A queda do preço do petróleo pode constituir um sinal do fim iminente de um período de juros anormalmente baixos. Se assim for, as consequências para a dívida pública portuguesa serão directas e imediatas.
Discute-se por estes dias na Assembleia da República a questão da dívida pública portuguesa, da sua (in)sustentabilidade e da bondade ou não da sua reestruturação. É talvez o debate fulcral - ou pelo menos um dos debates fulcrais - da economia portuguesa, que não vai deixar de ganhar importância nos tempos que se avizinham.
Aqueles que, tal como eu, defendem a reestruturação fazem-no principalmente por considerarem que a dívida pública portuguesa é impossível de pagar e que, por esse motivo, embora a imposição soberana de uma reestruturação não seja um acto de somenos importância ou isento de consequências, é obviamente preferível à alternativa: manter a economia sujeita à pressão da austeridade e à sangria dos juros durante mais uma série de anos até desembocarmos finalmente no mesmo desenlace.
Em contrapartida, aqueles que se opõem à reestruturação consideram, em primeiro lugar, que as consequências da reestruturação são tão danosas que não devem ser consideradas. Mas uma vez que não podem fugir eternamente à questão da sustentabilidade, têm também de adoptar uma de duas posições: ou que a dívida pública portuguesa pode ser paga; ou então que, embora não possa ser paga, devemos confiar na gradual concessão de reestruturações discretas, em jeito de benesses, por parte dos credores - desde que não se agite muito as águas e que não se ponha em causa o controlo dos credores sobre o processo.
Esta segunda versão é com certeza a mais sofisticada e, diga-se, tem até alguma correspondência com a realidade. Percebeu-se já que a forma como os poderes europeus pretendem enfrentar a crise nos próximos tempos passa por uma combinação de expansão monetária, reformas estruturais (i.e. continuação da neoliberalização dos mercados de trabalho e produto) e cedências ao nível da folga orçamental (para países como França e Itália) ou de reestruturações discretas da dívida (para países como Portugal ou a Grécia). Estas cedências funcionarão, assim, como válvula de escape para a pressão social e política, a aplicar judiciosamente de modo a que, em cada momento, a opção da "bomba atómica" do default soberano não pareça suficientemente atractiva face às dores da austeridade.
O que sucede, porém, é que este é um jogo difícil de controlar politicamente durante muito tempo, pois, como é óbvio, as populações acabam por fartar-se do sado-austeritarismo, manifestando a sua revolta de diferentes formas - incluindo no plano eleitoral. Quer assumam formas mais benignas (p.e. Syriza, Podemos) ou mais malignas (p.e. Front National), os protagonistas no plano partidário europeu desta reacção popular criarão inevitavelmente dificuldades cada vez maiores às pretensões, por parte das elites europeias, de prolongar indefinidamente a estratégia que referi atrás.
Mas também no plano estritamente económico há uma série de factores que criarão certamente dificuldades de monta à manutenção do status quo durante muito mais tempo. E a mais óbvia é provavelmente a dependência desse mesmo status quo relativamente à baixa histórica das taxas de juro - certamente o único motivo pelo qual ainda é possível a alguns argumentar, com cara séria, que a dívida pública portuguesa tem hipóteses de sustentabilidade.
Como sabemos, a sustentabilidade da dívida depende do seu stock total, da taxa de juro, do nível de inflação e do nível de crescimento económico. Com uma economia deprimida há anos e condenada - a manter-se o status quo - a austeridade sem fim à vista, num contexto de quase-deflação generalizada e dado o nível que a dívida pública portuguesa atingiu (cerca de 130% do PIB), o único motivo pelo qual o reconhecimento da sua insustentabilidade ainda não se impôs de forma inelutável foi precisamente o facto dos juros terem caído para níveis sem precedentes: a LIBOR a seis meses anda pelos 0.35%, quando em 2007 era superior a 5%.
Esta queda histórica dos juros decorreu principalmente da avalanche de liquidez provocada pela resposta monetária norte-americana à crise de 2008 em diante (o famoso "quantitative easing"), que teve como efeito secundário a formação de exuberantes bolhas especulativas em inúmeros mercados de activos financeiros. E a formação de uma bolha especulativa especificamente no mercado da divida pública dos países da periferia europeia foi adicionalmente despoletada pelo "efeito Draghi": o anúncio da disponibilidade por parte do BCE para, se necessário, adquirir quantidades ilimtadas de titulos dessa mesma dívida soberana no mercado secundário - anúncio esse que criou os níveis de confiança especulativa necessários e suficientes para a emergÊncia de uma dinâmica especulativa.
Acontece que um destes factores subjacentes fundamentais tem vindo a desaparecer: as torneiras monetárias norte-americanas começaram recentemente a fechar, quer com o fim do quantitative easing no passado mês de Outubro, quer com o anunciado aumento das taxas de juro directoras do Fed no próximo ano. E os efeitos desta contracção monetária começaram desde logo a fazer-se sentir. Na reacção imediata de alguns mercados emergentes ao simples anúncio do fim do quantitative easing logo em meados de 2013 (o chamado "taper tantrum"). Na evolução da cotação do dólar, que desde Maio passado registou uma valorização de quase 10% face ao euro. Mas também na queda abrupta do preço do petróleo a que temos vindo a assistir nos últimos meses, para a qual têm certamente contribuído alguns factores especificamente relacionados com o mercado energético, mas que, a meu ver, é mais convincentemente interpretada enquanto sintoma da antecipação da iminente subida das taxas de juro a nível mundial.
Se esta interpretação for correcta e se a tendência antecipada pela evolução do preço de petróleo se verificar, podemos estar perto de uma nova transição para um regime de juros mais elevados, que despoletará certamente a deflação de uma série de bolhas especulativas, das commodities aos mercados bolsistas aos títulos da dívida pública. Até porque é difícil acreditar que o quantitative easing europeu planeado para os próximos tempos tenha dimensão e tracção suficientes para compensar a contracção monetária norte-americana.
É por isso que a estimativa apresentada hoje pelo Expresso dos impactos da queda do preço do petróleo ao nível do crescimento económico e das contas públicas portugueses me parece contar apenas uma parte da história. Pois se o impacto na estrutura de custos das empresas, no orçamento das famílias e na despesa directa do Estado é certamente positivo, esta queda do preço do petróleo pode bem estar a sinalizar a subida iminente dos juros a nivel mundial, o final da bolha especulativa no mercado da dívida pública e, consequentemente, o fim da folga anormal com que o governo tem vindo a contar a esse nível.
Em todo o caso, se isso servir para tornar mais rapidamente evidente a insustentabilidade da dívida pública portuguesa e permitir que arrepiemos finalmente caminho, tanto melhor. Mais vale um bom desengano que vivermos toda a vida enganados.
(a minha crónica de ontem no Expresso online)
9 comentários:
Admiro a ousadia da “previsão” ou, para responsabilizar menos, do palpite, mas eu seria muito mais prudente. Até porque alguns dos pressupostos me parecem errados ou, no mínimo, muito duvidosos.
É verdade que os EUA, e também o Reino Unido, fecharam o quantitative easing, mas é extremamente improvável que destruam a liquidez entretanto criada, com risco de perderem os efeitos obtidos. Além disso, agressivas políticas de criação monetária prosseguem noutros lados (Japão, em perspetiva na Europa), bem como a acumulação de reservas de divisas na China e noutros países emergentes.
A liquidez mundial, que aliás se tem caracterizado por aumentar (praticamente) sempre, não vai reduzir no próximo ano. Pelo contrário, apesar da travagem da reserva federal, é até provável que continue a crescer mais rápido que o PIB mundial.
Com a insuficiência de crescimento mundial, a estagnação europeia, a desaceleração dos BRICS, essa massa de liquidez não encontra investimentos suficientemente rentáveis na esfera produtiva e desloca-se para a esfera financeira, nomeadamente para a compra de dívida pública, inflacionando os preços e fazendo descer as taxas de juro. A situação das baixas taxas de juro da dívida europeia, incluindo a portuguesa, pode durar anos.
Só não se pode afirmar que durará, porque, mesmo sem uma severa recaída do crescimento mundial ou as sempre possíveis complicações nacionais, a fluidez da massa global de liquidez pode levar ao deslocamento do tipo e do lugar das aplicações financeiras, alterando radicalmente a multipolaridade do investimento global. Com o empolamento de bolhas nalgumas classes de ativos e o desinchar de bolhas noutras.
Não se fala teoricamente. Assistimos a isso ao longo do ano passado. O capital especulativo, em apreciável medida, fugiu dos países emergentes para a zona euro, incluindo a sua periferia. Como seria de esperar, os preços dos ativos dos primeiros caíram e as suas moedas depreciaram.
Mas é muito possível – para não fizer provável, o que seria sempre arriscado depois da ressalva feita – que as taxas de juro da dívida portuguesa se mantenham baixas, e até mesmo que, com oscilações, continuem a diminuir. Até porque, apesar do efeito da liquidez ser global, a influência regional também se faz sentir. E a deflação (ou desinflação) europeia encaminha o BCE para uma maior criação monetária, com a aquisição desesperada de ativos financeiros, especialmente de dívida pública, nas mãos dos bancos (quantitative easing), o que contribuirá para a descida das yields das obrigações portuguesas.
Se essa descida se concretizar, é altamente provável que o Governo emita dívida de longo prazo para antecipar o pagamento dos reembolsos ao FMI. O que não deixará de apresentar como uma vitória política: Portugal antecipa o pagamento da dívida da troika! Na verdade, tratar-se-ia apenas de uma substituição, ligeiramente vantajosa do ponto de vista financeiro, de dívida oficial por dívida dos investidores. A maior vantagem é que é certamente muito mais fácil renegociar e reduzir a dívida com os investidores institucionais do que com o FMI.
É algo que a esquerda – a esquerda a sério, que quer romper com o neoliberalismo, não a esquerda que branqueia as responsabilidades e alimenta ilusões num governo do PS – tem que estar preparada!
HM
Correto,
Reestruturação essa, que já tem vindo a ser feita ao bocadinhos.
Rui Silva
Rui Silva:
Não percebo porque é que, se a reestruturação tem vindo a ser feita aos bocadinhos, o governo e os seus apaniguados não explicam a inviabilidade da outra reestruturação, a pesada, pedida pelos do contra, contrapondo esta «leve»?
Porque é que ficam tão enxofrados quando ouvem falar de uma coisa que dizem estar a fazer?
No Insurgente, Mário Amorim Lopes (que segundo vejo no Google será economista e talvez mesmo professor assistente de economia) escreve estas belas palavras:
«O Quantitative Easing é, neste aspecto, neutro. Não consiste na impressão de fresh money, mas simplesmente na cedência de liquidez, aceitando (quase) qualquer activo como colateral. Ou seja, não entra dinheiro novo na economia.»
Eu sou arquitecto, tenho desculpa. Mas como é que é possível um economista escrever estas palavras. Quando economistas não sabem como funciona o dinheiro, estamos mesmo mal. E é com isto, com gente assim a plantar ideias na opinião pública, que temos que lidar. Estou sem palavras.
The Economist explains: What is quantitative easing?
Positive Money: How quantitative easing works.
Tendo em conta a situação grega, a bolha da dívida pode estar muito petto de rebentar. Os preços dos activos não têm qualquer relação com os fundamentais da nossa economia.
As obrigações não valem mais do 30 cêntimos em caso de reestruturação.
Mas alguém liga ao que escrevem no blog Insurgente.
Quantitative easing implica o aumento da base monetária logo o efeito está longe de ser neutro.
Esse senhor está a confundir quantitative easing com a Marginal lending facility em que o BCE empresta dinheiro a troco de colateral.
No caso do Securities Markets Program, por exemplo, não é QE porque as compras são esterlizadas pelo BCE pelo que não há um aumento de liquidez no mercado.
No caso do QE há criação de novo dinheiro logo o efeito não é neutro. A base monetária aumenta excepto se o banco central levasse a cabo uma operação de esterlização para absorver a liquidez criada.
http://oinsurgente.org/2014/12/18/qe-nao-e-money-printing/
Daniel Carrapa, este artigo do insurgente vai quase de encontro ao que é dito nesse link do positivemoney.
A ideia é que o dinheiro (quase) não chega à esfera produtiva. O efeito do QE não é nulo, é só pequeno.
Há um aumento da base monetária, mas a oferta de moeda pode não ser muito afetada.
É um bocado ridículo que no seu link do post do Mário Amorim, ele ironize com Keynes, porque, segundo sei, a "armadilha de liquidez", que antigamente não passava de um conceito teórico e improvável, passou a fazer parte da realidade, e a justificar a ineficácia da política expansionista de alguns bancos centrais. Nessa brincadeira que ele faz com Keynes, acho que é um tiro no pé.
Pior ainda se o Mário Amorim for um professor de economia, porque deste lado está um estudante.
E a Dívida Odiosa ? É para pagar e calar?...............
A inqualificável "ignorância" do amorim lopes é a ponta do iceberg que esconde os axiomas neoliberais e seus representantes emplumados
E são estes tipos que ocupam os lugares de professores e de doutrinadores económicos
Quanto aos "bocadinhos" pelas quais parece que está a ser feita e reestruturação...
Esta frase só pode ser mesmo uma piada de mau gosto.Ou a repetição um pouco tonta da propaganda governamnetal dita em voz off,enquanto afirma solenemente exactamente o contrário.
De
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