Resposta: Ele pode dizer que sim, mas no final será apenas um neoliberal.
Vem isto a propósito da mais recente entrevista de Cavaco Silva à rádio Observador, a qual merece alguma da nossa paciente atenção.
A sua visão é um caldo de confusões, que já nem se percebe se Cavaco Silva está verdadeiramente confundido, se é apenas ignorante (da sua própria ignorância), se quer enganar meio-mundo ou, pior, se a visão redutora e autista do neoliberalismo esvazia o conteúdo da própria História, falsificando-a:
Jornalista: Hoje em dia a social-democracia parece estar muito na moda: Rui Rio é social-democrata, Marisa Matias é social-democrata, Catarina Martins do BE é social-democrata. (...) Esta social-democracia existe mesmo ou é mais uma força de expressão?
Cavaco Silva: Sabe... surpreende que algumas pessoas invoquem em tempo de eleições - devemos sublinhar isso - que são da social-democracia procurando se afastar daquelas ideologias que estão muito longe da social-democracia. Quer dizer que, em tempo de eleições, eles querem mostrar aos portugueses que, afinal, não são extremistas no sentido que têm uma ideologia próxima do comunismo e do marxismo e que preferem dizer - ou dar a entender - que estão mais próximas das ideologias que consideram a economia de mercado, a livre iniciativa, a concorrência, como os grandes motores do crescimento económico, quando essas pessoas - sabemos - são contra a livre iniciativa na Saúde, a medicina privada, que são contra as escolas privadas (...). Eu penso que seria muito fácil escrever um livro a demonstrar que essas forças políticas, incluindo o PS, não têm nada - pelo menos em Portugal - a ver com a verdadeira social-democracia.
Jornalista: Portanto, nem o BE nem o PS são sociais-democratas, isso parece-me claro no entendimento que faz da social-democracia...
Cavaco Silva: Repare, repare... São forças políticas que defendem a estatização da economia, como agora temos prova disso quase todos os dias. Eles secundarizam a concertação social. (...). Defendem um Estado grande, com impostos muito elevados. Portanto, não têm quase nada ou muito pouco a ver com a moderna social-democracia que foi aquela que eu tentei implementar em Portugal, inspirada em Francisco Sá Carneiro, no período entre 1985 e 1995. Mas mostra bem como a designação social-democracia é apelativa, é atractiva, pensam que atrai mesmo votos, criando ilusões e enganando os cidadãos. Bem...
Antes de se responder a esta saraivada, ouça-se a pergunta seguinte.
Quando questionado sobre se o programa de Passos Coelho iria no sentido de uma social-democracia moderna, Cavaco responde que esse foi, sim, um programa "da troica, negociado pelo engenheiro Sócrates". Estamos, pois, no completo delírio político. Todos se recordam das declarações de Eduardo Catroga, em Maio de 2011, de ter sido o PSD a influenciar o conteúdo do memorando de entendimento (ver a partir de 3'30); de Passos Coelho querer "ir além da troica" no sentido de uma redução mais acelerada do papel e da dimensão do Estado na economia, na redução dos direitos dos trabalhadores - tidos como rigidezes do mercado - e do desastre social que isso criou, com uma taxa de desemprego em sentido lato a atingir 25% da população activa, provocando a fuga de Vitor Gaspar (para o FMI) e de Paulo Portas (negócios mexicanos).
Ao contrário do que diz Cavaco Silva, a social-democracia não se divide entre antiga e moderna, mas entre verdadeira e falsa.
A verdadeira social-democracia sempre defendeu um papel público na provisão de bens e serviços como a Saúde e a Educação. Diria mesmo até que a verdadeira social-democracia é tributária e é influenciada pelas ideias socialistas e comunistas, lançadas desde o século XIX em nome de uma igualdade de oportunidades que o mercado por si só não garantiu - nem garante ainda -, tornando-se paradigmas dominantes de políticas públicas, seguidas por centenas de milhões de homens e mulheres em todo o mundo, medidas necessárias para pôr cobro a uma flagrante desigualdade de vidas, de repartição de riqueza. É mesmo tributária da existência de uma União Soviética, na altura farol de revolta e de esperança para os famélicos da terra capitalista, em que a social-democracia europeia surgiu como alternativa capitalista a um novo mundo em construção, quando movimentos comunistas ganhavam cada vez mais adeptos nos países ocidentais.
Recorde-se que, no pós-guerra, os partidos comunistas ou à esquerda foram dos partidos mais votados. Foi o que aconteceu em França, na Itália em 1945, 1948 ou 1953, no Reino Unido, na Bélgica, na Holanda, na Suécia, na Finlândia, etc. O Plano Marshall, a par de uma penetração norte-americana na Europa, com a criação da NATO para defender a sua aplicação, teve muito de reactivo a essa crescente implantação à esquerda. E o paradigma social saído desse pax americana visou, também, estancar essa hemorragia e salvaguarda da zona de influência capitalista.
Seguindo esses tempos - simultâneo a um poderoso movimento internacional anticolonial e anti-imperialista - as ideias hoje conhecidas da social-democracia entraram em Portugal pela mão de socialistas, de comunistas, de católicos durante a ditadura fascista, em prol de uma justiça social. Leia-se, por exemplo, o programa do PCP de 1965 e encontrar-se-á lá medidas que qualquer regime social-democrata defenderia com gosto e que, nesse momento da História europeia, ainda eram actuais: "elevar o nível de vida das classes trabalhadoras", um programa laboral básico (direito ao trabalho, à jornada de 8 horas, segurança no trabalho, assistência médica, contratação colectiva), "democratizar a instrução e a cultura" (extinção do analfabetismo, instrução primária obrigatória e gratuita e acesso das classes trabalhadoras à universidade, "ensino industrial, agrícola e politécnico gratuito aos jovens trabalhadores"), etc.
Eram os ventos da História. E mesmo o PSD português não quis ficar atrás ou ser varrido por eles. Como já se escreveu aqui, o Partido Social Democrata, criado após o 25 de Abril como PPD por deputados do partido único marcelista e liderado por Francisco Sá Carneiro - que Cavaco Silva tanto homenageia -, teve um programa em 1974 que defendia um papel crucial do Estado e a subordinação da tal iniciativa privada ao bem colectivo.
Aquilo que Cavaco Silva considera hoje como apanágio da social-democracia, são antes conceitos instrumentais entroncados num ideário neoliberal, que nada tem de social-democrata. E que surgem bem mais tarde, para cuja implantação Cavaco Silva teve - de facto - um papel essencial.Essas ideias - redução do papel de provisão pública, livre iniciativa em plena concorrência através dos mercados e em que o Estado apenas regula - foram veiculados em Portugal, primeiro no início dos anos 70, numa página económica do Diário de Notícias - em que estava um grupo de alguma forma ligado ao regime marcelista como Diogo Freitas do Amaral, Adelino Amaro da Costa, Augusto Athaíde, Alberto Xavier, Duarte Ivo Cruz e Miguel Puppo Correia; desde 1976, foram veiculadas sobretudo por instâncias internacionais como o FMI (a que PPD se associou como apoio político anti-nacionalizações após o 11/1/1975); ainda a reboque do FMI, foram veiculados através da criação da Universidade Nova de Lisboa em 1978 muito ligada aos Estados Unidos e que agregou um grupo de doutorados em universidades dos EUA e noutros países (onde estava também Cavaco Silva); foram-no ainda através da acção política contra a Constituição de 1976 levada a cabo pelo Governo da AD (criado em 1980); através da segunda intervenção do FMI (1983/85) que por acaso coincide com a criação no jornal Semanário ligado a uma direita e extrema-direita do PSD, onde estavam, entre outros, Marcelo Rebelo de Sousa, José Miguel Júdice, Vítor Cunha Rego (segundo Rui Mateus, com ligações à CIA desde antes do 25 de Abril), jornal que abriu uma coluna - "A Mão Invisível" - a um grupo de economistas da Nova, de pendor abertamente neoliberal e cujos alguns escribas - Miguel Beleza, Jorge Braga de Macedo, António Borges, nomeadamente - viriam a ter um papel institucional durante os governos Cavaco Silva.
Tudo isto aconteceu sob o chapéu do nome do Partido Social Democrata. Mas além do PSD, o próprio Partido Socialista se viu infectado por estas ideias neoliberais.
Através das suas políticas laborais incentivadas pelo FMI (em 1977 e 1983/85), através da sua veia europeísta, nomeadamente pelo desempenhado de Vítor Constâncio, na revisão constitucional de 1989 que abriu as portas ao desmantelamento do poderoso sector público; pelos mandatos de Guterres e Sócrates, que seguiram obedientemente as orientações económicas e laborais já robustecidas e armadas - como cimento - das instâncias comunitárias.
Se o mundo desigual impera hoje, deve-se sim à não aplicação - no mínimo - de ideias social-democratas.
Impera, sim, um ideário em que o mundo dos trabalhadores - quase como vingança tardia da esperança vivida no pós-guerra - se tornou a variável de ajustamento em proveito das empresas. O recuo do papel do Estado na protecção do mundo laboral, o recuo do poder de compra dos seus salários e do seu peso no rendimento criado, o prolongamento e fluidez do tempo de trabalho, a insegurança contratual, a fragilidade no desemprego, tudo redundando na completa desesperança e desigualdade, campo fértil do advento de forças da extrema-direita. E tudo ao arrepio do preconizado pela social-democracia.
Cavaco Silva está, pois, enganado. Ou quer enganar.
É ele, como defensor de um ideário promotor de desigualdades quem está bem longe da social-democracia. A social-democracia moderna - que de moderna apenas tem o facto de ser a versão requentada do velho mundo desigual - é um logro e um engano para os cidadãos. Pior: é o trampolim para o aprofundamento e perpetuação dessas políticas cuja ineficácia social reforça o discurso da necessidade de aprofundamento de mais "reformas" que consolidam uma injusta repartição do rendimento e a exploração do homem pelo homem (tão frisada no Manifesto do Partido Comunista de Karl Marx de 1848!).
E por isso, não choca que velhos dirigentes como Rui Rio, Cavaco Silva ou Passos Coelho, não se importem - por pensamento ou oportunismo - de aliar-se à extrema-direita que, no final, defende as mesmas ideias neoliberais.
Lembram-se do jornalista João Adelino Faria da RTP a entrevistar o líder do partido da extrema-direita? E do seu do ar escandalizado ao reparar - tardiamente - que o programa da extrema-direita queria acabar com as escolas e a saúde públicas? Será que nunca reparou no programa neoliberal seguido desde os anos 80 por sucessivos governos?
É o PSD dirigido por estes personagens que está cada vez mais longe da social-democracia. E deixa o campo aberto para que outros o preencham.
17 comentários:
Sempre fica por dizer o quanto do parasitismo do Estado contribui para o empobrecimento geral.
Quem se apodera de mais de 40% do produto nunca é chamado a prestar contas da sua eficiência.
Para sustentar o monstro sempre os 'verdadeiros' sociais democratas estão dispostos a tudo sacrificar.
O Sócrates vítima do Catorga!
A troika instrumento do Catorga!
Regressa Sócrtes, está perdoado.
Um longo mas muito bem estruturado post de João Ramos de Almeida.
Sobra a proverbial ignorância/desonestidade/trapaça de Cavaco Silva
( e, para infelicidade de quem lê, sobrepõe-se por vezes pela boca de Cavaco, alguns dos ditos de Jaime Santos)
No meu tempo, os vendedores do conto do vigário eram uns rotos que andavam pelas ruas a tentar vender a torre de Belém aos recém chegados à capital.
Agora, o conto do vigário tem requinte e tem canal aberto na TV.
O embuste não pode ser eliminado pelo bom senso.
O embuste funciona como erva daninha.
Alastra e abafa a relva.
"livre iniciativa em plena concorrência através dos mercados e em que o Estado apenas regula "
Ó João, desculpe? Apenas "regula"? Plena "concorrência"? Já que é para bater na propaganda, bata com força. Regula o mercado para que os incumbentes se mantenham e tenham menos obrigações, de preferência com renda do estado, e criem emprego através da porta giratória.
Qual estado mínimo, o sistema só se mantém de pé graças a este.
Jose tem por Catroga aquela ternura que já tinha por um verdadeiro crápula da área, um tal de António Borges
Agora disfarça e chama por Sócrates.
Assim se tenta desfazer a História e construir a estoriazinha de outro terratenente. De forma um pouco histérica,confesse-se
(Há pouco jose louvaminhava os 1% que, coitados, estavam rodeados de medíocres. Defendia os parasitas. Agora quer sacudir a água do capote onde alberga os mesmos parasitas. Enquanto reza pelas eficiências uberalles desde que seja para sustentar os mesmos parasitas)
"A verdadeira social-democracia sempre defendeu um papel público na provisão de bens e serviços como a Saúde e a Educação."
E desde quando Cavaco defendeu a privatização das escolas e dos hospitais?
Que salada de letras que é esta posta
Os 1% da igualdade do socialismo, não só são mais iguais, como dizem aos iguais o quanto iguais têm de ser.
Mas as vocações para a servidão nisso encontram um inefável conforto.
E as vocações para exercer o totalitarismo erguem a bandeira da igualdade com uma mão enquanto na outra escondem a do cetro da ideologia da opressão.
O que se passa é a frustração das hostes laranja no país laranja. Uma posta brilhante do João e ficam assim como que entrevados
Caro José.
Medir o papel do Estado e a sua importância ou irrelevância pelo peso da despesa público no PIB é pior forma de abordar o assunto.
E se estivesse atento ao texto - eu sei que é longo - veria que Sócrates não é poupado.
Agora digo-lhe duas coisas: 1) do que Sócrates é responsabilizado (ter gasto demasiado com a Função Pública) está ainda longe de ser provado o seu efeito nefasto sobretudo em conjuntura de arrefecimento; 2) se a sua intenção é responsabilizá-lo pela entrada da troika, está bem equivocado: o resgate serviu salvar bancos alemães e franceses. E uma coisa há que admitir: Sócrates resistiu à entrada à troika, ao contrário de Passos Coelho ou Cavaco Silva. E quanto a resopnsabilidades, leia a História e verá que Cavaco Silva foi bem responsável foi pela entrada do FMI em 1983.
Caro Paulo Marques,
Apenas estava a referir-me à teoria geral neoliberal.
Cara Ana Maria,
Referia-me às declarações feitas por Cavaco Silva quanto à educação e saúde públicas r privadas.
E não se esqueça:
1) da alteração da Lei de Bases da Saúde, no mandato de Cavaco Silva, que colocou o Estado a incentivar o sector privado naquele que é um dos sectores mais LUCRATIVOS, concorrendo para a desarticução do SNS.
2) Consulte este link
https://www.pordata.pt/Portugal/Alunos+matriculados+no+ensino+privado+total+e+por+n%c3%advel+de+ensino-1004
Interessante! Sou social-democrata e votei no PS! Até 2006! Desde então voto no BE! Ser social-democrata hoje (verdadeiro!) é, para a Tina neoliberal, ser um perigoso radical de esquerda! Mexilhão
Pobre Jose
Jose, depois da sua defesa acérrima dos porno-ricos, dos tais 1% rodeados, segundo ele, por medíocres, tenta redimir-se. Ele, cujo discurso fazia lembrar o discurso dum ariano a arengar às massas em prol dos arianos, dos porno-ricos e dos tais 1% , não tem outro remédio senão tentar emendar a mão
Foi forte. Os tiques de classe assumiram um valor grotesco, anedótico e perigosamente extremista. Algum amigo aconselhou-o a alguma moderação.
E jose não teve outro remédio. E, não sem alguma cobardia, resolve apesar de tudo mais uma vez tentar inovar ideologicamente
E é vê-lo a falar no "1% da igualdade do socialismo"
Notável exercício contorcionista dum sujeito que passa aqui os dias a empernar com o 1%
Ahahahah
(Quanto à salada do ana maria, já demos. Aqui e na holanda)
Tem graça. Logo em 2006 que não houve eleições legislativas.
Sem a necessidade de uma revolução, afirmou Bernstein, a ética pode ser restaurada para o socialismo num sistema capitalista, com o Estado como um bem essencial para os trabalhadores. Assim nasceu a Social Democracia...
Que o José é um cobarde rancoroso já eu o sei há muito
Ainda hoje estou à espera que ele se queira encontrar comigo para gozar, no mundo real, como aqui gozou com o facto do meu avô ter sido torturado pela PIDE
mas dum cobarde rancoroso nunca há novidades éticas
As contas são prestadas de quatro em quatro anos (chamam-se eleições). Agora quem se apodera dos outros 60 % (setor privado) nunca presta contas.
Essa das contas serem prestadas de 4 em 4 anos...
E essas análises sobre o PIB ... nem o Bernstein se lembrou delas
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