terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Falso senso comum como estratégia de desenvolvimento

Um post de Rui Pena Pires no Canhoto chamou-me a atenção para uma passagem pouco feliz da recentemente publicada “Estratégia Portugal 2030” (RCM n.º 98/2020, de 13 de Novembro).

Lê-se assim: “a investigação realizada em Portugal e o conhecimento gerado têm sido muito orientados para o aumento do stock de conhecimento na comunidade científica, com um menor enfoque na inovação e no desenvolvimento de soluções que envolvam as empresas e na criação de produtos que cheguem ao mercado, falhando muitas vezes em responder aos desafios reais do tecido produtivo.”

Lê-se e não se acredita. Melhor dizendo, grande parte de quem lê acredita, pois essa é a mensagem que muitos insistem em passar como senso comum. Mas é uma ideia pouco informada, por três motivos:

1. O maior contributo dos sistemas de ciência e tecnologia para o desenvolvimento das economias ao longo da história consistiu – e consiste – na formação de competências avançadas de compreensão e resolução de problemas. Isto é conseguido através do ensino e da investigação fundamental, mais do que através do desenvolvimento de soluções com aplicação mercantil. Na verdade, são muito poucos os sectores onde existem contributos directos relevantes da actividade científica para os negócios empresariais. (Este é um bom texto para reflectir sobre o tema).

2. O aumento do stock de conhecimento pode conduzir – e tem conduzido – à inovação e ao desenvolvimento de soluções que não envolvem necessariamente “produtos que cheguem ao mercado”. Um exemplo óbvio, mas não único, é a área da saúde, responsável por mais de 40% das publicações científicas internacionais em Portugal
. Apenas uma pequeníssima parte desta investigação se traduz em “produtos que cheguem ao mercado”, mas no seu conjunto representam avanços relevantes nos conhecimentos e nas práticas médicas em Portugal, de que todos beneficiamos.

3. Não é de todo claro que o sistema científico em Portugal falhe “muitas vezes em responder aos desafios reais do tecido produtivo”. Existe uma forte correlação entre as estruturas produtivas dos países e o nível de interacção entre empresas e instituições de ensino superior. É expectável que haja muita interacção em economias baseadas em sectores baseados no conhecimento – como a farmacêutica, a biotecnologia, a nanotecnologia, a aeronaútica, a computação, etc. – mas o mesmo não é de esperar em economias que assentam no turismo, no vestuário, no calçado e na cortiça. Como procurei mostrar neste artigo
, Portugal apresenta níveis de desempenho inovador superiores ao que seria de esperar dada a sua estrutura produtiva – e isto em muito se deve ao investimento que tem sido feito no reforço das competências avançadas de compreensão e resolução de problemas. Se a interacção universidade-empresa não é maior, tal deve-se em larga medida à estrutura produtiva do país.

Sabendo que a “Estratégia Portugal 2030” vai enquadrar a utilização dos 30 mil milhões de euros que chegarão a Portugal na próxima década ao abrigo da Política de Coesão da UE, esta cedência ao senso comum é pouco tranquilizadora.

6 comentários:

Anónimo disse...

O mantra da subordinação das instituições públicas às "necessidades" dos privados é antigo e tem muitas nuances.
Uma das mais desejada é no sector da saúde (mais volta, menos volta, tudo acaba em torno do SNS).
Os laboratórios do Estado como o Centro de Neurociências e Biologia Celular, ou o IPATIMUP podiam orientar a investigação para o desenvolvimento de novos medicamentos, que as farmacêuticas podiam comercializar, a uma fração dos custos que, ficariam por conta go contribuinte.
Estão a ver? Não tem nada a ver com calçado. Aí está tudo inventado.

Sandro Marques disse...

Creio que há um bom exemplo de sector "onde existem contributos directos relevantes da actividade científica para os negócios empresariais" que se chama: Big Tech.

Anónimo disse...

Big ?

Isso é publicidade encapotada e não traz nada de novo ao que é afirmado

Sandro Marques disse...

Publicidade encapotada? Como assim? Não se pode comentar em nome próprio? Só se pretendermos ignorar o elefante na sala. A certo ponto é sempre preciso que alguém diga: "olha o elefante". Normalmente é o ingénuo. A questão de fundo também não foi abordada pelo autor do post e que é a de como transferir o conhecimento científico para as empresas. Mas parece-me que esse debate não interessa a ninguém em portugal.

Anónimo disse...

Passamos da publicidade encapotada para a publicidade ideológica
Só agora aparece à luz do dia

JE disse...

Eis mais um exemplo de má-fé e de desonestidade.

A um texto sério e lúcido de RPM responde um tal "sandro marques" com um exemplo. Uma tal big qualquer coisa.

Alguém o confronta como sendo simples publicidade

A como reage "sandro marques"?
Há um elefante na sala. "Olha o elefante", esbraceja

Elefante que ninguém viu, a começar pelo Sandrinho. Que também não tinha visto a ausÊncia da tal "questão de fundo" que de repente agora descortinou.

(Estava entretido a fazer publicidade ao big qualquer coisa).

Parece ou não aquele tipo?