a Primeira Guerra Mundial, com a progressiva ascensão dos fascismos, a grande depressão, as guerras civis e que culminou na Segunda Guerra Mundial. As semelhanças são claras e têm sido notadas amiúde. 

O que não tenho visto (e pode ser falha minha) é o encontrar das causas desta viragem na última viragem histórica de dimensões semelhantes – falo dos anos 70 e 80 do século passado. 

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Espaços e tempos


A tese de doutoramento é um momento naturalmente importante do percurso de José Reis, dando origem a um livro, publicado em 1992: Os Espaços da Indústria – A regulação económica e o desenvolvimento local em Portugal

Nele se encontra clarificado um programa de investigação que aponta para um contributo científico: «A análise das expressões singulares da economia (uma formação nacional, um processo de articulações regionais ou um sistema local de organização produtiva) não dispensa que nos interroguemos sobre o seu lugar num contexto mais amplo e sobre a sua lógica interna de funcionamento. Por isso, espaço e tempo deverão ser (...) dois temas permanentes do trabalho dos economistas». 

Espaço e tempo, geografia e história, têm de facto sido permanentes no trabalho em contracorrente de José Reis, bastando atentar no ensaio Cuidar de Portugal, de 2020, ou no artigo na Revista Crítica de Ciências Sociais, de 2023. Também falarei sobre tempos e espaços na apresentação que farei na sua sessão de jubilação, hoje, às 17h, na FEUC.

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Memorável


Graças sobretudo ao sociólogo Carlos Fortuna, Professor Catedrático Emérito da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC), o Mil Folhas já vai no décimo número. É o boletim quadrimestral da excelente biblioteca da FEUC, agora em obras de renovação. 

Tenho uma imensa dívida à biblioteca e às suas bibliotecárias. Nesta vida universitária, há poucas coisas melhores, em matéria de investigação, do que ir aos fundos, na cave, com o seu cheiro inconfundível, resgatar livros do esquecimento. 

Na apresentação do último número, Fortuna anunciou a doação de grande parte da sua biblioteca pessoal de ciências sociais à biblioteca (mais de dois mil livros), num dos momentos mais tocantes e memoráveis em mais de uma década na faculdade. 

Por falar em momentos memoráveis na FEUC, o Mil Folhas pediu a dez pessoas, eu incluído, um breve depoimento sobre um momento marcante no período recente. Este foi o que eu escolhi: 

A FEUC deve ser capaz de nos interpelar, combatendo a indiferença em relação aos grandes problemas e dilemas do nosso tempo. 

No dia 3 de maio de 2023, estava a entrar na FEUC e fui surpreendido por um conjunto de tendas de campismo que, soube depois, tinham sido montadas no nosso belo relvado no dia anterior. Explicaram-me que se tratava de uma ocupação estudantil, exigindo o fim das lucrativas indústrias fósseis, responsáveis maiores pelo fenómeno das alterações climáticas, pelo chamado capitaloceno. Os estudantes perguntaram-me se podiam ir falar por uns breves minutos à minha aula: podem e devem, respondi. 

Os estudantes mobilizados desenvolveram várias atividades de esclarecimento e eram também portadores de reivindicações específicas, como o fim de todas as parcerias da FEUC com bancos e empresas que lucram com estes negócios sujos ou a reforma dos currículos, dando espaço à revelação dos impactos negativos destas atividades empresariais. Contrariavam assim um certo discurso ideológico, encantado com tudo o que venha de um mundo empresarial idealizado, limpo de qualquer forma de exploração e de geração de custos sociais. 

Como professor, estes estudantes deram-me uma lição de empenho cívico inconformado, chamando a atenção para realidades urgentes, que requerem investigação crítica e ação coletiva corajosa. Que haja mais interpelações destas.

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Mais uma lição


Diz que é a última lição, mas não é, haverá muitas mais. É, isso sim, a jubilação, início de um nova etapa de um economista institucionalista enraizado com quem tenho aprendido muito, um mestre da economia e da vida. 

Adenda. Terei a honra de fazer a apresentação. Basear-me-ei numa entrada que escrevi sobre José Reis para o livro, coordenado por André Carmo, Espaço, Lugar e Território. Figuras do pensamento português contemporâneo.

terça-feira, 12 de novembro de 2024

Amigos, amigos, negócios incluídos


O artigo publicado hoje no esquerda.net é um retrato revelador das ligações entre grupos privados de saúde e o atual Governo, ligações que chegam ao Primeiro-Ministro. É impossível perceber a política do atual Governo com base na propaganda da eficiência dos serviços, na contenção de custos, etc. Isso é tudo conversa. O que está em causa é o favorecimento de grupos privados com dinheiro público que será paulatinamente retirado ao SNS e às suas instituições. A consequente degradação do serviço público e universal será depois pretexto para um ainda maior favorecimento dos privados e assim por diante, até que os travemos. 

Livrai-nos dos verdes com bombas, livrai-nos do Livre


Os verdes alemães, através da sua ministra dos Negócios Estrangeiros, apoiaram incondicionalmente o genocídio: um partido que já foi pacifista é agora uma parte crucial da desgraça moral da elite política alemã. Espero que colapsem. Só se podem queixar do seu liberalismo, da austeridade perpétua às pseudopolíticas ambientais, as que sobrecarregam os de sempre. 

Saiu há uns tempos uma sondagem em que cerca de 60% dos alemães se declarava contra a continuação do criminoso envio de armas a Israel. A maior base de apoio a esta política genocida está nos verdes: “verdes com bombas”, como disse Daniela Gabor, economista e ecologista britânica, na altura. 

O Livre permanece silencioso em relação a um partido muito importante na sua existência: o cosmopolitismo alardeado não pode confundir-se com o internacionalismo consequente, confirma-se. O Livre subscreveu uma tomada de posição que representou uma ingerência inaceitável dos verdes europeus, ou seja, alemães, na vida dos verdes dos EUA. Queriam que a candidata verde desistisse. Jill Stein respondeu bem: metam-se na vossa vida, parem mas é de apoiar o genocídio.

O Livre foi em romaria à embaixada israelita em dezembro passado, em pleno genocídio e tem agido sonsamente em conformidade, afinal de contas. Está alinhado com a história intelectual liberal pouco recomendável, promovida por Rui Tavares, seu fundador, no que questão colonial diz respeito, por exemplo. 

O Livre, que existe no Twitter e na AR, é um partido curioso: tem alguns quadros radicalmente de esquerda e com muito valor, embora geralmente euro-iludidos, mas é a favor da NATO, sendo federalista e logo militarista, colocando esperanças em Draghi e tutti quanti. Já disse querer negociar com a direita, ou não disputasse algum eleitorado liberal à IL. Já não sei quem disse: “IL com empatia”. Seletiva a empatia, claro. 

Dizem-me – pessoas que, entretanto, abandonaram o partido – que há ali elementos de culto da personalidade, ou não tivesse o seu fundador subido para um palco do São Luís, como se dissesse: agora tenho um partido. E é como se tivesse, realmente. 

Organizam americanices individualistas, como as primárias, com grandes trapalhadas, e depois boicotam vencedores, como o ingénuo Paupério, que desagradam ao fundador. E há mais, incluindo RBI, semana de 4 dias e outras frescuras inconsequentes, mas não tenho tempo, nem paciência. 

Sim, livrai-nos do Livre, um partido que pretende partir a esquerda para a unir pela direita; e daí as simpatias liberais e da comunicação social, apostada em que esta promovida oferta condicione a procura.

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Um fazer


Obrigado, José Tolentino de Mendonça: A Vida em Nós - Aforismos

Pistas para compreender o regresso de Trump

 

A vitória de Trump e do Partido Republicano nos EUA foi recebida com surpresa por muitos analistas, sobretudo entre os mais próximos da candidatura dos Democratas. Os números positivos do PIB, do emprego e do salário médio real eram vistos como provas do sucesso da administração de Joe Biden e argumentos a favor da eleição da sua vice-presidente, Kamala Harris.

Os inquéritos de opinião que mostravam preocupação dos eleitores com o custo de vida foram sistematicamente desvalorizadas pelos analistas. Tornou-se comum ouvir que as “sensações” das pessoas não refletiam os números da economia. O termo “vibecession” surgiu para descrever uma situação em que não há uma recessão mas as “vibes”, ou sensações, das pessoas sobre o estado da economia são más. No início do ano, economistas reputados juntaram-se para debater esta questão enigmática: porque é que os norte-americanos estão pessimistas em relação à economia, apesar da sua aparente robustez? No New York Times, o economista Paul Krugman, vencedor do Nobel da disciplina e defensor da candidatura Democrata, garantia que “todas as boas notícias económicas validam [o governo de] Biden”. Na The Economist, chegou a ler-se que os eleitores estavam a demonstrar um “pessimismo irracional”.


A verdade é que os primeiros dados sobre a distribuição dos votos entre Democratas e Republicanos sugerem que houve uma viragem assinalável para os segundos entre os eleitores com menos rendimentos. Uma análise mais fina dos dados mostra que o cenário é bem menos idílico.

É um facto que, depois da perda de poder de compra registada durante o período inicial da inflação, houve uma trajetória de recuperação salarial e que esta foi mais intensa entre os escalões de rendimento mais baixo. Mas será que estes dados são suficientes? Nos artigos "Trump vs. Biden: The Macroeconomics of the Second Coming" (aqui) e Good Policy or Good Luck? Why Inflation Feel Without a Recession (aqui), Servaas Storm e Thomas Ferguson analisam os dados de forma exaustiva e mostram que o salário mediano real estagnou desde 2021.

Em termos cumulativos, a maioria das pessoas perdeu poder de compra face ao período pré-inflação. Olhar para os salários por hora não permite ter em conta a redução no número de horas trabalhadas por semana desde a pandemia.

Em 2021-2023, 9 em cada 10 pessoas perderam poder de compra apesar dos aumentos salariais. Pior: todos os escalões de rendimento tiveram uma evolução pior que a da presidência de Trump (mesmo que os ganhos de 2017-2020 não se devam necessariamente à política económica deste). Se olharmos para a evolução dos salários medianos reais por setor, a presidência de Biden também fica mal na comparação. Independentemente da responsabilidade de ambos os governos nesta evolução, é difícil que a comparação não tenha tido peso nas eleições.

Outros indicadores apontam para conclusões semelhantes. O "employment cost index" (que inclui no cálculo alguns benefícios oferecidos pelos empregadores além do salário) caiu em quase todos os setores entre 2019 e 2024 e só subiu em dois setores marcados por salários baixos.

Storm e Ferguson calculam ainda a evolução do rendimento das famílias (que, além dos salários, inclui também outras fontes de rendimento como as transferências públicas, especialmente relevantes para quem ganha menos, ou a propriedade). Mais uma vez, a conclusão não é positiva.

Os dados sugerem que devemos pôr alguma água na fervura das análises mais entusiastas sobre a economia dos EUA. Os ganhos recentes parecem concentrar-se nos "salários de subsistência", demasiado baixos para uma vida minimamente digna (percebe-se que não motive grande celebração). Mas há mais aspetos a ter em conta. A forma como a inflação é calculada baseia-se no cabaz de consumo típico das famílias, mas sabe-se que os padrões de consumo variam bastante consoante o rendimento. Ou seja, algumas subidas de preços afetam mais uns grupos do que outros.

O exemplo dos bens alimentares é ilustrativo. Em média, as famílias americanas gastam 11% do seu rendimento em comida (e é esse peso que é usado para calcular a inflação total). Mas os 20% mais pobres gastam quase 1/3 do seu rendimento nestes bens, pelo que são mais penalizados. Como a subida dos preços foi mais acentuada em bens essenciais (comida, energia ou habitação, em que os mais pobres gastam proporcionalmente mais), comparar o salário com a inflação oficial pode não refletir inteiramente a evolução do poder de compra de quem ganha menos.


Uma análise dos dados do Instituto de Estatísticas do Trabalho dos EUA mostra que o grupo dos 20% com menos rendimentos foi o que experienciou uma inflação mais acentuada desde a pandemia. Para este grupo, a subida dos preços terá sido 8,3% maior do que a inflação média. E os autores desta análise sublinham que mesmo estes valores não têm em conta outras dimensões, como a capacidade de substituição de consumos. As famílias mais pobres são provavelmente as que já consomem marcas mais baratas à partida. Há dados que que apontam para a existência de um fenómeno de “cheapflation”, isto é, subidas mais acentuadas dos preços nos produtos que eram mais baratos à partida, face às marcas que eram mais caras (o que, novamente, penaliza quem ganha menos).

Por último, o indicador usado para medir a inflação não inclui o custo do crédito. A subida das taxas de juro aumentou os custos de empréstimos à habitação, cartões de crédito ou empréstimos dos estudantes universitários. Este é outro problema das análises convencionais: não terem em conta que o aumento das taxas de juro representa um aumento (bastante significativo) dos custos na vida das pessoas.

No período em que a inflação foi mais intensa, as dificuldades financeiras foram sentidas sobretudo entre quem ganha menos. Além da incapacidade de pagar as contas, muitas pessoas reportaram a necessidade de saltar refeições ou adiar cuidados de saúde. Mesmo que a perda de poder de compra acabe por ser compensada ao fim de 1 ou 2 anos, isso não apaga a experiência de muitas famílias com rendimentos baixos que passaram por grandes dificuldades. Se tudo o resto não fosse suficiente, o aumento significativo do número de pessoas em situação de pobreza e de insegurança alimentar seria motivo para preocupação com o verdadeiro estado da economia.


Ainda que estas tendências não se devam necessariamente ou exclusivamente às políticas dos Democratas - sobretudo tendo em conta que o choque dos preços da comida e da energia, que resultou da reabertura das economias após a pandemia e da invasão russa da Ucrânia, foi historicamente elevado -, a perceção das pessoas sobre os governos depende da sensação de justiça/injustiça face às medidas adotadas.

Nesse sentido, vale a pena ler a análise do historiador Andrew Elrod sobre a forma como a política económica de Biden foi perdendo os seus eixos iniciais, centrados no custo de vida das famílias e na provisão pública de serviços essenciais. Por oposição do Senado, alterações das prioridades políticas ou outros motivos, a orientação mudou para uma versão de política industrial baseada em incentivos fiscais ao capital privado e assente numa retórica de "segurança nacional" face à competição da China. Além disso, muitas das medidas aprovadas no início da pandemia para combater o risco de pobreza foram descontinuadas (sem que os problemas deixassem de ser preocupantes).


Mesmo que contribua para a transformação estrutural da economia norte-americana - o que está longe de ser garantido -, é justo admitir que a política industrial leva tempo a produzir efeitos visíveis na vida das pessoas. O aumento do custo de vida requer medidas mais imediatas. A ausência de medidas mais robustas para regular preços de bens essenciais num contexto de crise, taxar lucros extraordinários e combater o aproveitamento das grandes empresas pode ter contribuído para as dinâmicas que observamos no voto.

Nada do que foi descrito pode ser lido como justificação do voto no programa autoritário e desigualitário oferecido por Trump, que não resolve nenhum destes problemas. No entanto, um bom diagnóstico é indispensável para pensar em alternativas.

domingo, 10 de novembro de 2024

A esquerda otanizada


Há uma esquerda, ainda dominante por aqui e por ali, presa mentalmente na geografia ideológica da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN ou NATO, no acrónimo mais conhecido, em inglês). Por exemplo, já se disse que é impossível a uma mulher ganhar num país tão conservador como os EUA. 

Sim, nem sequer se digna a olhar para sul, para o México, por exemplo, onde a valorosa Claudia Sheinbaum ganhou há tempos de forma esmagadora, com um programa progressista na melhor tradição de nacionalismo económico em relação a setores estratégicos, como a energia, herdando também alguns dos resultados impressionantes de Obrador. E está a implementar o seu programa de forma consequente, com todas as contradições do que pula e avança numa formação social concreta, com tantos constrangimentos, tão longe de Deus e tão perto dos EUA.

E, obviamente, essa esquerda otanizada só olha para a República Popular da China com medo e desprezo ignorantes. Nada quer aprender sobre controlo público de sectores-chave, incluindo a finança e as infraestruturas sociais, sobre planeamento indicativo, com instrumentos impositivos de política industrial, indispensáveis para a enfrentar ameaças existenciais, etc. 

Despreza o Estado nacional, onde se pode formar um consenso político consequente para tais tarefas socioeconómicas. Essa esquerda não alcança a perversidade do militarismo e do federalismo europeus e, no fundo, aceita o neoliberalismo, as guerras de classe sem fim contra os povos. Finge não saber que existe uma linha de cor e recusa-se a fazer a conexão com o imperialismo que a traçou e traça. As vidas palestinianas valem menos neste contexto.

Não é anti-imperialista e por isso não valoriza a ascensão pacifica da China e o efeito de freio e contrapeso aos EUA, parte de uma igualização sem precedentes históricos desde a primeira revolução industrial. É da OTAN, afinal de contas. O resto, a esmagadora maioria do mundo, só lhe interessa para o perverso intervencionismo humanitário.

Em O marxismo ocidental, o saudoso Domenico Losurdo denunciou histórico-filosoficamente uma parte dessa esquerda, a que é pseudo-radical na sombra da OTAN, a que desvaloriza o impulso nacionalista anticolonial até aos dias de hoje. Fê-lo talvez melhor do que qualquer outra pessoa: “na medida em que se satisfaz com a crítica e, aliás, encontra sua razão de ser na crítica, sem pôr-se o problema de formular alternativas possíveis e de construir um bloco histórico alternativo àquele dominante, ele é a ilustração da sabichonice do dever ser; quando, pois, desfruta da distância do poder como uma condição da própria pureza, encarna a bela alma”. 
 
Essa esquerda merece todas as aspas. Lamento, mas tem de ser combatida no plano das ideias para vermos surgir um antifascismo digno desse nome. Sim, sem clarificações e cortes continuaremos no mesmo declínio. Sim, eu posso falar, já mudei de opinião e deixei registo. Outros podem fazer o mesmo agora, se calhar. Estamos todos vivos e queremos todos florescer.

Adenda. Título inspirado num dos últimos livros de António Avelãs Nunes: A Europa Otanizada.

sábado, 9 de novembro de 2024

Um jornal cada vez mais necessário


Qualquer financiamento público ao jornalismo tem de ser condicionado ao emprego com direitos, sem dúvida. Mas também à qualidade, autonomia, independência e pluralismo do jornalismo. Nunca para proteger lucros privados da «selvajaria do mercado». Sem isso, a retórica de dar «sustentabilidade, pluralidade e independência» ao sector só degrada o jornalismo que ainda tem alguma qualidade, como no serviço público, e encoraja um jornalismo cada vez menos plural (do extremo-centro à extrema-direita), mais superficial e sensacionalista, mais emocional e sem contexto, e com mais ângulos mortos nas realidades representadas (profissões, modos de vida, classes sociais, territórios). 

 Queremos mesmo defender o jornalismo e devolver-lhe credibilidade? Aumentem-se os salários para mais jornais serem comprados, reduza-se o tempo de trabalho para os cidadãos dedicarem tempo a informar-se, taxem-se as plataformas digitais que lucram com a partilha do trabalho alheio, legisle-se contra a precariedade, regule-se a informação para que ela seja rigorosa, plural e traduza a diversidade da sociedade. Ainda há pouco o jornalismo mostrou dois territórios que ignora sistematicamente: o mundo rural e os bairros das periferias das grandes cidades, onde o Estado e os serviços públicos estão cada vez mais ausentes após décadas de abandono das actividades e de exposição às alterações climáticas, após décadas de degradação e fecho de serviços, de substituição do Estado social pelo Estado policial. E de repente há incêndios. E de repente um homem, Odair Moniz, trabalhador e negro, é morto pela polícia num território relegado, invisibilizado pelos media. As reacções de revolta impuseram o olhar. Mas, se já agora esse olhar não perdura, imagine-se num campo mediático ainda menos democrático.

Sandra Monteiro, O governo dos patrões dos «media», Le Monde diplomatique - edição portuguesa, novembro de 2024.

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Brincar às casinhas?


Pedro Brinca participou na mais recente edição do podcast do Expresso Chave na Mão, sobre o agravamento dos preços da habitação em Portugal e a dificuldade das famílias em aceder a um alojamento a preços compatíveis com os seus rendimentos. Em cerca de 18 minutos de conversa, e como seria de esperar, o economista apontou o dedo «à falta de oferta e de incentivos à construção».

Ou seja, em cerca de 18 minutos Pedro Brinca não teve uma palavra que fosse sobre o impacto nas novas procuras na subida dos preços e na origem da atual crise, preferindo insistir na narrativa tão dominante quanto simplista da falta de casas, com base na ideia de que, cito de memória, «há dez anos que não se fazem casas em Portugal». Daí à defesa da agilização do licenciamentos e da adoção de benefícios fiscais, entre outros incentivos à construção, foi só um passo.

Reforçando a tese sobre a resposta à crise de habitação, diz ainda o economista: “Quando aterro em Lisboa não vejo arranha-céus a perder de vista. O que não falta é espaço para construir. Algo se passa aqui”. Pois passa, passa-se até mais do se vê da janela de um avião: ao contrário de cidades como Tóquio e São Paulo (que Brinca cita como exemplos de construção em altura), ou de Nova Iorque, a população que vive em Lisboa tem vindo a diminuir desde os anos 80.

Não basta, portanto, olhar para as casas. É preciso ver mais longe e perceber que há hoje diversas procuras, incluindo as especulativas, que impedem que se continue a encarar a questão da habitação como o jogo simples entre alojamentos e famílias. Ou seja, para fazer um diagnóstico adequado, e encontrar as respostas certas, é necessário considerar o impacto e a presença dessas novas procuras (internas e externas, a par das associadas ao turismo), potencialmente inesgotáveis e para as quais a habitação constitui essencialmente um ativo financeiro.

Em contrário, e sem a adoção de medidas robustas de regulação, corre-se o risco de apenas estarmos a brincar às casinhas, sem resolver problema nenhum, e nomeadamente a questão da inacessibilidade dos preços para as famílias.

Para uma Economia antifascista


Isabella Weber, notável economista sinóloga, que reintroduziu o controlo de preços estratégicos na agenda intelectual de uma profissão desmemoriada, fazendo apelo à história e ao bom senso institucionalista, defendeu anteontem que precisamos de uma “Economia [economics] antifascista”. Nada é mais crucial nesta área. 

Afinal de contas, todas as responsabilidades intelectuais pela nova ascensão do fascismo devem ser assacadas aos economistas convencionais, do ensino insalubre à política económica que mata. 

Pela minha parte, repito o que escrevi num artigo para o Le Monde diplomatique - edição portuguesa em 2023: 

Onde estão hoje os liberais que, tal como Keynes ou Beveridge, do final dos anos 1920 aos anos 1940, e perante o fascismo, compreenderam que as liberdades públicas só se salvam e aprofundam se se abandonar o liberalismo económico em todas as escalas, promovendo o pleno emprego, a provisão pública de bens e serviços fundamentais e a redução substancial da desigualdade e da insegurança sociais? 

Em Portugal, tais liberais não existem. Só temos mesmo direito a liberais até dizer chega. Face às iniciativas liberais de tantos partidos, é necessário organizar a mais ampla frente, tão antifascista quanto antiliberal. Em 1943, um notável economista político polaco, cruzando Marx e Keynes, concluía de forma luminosa num tempo sombrio: «a luta das forças progressistas pelo emprego é, ao mesmo tempo, um meio de impedir o retorno do fascismo». Há coisas que não mudam. 

E repito a única crítica ao brilhante livro de Clara Mattei, historiadora da economia política, sobre a forma como a economia austeritária alimentou o fascismo, feita em artigo, também no Le Monde diplomatique - edição portuguesa, há uns meses, onde faço uma breve sugestão, a desenvolver, para a tal economia antifascista: 

A questão que se coloca neste neste contexto é se o marxismo pode e deve articular-se com outras tradições críticas na Economia. Com demasiada severidade, Mattei desconsidera a tradição inaugurada por John Maynard Keynes, argumentando mesmo que este economista não se desviou muito da lógica de classe subjacente à austeridade. 

No entanto, reconhece, ainda que de forma relutante, que Keynes acabou por romper com a ortodoxia. O seu juízo severo justifica-se em parte pela atenção ao período que vai de 1919 aos anos 1920. No entanto, logo em 1919, Keynes já era crítico da prioridade política dada aos credores em Versalhes, o que lhe valeu elogios de Lénine. A sua progressiva descoberta, dos anos 1920 para os anos de 1930, da macroeconomia, da verdade que se encerra na totalidade, a começar pela procura agregada, tem pontos de contacto, de resto sublinhados pela tradição de Cambridge na Economia, com o marxismo e supera de forma radical a lógica da austeridade. 

Por exemplo, em 1929, Keynes estava apostado em persuadir os leitores de algo simples, mas que ia à raiz de um problema crucial: «Tentaremos mostrar-lhe que a conclusão, de que se forem oferecidas novas formas de emprego mais homens serão empregados, é tão óbvia quanto parece e não contém quaisquer problemas escondidos; que colocar homens desempregados a trabalhar em tarefas úteis faz o que parece fazer, nomeadamente, aumentar a riqueza nacional». 

Se é verdade que a tradição iniciada por Keynes favoreceu reformas graduais no marco do capitalismo, incluindo para esconjurar a revolução, também é verdade que a hipótese das finanças funcionais tem por finalidade o pleno emprego. Nascida de uma teoria prática, assentou na articulação entre Tesouro e Banco Central na sua dependência. Aí, o défice é uma variável endógena e não um objetivo de política. É por isso de grande utilidade para as classes trabalhadoras, já que é o pleno emprego que contribui para mudar a relação de forças, incluindo através da descoberta de que não há restrições financeiras, mas sim restrições reais, relacionadas com os recursos comandados pela comunidade. Isto é radical, seja o objetivo final de tipo “socialista liberal”, tal como foi favorecido por Keynes – «quero dizer um sistema em que podemos agir como uma comunidade organizada com propósitos comuns» –, seja de tipo de revolucionário, com a superação de todas a relações de exploração, tal como é favorecido por Mattei. 

A lógica de frente popular, de que precisamos hoje para derrotar os novos rostos do fascismo que a austeridade privilegia, não pode prescindir de alianças intelectuais. É hoje urgente uma aliança entre marxismo e keynesianismo progressista, num quadro soberanista que desafie o mercado único e a moeda única. 

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

A tragédia de Sanders


Bernie Sanders tirou logo justas ilações da vitória de Trump: “Não devia ser uma grande surpresa um Partido Democrata que abandonou a classe trabalhadora descobrir que a classe trabalhadora o abandonou. Os que estão preocupados com a democracia e a justiça económica têm de ter discussões muito sérias”. 

A tragédia deste valoroso social-democrata norte-americano foi ter-se deixado subordinar a uma candidata apoiada por uma fração muito relevante da classe bilionária por si denunciada, sem programa económico e apoiante do genocídio do povo palestiniano, financiado a 70% pela administração democrata.

Há aqui uma lição óbvia; várias, aliás.

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Comunicado


As eleições nos Estados Unidos da América, com o degradante espectáculo da campanha eleitoral, assim como o carácter opaco e antidemocrático do sistema eleitoral, traduzem o acentuado nível de degradação a que chegou o sistema político dos EUA, que entretanto se arroga no direito de dar ao mundo lições de “democracia”. Um sistema onde se multiplicam mecanismos e manobras que visam subverter a expressão da vontade popular, desde logo, o controlo a partir do financiamento das campanhas pelos grupos económicos e financeiros, incluindo os do sector do armamento.

Início de um comunicado que vale a pena ler na íntegra. Fiel a um mote em que tenho insistido: “o futuro é negro: mas na própria negrura não há ausência de luz”. 

Duas imagens para hoje

Tive recentemente a oportunidade de visitar duas exposições na capital, uma no renovado e ampliado Centro de Arte Moderna (CAM) da Gulbenkian, agora com a apaziguadora e acolhedora pala, e outra no Centro Cultural de Belém (CCB). 

A exposição temporária Linha de Maré encarna a forma de dar a ver parte da coleção do CAM (a forma antiga era mais pedagógica). Lá estava a Posta, de Rosa Carvalho. Depois, num dia luminoso, fui ver a perturbadora fotografia de Nan Goldin ao claustrofóbico interior do CCB. É ela na foto.

Peço desculpa pela brutalidade, mas deixo-as lado a lado no dia de hoje, porque sim, porque os tempos são brutos. Nem são só assim, nem serão sempre assim.

Tarefa


Nas presentes circunstâncias da vida internacional, precisamos cada vez mais, com mais estudo e empenho político, de reunir toda a tradição anti-imperialista, começando por tornar visíveis as conexões entre as formas dominantes de capitalismo e a geometria do imperialismo. Começa-se pela economia política e acaba-se na política impura e dura. 

Não há ausência de luz


Rashid Tlaib foi reeleita para o Congresso dos EUA, uma exceção que confirma a regra plutocrática. Encarna o humanismo integral num sistema desumano, denunciando o genocídio do povo palestiniano, perpetrado pelo colonialismo sionista e apoiado por Biden-Harris com milhares de milhões de dólares e todo o respaldo diplomático do imperialismo. Sim, “o futuro é negro: mas na própria negrura não há ausência de luz”. 
 

terça-feira, 5 de novembro de 2024

Uma frase


Há livros, como acontece com a introdução de Pierre Blanc à relação entre geopolítica e clima, que valem por uma frase como esta, que não me sai da cabeça nestes tempos: “A resposta que pode ser dada à degradação por vezes violenta do estado da natureza depende, em última instância, da natureza do Estado”. 

David Bowie - I'm afraid of americans

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Economia à dúzia


1. A economia ecológica tem sacudido a complacência dos economistas convencionais, que tratam a natureza, quando a tratam, como se fosse “capital natural”. Tudo é aí comensurável, redutível a uma mesma bitola pecuniária. Avaliam os custos das alterações climáticas através de modelos com uma taxa de desconto, como se o futuro fosse um fluxo de custos e benefícios pecuniários mais ou menos certos, mais ou menos distantes, como se a multidimensional e incomensurável catástrofe não fosse aqui e agora, parte de conflito social sobre custos sociais. “A maior falha dos mercados da história” não se resolve com paliativos ineficazes, simulando mercados ou com taxas e taxinhas incapazes, mas sim com alterações nos modos de produzir e nas relações de propriedade e de coordenação que lhes subjazem – mais plano, menos mercado. 

2. A economia feminista tem colocado no centro do debate as questões da desigualdade de género – do “altruísmo imposto” às mulheres na esfera da reprodução social, em particular às mulheres da classe trabalhadora, aos seus custos, privatizados ou socializados, o que faz toda a diferença, sobretudo para elas: por exemplo, “quem paga pelos miúdos?” já é uma pergunta clássica. A economia feminista indica que um Estado social robusto faz maravilhas pela igualdade de género e de classe, do emprego à igualdade salarial, passando pela socialização do tal altruísmo, alimentando outros altruísmos, noutras esferas.

3. A macroeconomia keynesiana, em geral, e a teoria monetária moderna, em particular, tem avançado o nosso conhecimento sobre aspetos fundamentais da totalidade de uma economia monetária de produção moderna, que requer poder soberano na sua pilotagem, uma articulação entre Tesouro e Banco Central, por exemplo: um “grande Banco”, parte de um “grande Estado”, ao serviço da socialização do investimento, do pleno emprego e da eutanásia do rentista, através de taxas de juro tendencialmente nulas por comando e controlo, não é de outra forma. 

4. A economia institucionalista fundamental tem exposto a nossa dependência de infraestruturas coletivas cruciais para termos vidas longas, saudáveis e ilustradas, formas de capital social, do real, que, aliás, implicam uma dívida social à nascença e uma lógica intergeracional que só o Estado, domador do tempo e da incerteza, está em condições de garantir. 

5. A tradição soberanista na economia tem exposto a importância do protecionismo seletivo ou dos controlos de capitais, a relevância económica da fronteira política, sem a qual a economia não pode ser pilotada e democratizada. 

6. A economia desenvolvimentista e evolucionista, aplicada às dinâmicas industriais, tem mostrado a importância do “Estado empreendedor”, da política industrial robusta, incluindo para a missão de descarbonizar a economia. 

7. A economia marxista tem aprofundado a nossa compreensão sistémica da evolução do capitalismo, da globalização à financerização (termo de origem marxista que hoje toda a gente interessada no tema usa), passando pelo rentismo fundiário, uma das ausências flagrantes na economia convencional, e pelas dinâmicas conflituais dos sistemas de provisão, pensando, nos seus momentos mais “analíticos”, em utopias reais

8. A economia das desigualdades tem investigado os determinantes institucionais dos padrões de injustiça social, dos rendimentos à riqueza, e dos processos de igualização socioeconómica; articulada com a investigação na área dos determinantes sociais da saúde, tem confirmado, rigorosamente, que há uma economia que mata. 

9. Apesar de já não ser há muito um entusiasta deste programa com algumas décadas, reconheço que a economia comportamental tem sistematizado as “anomalias” dos humanos, que os afastam sistematicamente dos postulados do homo economicus, com implicações para o desenho institucional indispensável para a microeconomia, reconhecendo-se também por esta via que a economia é moral. Afinal de contas, as instituições enquadram e moldam as “preferências”, assim vistas como “endógenas”, o que é uma maçada para tantos modelos económicos e correspondentes apostas políticas. 

10. A história crítica do pensamento económico tem exposto as ruturas e continuidades entre liberalismo e neoliberalismo, não sendo ambos um slogan, antes instrumentos de poder; a nova história do capitalismo tem sublinhado como o racismo, o esclavagismo, o colonialismo ou o imperialismo configuraram um “capitalismo de guerra” em várias escalas. E que anda por aí, ou se anda. 

11. A metodologia e a filosofia da economia têm confirmado que factos e valores estão entrelaçados, que a separação positivo/normativo, tal como os economistas a afirmam, é uma fraude, que os economistas convencionais têm uma filosofia social espontânea e grosseira – uma variante do utilitarismo – e que o seu fetiche com o mercado e sua putativa magia produz, enquanto encobre, desigualdade socioeconómica e corrosão moral, sendo tudo menos neutro, quer nos seus efeitos, quer nas suas justificações. 

12. Numa disciplina demasiado regressiva, tem havido, apesar de tudo, progresso nas margens plurais, em diálogo com outras disciplinas interessadas na economia substantiva. O drama é que muito do progresso ainda passa ao lado da esmagadora maioria dos estudantes de licenciatura, de mestrado e até de doutoramento, dada a falta de pluralismo; e o progresso é demasiado ignorado nos “Prémios Nobel” (aspas, muitas aspas), com uma ou outra exceção, de Myrdal a Ostrom, passando por Sen. Sim, a economia substantiva é demasiado importante para ser deixada apenas a economistas com formação deficiente e com correspondente aposta neoliberal zumbi.

domingo, 3 de novembro de 2024

Habituemo-nos à cooperação


Nos hemos negado a limpiar un Zara, estamos aquí para ayudar a la gente. no entendemos como, estando tantos pueblos llenos de fango y siendo tantas las personas de Alfafar, Sedaví y otras localidades que necesitan ayuda para sacar sus enseres se les ha ocurrido la idea de traernos a limpiar a un centro comercial.
 

Desculpai, o excerto da notícia tão reveladora fica numa das línguas dos nossos irmãos. 

Seguindo Thorstein Veblen (1857-1929), economista institucionalista original norte-americano, o instinto predador, que tem livre curso no capitalismo, parasita e corrói o instinto cooperativo, o instinto do trabalho bem feito (workmanship), com utilidade social, que nasce e floresce em comunidade. 

Todos temos a obrigação de saber que as motivações humanas estão muito para lá da visão esquálida do homo economicus, pensada por alguns economistas para naturalizar a tal predação. 

Saibamos, crença inabalável na evolução humana, que as pessoas fazem o melhor de que são capazes nas circunstâncias que são as suas, sendo o dever da ação coletiva humanizar circunstâncias e desenvolver potencialidades, consolidar e educar os nossos melhores instintos. 

O pessimismo desesperançado de muitos intelectuais progressistas sobre o povo corre o risco de favorecer inadvertidamente os predadores, do rentismo fundiário à alta finança. 

Diz que há um efeito nocebo, a desesperança deixa o campo livre, apoucando tanto que ainda funciona e resiste. Saibamos então visibilizar e acarinhar a generosidade. É mais decisiva do que tantos se acostumaram a pensar. Olhar, ver e reparar, nos dois sentidos imediatos e talvez ligados desta palavra.

De resto, como nos ensinou Veblen, as instituições são “hábitos de pensamento”. Não nos habituemos então à predação, antes à cooperação. É que temos mesmo de a acalentar institucionalmente, se quisermos sobreviver e florescer.