O caso referia-se à RTP, mas é extensível ao país. Disse ele:
Relativamente às situações de outsourcing, quando elas são falsas situações de contratação, devem ser avaliadas no âmbito do PREVPAP [Programa de Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários na Administração Pública]. Aliás, uma das instituições que referiu – a RTP – antes do PREVPAP ter sido lançado já tinha sido alvo de uma acção da ACT que identificou um conjunto de situações ilegítimas e que eu tinha expectativa que fossem resolvidas no âmbito do PREVPAP. Está a ser difícil, mas estou convicto que se vai resolver. Haverá aqui algumas zonas de conflito, mas obviamente quando a contratação de uma empresa significa a colocação noutra de pessoal que está sob orientação, sob a direcção, tem um trabalho regular para essa segunda, essa pessoa é funcionário da segunda instituição e não da primeira. Sobre isso eu não tenho nenhuma dúvida e espero que é isso que vai acontecer.
Ora, o que é que se passa?
A RTP, como muitas empresas nacionais, recorre ilegalmente ao regime de cedência de trabalho temporário para o preenchimento de vagas de trabalho permanente. Geralmente, uma empresa A (como acontece com a RTP) contrata em outsourcing uma empresa B de trabalho temporário que coloca nas instalações da empresa A um seu trabalhador - que até pode ter um contrato de trabalho permanente nessa empresa de trabalho temporário. Por causa disso, a mesma função na empresa A é desempenhada por trabalhadores com condições contratuais bastante distintas... durante anos! Isso acontece na RTP.
Esta situação é ilegal porque o Código do Trabalho estipula muito claramente, nos seus artigos 140º e 175º, que o trabalho temporário - como um mero contrato a prazo - "só pode ser celebrado para satisfação de necessidade temporária da empresa e pelo período estritamente necessário à satisfação dessa necessidade".
O que quer dizer satisfação de necessidade temporária da empresa? A lei é igualmente clara (artº140, ponto 1):
a) Substituição direta ou indireta de trabalhador ausente ou que, por qualquer motivo, se encontre temporariamente impedido de trabalhar;
b) Substituição directa ou indirecta de trabalhador em relação ao qual esteja pendente em juízo acção de apreciação da licitude de despedimento;
c) Substituição directa ou indirecta de trabalhador em situação de licença sem retribuição;
d) Substituição de trabalhador a tempo completo que passe a prestar trabalho a tempo parcial por período determinado;
e) Actividade sazonal ou outra cujo ciclo anual de produção apresente irregularidades decorrentes da natureza estrutural do respetivo mercado, incluindo o abastecimento de matéria-prima;
f) Acréscimo excepcional de atividade da empresa;
g) Execução de tarefa ocasional ou serviço determinado precisamente definido e não duradouro;
h) Execução de obra, projeto ou outra atividade definida e temporária, incluindo a execução, direção ou fiscalização de trabalhos de construção civil, obras públicas, montagens e reparações industriais, em regime de empreitada ou em administração direta, bem como os respetivos projetos ou outra atividade complementar de controlo e acompanhamento.
Além dessas características do que deveria ser um contrato a prazo - mas que a maioria das empresas abandalha - os trabalhos temporários podem ainda abranger outras situações (art 175º) : uma "vacatura de posto de trabalho quando decorra processo de recrutamento para o seu preenchimento"; uma "necessidade intermitente de mão de obra, determinada por flutuação da atividade durante dias ou partes de dia" ou "de prestação de apoio familiar direto, de natureza social, durante dias ou partes de dia"; e a "realização de projeto temporário, designadamente instalação ou reestruturação de empresa ou estabelecimento, montagem ou reparação industrial".
Ora, nada disso acontece.
Pior: a lei estipula que são nulos todos os contratos de cedência que sejam feitas por empresas de trabalho tmporário "não titular de licença para o exercício" (artº 173º, ponto 1). Ora, a RTP tem - além de trabalhadores temporários - pessoal contratado, não através de empresas de trabalho temporário, mas de empresas do sector de comunicações que os "cedem" à RTP. E isto acontece por muitos anos.
Mais ainda: a duração desse contrato temporário (artigo 175º, ponto 3) "não pode exceder o período estritamente necessário à satisfação da necessidade do utilizador " e que "não é permitido celebrar contrato de utilização de trabalho temporário para satisfação de necessidades que foram asseguradas por trabalhador cujo contrato tenha cessado nos 12 meses anteriores por despedimento coletivo ou despedimento por extinção de posto de trabalho".
Claro que para este tipo de tarefas nunca se esperaria que fosse muito tempo, mas o próprio Código cria um alçapão ao prever que pode ir até... dois anos!
Ora, os contratos temporários são usados e abusados para tudo e durante o tempo que a empresa A quiser. Os trabalhadores têm medo de denunciar esta situação porque temem perder um emprego que, sendo oficialmente temporário, se prolonga - precariamente - como num emprego quase permanente, embora em condições lastimáveis, mas que pode acabar de um momento para o outro.
Por isso, a declaração do ministro é da maior importância.
Mas entra em contraponto com as funções desempenhadas pelo seu camarada do PS, membro da comissão nacional, Vitalino Canas que, até Maio passado e desde 2007 (!), foi o provedor das empresas de trabalho temporário. Na sua despedida, os dirigentes da Associação Portuguesa das Empresas do Setor Privado e de Recursos Humanos (APESPE RH) prestaram rasgados elogios pelo seu trabalho ao longo de uma década. Ou seja, pouco antes da reforma do Código de Trabalho:
O trabalho desenvolvido por Vitalino Canas enquanto Provedor da Ética Empresarial e do Trabalhador Temporário foi da máxima importância, enquanto agente dinamizador do diálogo entre trabalhadores e empresas, procurando promover junto destas o reforço das boas práticas de gestão do trabalhador temporário. É necessário continuar a trabalhar com as diversas entidades responsáveis e autoridades públicas no sentido de promover uma maior credibilização do setor. (...) Somos fieis aos nossos princípios e, por isso, vamos continuar a agir no sentido de desenvolver mais iniciativas que respeitem os direitos dos trabalhadores e monitorizem a ética empresarial das empresas de trabalho temporário. Este é um pilar fundamental da nossa forma de atuar.”
Tem se visto para que serviu a função de "credibilização do sector". Mesmo nas entidades públicas.
[Actualização a 21/11/2019: Na véspera de um plenário de trabalhadores, a administração da RTP anunciou a integração nos quadros de 130 trabalhadores precários... ]
7 comentários:
Não percebi:
- Admitindo que as empresas de trabalho temporário são legais; quem contrata um trabalhador a essas empresas tem que demonstrar que o trabalho é temporário?
E no segundo caso, se não o fizer não pode contratar?
Mais uma vez parabéns pelo trabalho de João Ramos de Almeida
Despedido do Público aqui há uns tempos. Que prefere nao jornalistas. Ou plumitivos ao serviço de outros interesses
Creio que tem aqui uma investigação que deveria ser lida por todos nós e principalmente por aqueles que se passeiam nos claustros da Assembleia da Republica, não esquecendo deputados e os sucessivos governantes.
Tem de facto alguma relevância, pois alguns ministros parecem ministros saídos do antigo regime.
Mais não digo porque posso ser multado ou preso.
Caro José,
Parece evidente que, caso as necessidades da empresa não se encaixem nas previstas na lei, esses trabalhadores não poderão ser contratados ao abrigo dessa figura. Ponto.
Caso o sejam, os seus contratos são nulos e as autoridades devem entender que o contrato foi firmado pela empresa utilizadora e de forma permanente.
Apenas um entendimento muito "flexível" da lei, de forma muito compreensível para com as "necessidades" das empresas, é que - sob melhor opinião - a ACT ou os tribunais deverão aceitar essas realidades "temporárias". Mas como tudo está, já nada me espanta.
Por este andar as empresas subcontratadas não o podem ser senão por um tempo limitado.
Se subcontrato uma empresa de limpeza para satisfazer essa necessidade permanente, e digo em permanência ao pessoal dessa empresa onde devem limpar, arrisco-me a ter que a integrar nos quadros?
Em resumo, a permanente ambição de submeter a gestão das empresas às ideologias intrusivas que através da legislação impõem um modelo de gestão condicionada ao suposto bem-estar de quem lá trabalha, fazem do mercado de trabalho uma espécie de mercado de jorna virado ao contrário - quem cria um posto de trabalho permanente, perde-o para o primeiro que apareça.
O facto de as empresas de trabalho temporário (ETT) serem "legais" (estarem licenciadas pelo IEFP para exercerem tal actividade depois de provarem reunir os requisitos previstos no DL 260/2009, na redacção da Lei 146/2015) não significa não "legaliza" automaticamente como contrato de trabalho temporário a relação de trabalho entre o trabalhador cedido pela ETT e o Utilizador.
O que "legaliza" o contrato de trabalho temporário como tal é, para além dos reatantes requisitos (prazos, formalização, etc.) referidos no post (mais uma vez excelente de João Ramos de Almeida) é, essencialmente, o motivo da contratação ser um daqueles (e só daqueles) elencados no post (Art.175 e Art.140 do Contrato de Trabalho).
Posso garantir que é este o entendimento que (pelo menos) a ACT tem por referência na sua acção.
Que trabalho foi esse que Vitalino Canas desenvolveu com grande saber e mestria? O de Vieira da Silva todos sabemos qual foi.
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