Este é o meu desejo para 2015: que os portugueses, enquanto comunidade de destino partilhado, se apercebam dos desafios que o futuro colectivamente lhes reserva. E que isso sirva para, finalmente, tomarmos decisões próprias de uma democracia madura – sejam elas em que sentido for (não há decisões relevantes que agradem a todos).
Talvez pareça demasiado desejo para um ano de eleições. Diz-nos a experiência que a sofisticação e a clareza dos debates que importam vai diminuindo na proporção directa do tempo que falta para o dia do voto. Como se não bastasse, o quadro político português é hoje pouco propício a clarificações.
A direita, que nos últimos 40 anos sempre gostou de se apresentar como o lado pragmático e realista do sistema político, nunca foi tão ideológica como hoje. Para esta direita, se a realidade não se coaduna com o modelo que imaginam para o mundo, o erro só pode ser da realidade – nunca do modelo. Por si só, isto bastaria que o seu contributo para a reflexão colectiva que o país necessita fosse sempre dominado por abstracções pouco úteis. Para mais, PSD e CDS estão empenhados em mascarar o falhanço da estratégia de austeridade prosseguida nos últimos quatro anos. Até às eleições, daqui só se pode esperar propaganda e cara de pau (sendo nisto mestre o líder do CDS-PP).
O PS, por seu lado, parece saber bem os desafios que enfrentamos. Tão bem que o seu novo líder não pára de dar sinais contraditórios sobre a estratégia de alianças para um futuro governo, ao mesmo tempo que se abstém de afirmar qualquer coisa de concreto sobre a estratégia de governação que pretende seguir. Ambos são sinais das dificuldades em encontrar um discurso que não comprometa votos - uma preocupação que não se coaduna com um discurso de verdade sobre as escolhas difíceis que temos pela frente.
À esquerda do PS o cenário é só ligeiramente mais favorável a uma clarificação dos desafios que se colocam ao país. Tal como tem acontecido com as esquerdas mais radicais noutros países europeus, PCP e BE vão pondo o dedo na ferida, apontando os constrangimentos que enfrentamos e o que eles significam na prática. No entanto, o seu discurso é facilitado pelo pressuposto de que não terão (tão cedo?) de enfrentar a responsabilidade de governar o país, levando a que o pé fuja demasiadas vezes para a demagogia.
Outros países europeus, perante semelhantes bloqueios nos respectivos sistemas políticos, viram surgir novos partidos e movimentos determinados em fazer da clarificação das escolhas o aspecto central do debate político. Em Portugal ainda não vemos isto acontecer. Invariavelmente, os projectos políticos alternativos que surgem com algum impacto mediático tendem a afirmar-se através de um populismo preguiçoso, assente no ataque à ‘casta dos políticos’ ou, na melhor das hipóteses, na ideia pueril de regeneração do sistema através de novos métodos de organização partidária. A receita vai valendo alguns apoios, mas continuam por enfrentar as questões decisivas: o que fazer perante uma dívida insustentável, como recuperar a perspectiva de um desenvolvimento avançado numa Europa que nos é essencialmente desfavorável, como reagir à chantagem dos poderes europeus, como mobilizar a população para a consciencialização da situação em que nos encontramos.
Vale-nos, assim, a esperança dos choques externos. Começamos 2015 com grandes incertezas sobre o futuro da Europa e do Mundo. Dentro de um mês a Grécia vai a votos, ameaçando desestabilizar a paz podre europeia. A queda do preço do petróleo parece um bálsamo, mas traz consigo instabilidades geopolíticas de consequências imprevisíveis. Nas origens da baixa do preço do petróleo surge uma alteração da política monetária dos EUA, que pode ser o início do fim dos juros baixos - e, com ele, o rebentamento de várias bolhas especulativas. Enfim, o mundo não pára, malgrado a tendência do sistema político português para suspender a realidade sempre que eleições se aproximam.
Haja esperança, 2015 ainda pode vir a ser um ano de clarificação. Boas entradas!
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22 comentários:
A queda do preço do petróleo é fundamentalmente um problema de oferta e procura a nível mundial, com o inegável contributo, pelo lado da oferta, do forte incremento da produção de petróleo não convencional nos EUA e, pelo lado da procura, da estagnação ou mesmo desaceleração do crescimento mundial (e algum ganho de eficiência energética). Sem prejuízo da consideração de factores subsidiários, como a recusa deliberada de baixar os níveis de produção, para reduzir o excesso da oferta mundial, por parte da Arábia Saudita.
O preço de petróleo está em queda há já mais de meio ano. As alterações da política monetária nos EUA ainda não produziram qualquer elevação nas taxas de juros americanas.
Roça a indigência mental atribuir a este factor a queda do preço do preço do petróleo, que desce em dólares (como é cotado internacionalmente) bem como em qualquer outra moeda.
«o falhanço da estratégia de austeridade» é o dogma da esquerda!
Que a austeridade (que até hoje consente défice e endividamento) seja a estratégia dos credores, imposta sem remissão possível – que não a alternativa da miséria – não cabe nessas cabeças bem-pensantse que há muito decretaram não ser a pobreza coisa deste tempo.
«como mobilizar a população para a consciencialização da situação em que nos encontramos» é o esforço maior de quem não sabe como sair dessa situação que não seja começando por ignorá-la, varrendo a sívida, mantendo um insustentável Estado, garantindo que mais e melhor do mesmo é possível.
E sempre saberão dizer que o esforço que levantou o Estado em ditadura não é possível repetir-se em democracia, porqu a democracia é por definição a abumdância, porque essa é a vontado soberana do povo, e assim deve ser, e cabe aos dirigentes seguir a malta.
Para que não restassem dúvidas sobre a sua recusa de qualquer forma de indigência mental, o anónimo poderia ter-se dado ao trabalho de ler o texto de Jeffrey Frankel que linkei no post - e que mostra que os factores de oferta e procura de petróleo são muito menos relevantes do que habitualmente se julga para explicar as variações do preço.
José,
ignorar não é clarificar, nisso estamos de acordo. Dizer que mais e melhor do mesmo é possível sem custos seria ignorar a realidade, com certeza. Tal como o é sugerir que existe uma alternativa à pobreza prosseguindo a estratégia que tem vindo a ser seguida. Ou que é possível pagar a dívida portuguesa sem por em causa o regime democrático.
Julgo que é nítido pelo meu comentário que o li atentamente. Era mesmo a ele que se dirigia, em primeiro lugar, a minha observação. Para além do nada convincente mecanismo causal de transmissão pela, por enquanto irreconhecível, alta das taxas de juro nos EUA (e já lá vão seis meses…), o Jeffrey Frankel, que NÃO mostra nada “que os factores de oferta e procura de petróleo são muito menos relevantes do que habitualmente se julga para explicar as variações do preço”, faria bem em informar-se mais cuidadosamente das taxas de progressão da oferta e procura do petróleo (convencional e não convencional) e, já agora, entre muito mais que poderia acrescentar, que comparasse a evolução dos preços do petróleo com a dos índices compósitos de commodities sem o petróleo.
Crise do regime económico crise do regime eleitoral ou ambas?estamos a assistir ao prolongando uma linha de desenvolvimento histórico de crises recorrentes de desemprego e miséria social- mas também de crises políticas de apagamento dos direitos sociais e do próprio estado de direito -os afloramentos neo-fascistas na Europa representam hoje igual perigo no sul europeu e no norte onde o sucesso eleitoral chega a ser maior- a contradição entre democracia e capitalismo está a levar à decomposição do estado de direito,
os movimentos de protesto e pela reposição de direitos organizados em movimentos/partidos políticos são a primeira resposta visível a esta ameaça - a recomposição político partidária está em marcha e ninguém lhe é indiferente sob perigo de (se) perder, v.g.o PS embora continuando a ser o que sempre foi procura desesperadamente aliados à esquerda para obtenção de uma maioria para governar-aparentemente o PS acha-se imune ao efeito de desgaste de que capitalizarm o Syriza e o POdemos,será?estamos em crer que só na aparência assim o é:ao contrário deles que apresentam programas mínimos que embora choquem com o status quo são a antecipação de uma resposta à crise o PS não sente a necessidade de o fazer e é aqui que que tudo parece mais nebuloso: as rendas de situação de que os partidos social-democratas gozaram históricamente está esgotar-se a uma velocidade vertiginosa e num contexto de degradação do estado social de direito arriscam demasiado ao não fazer escolhas.
Pois a mim os argumentos de Frankel parecem muito convincentes. Gostaria de perceber os seus contra-argumentos. Quer desenvolver?
Sim, desenvolvo, mas muito brevemente, que os afazeres são muitos e a crítica precisaria de outro espaço. Repare que isto é uma inversão do “ónus da prova”, já que caberia ao Frankel demonstrar, o que não fez, por que a substancial desproporção entre a oferta e procura atuais de petróleo não é suficiente para explicar a recente queda do preço.
Se consultar os dados mais atualizados da produção de petróleo (crude + condensados), por exemplo da Agência Internacional de Energia (IEA), verificará que a produção mundial está em franco crescimento desde há mais de três anos e meio e que, em particular, teve um forte incremento a partir de meados deste ano, para o que contribuiu o fortíssimo salto na produção da América do Norte.
Por outro lado, com a incapacidade de aumento do crescimento mundial, o consumo de petróleo tem vindo a desacelerar. Continua a crescer, mas a um ritmo claramente inferior.
E mais, a generalidade das previsões, incluindo a da IEA, reviu em baixa o consumo para os próximos tempos.
Para além da estagnação, eventual desaceleração, do crescimento mundial, incluindo de grandes consumidores como a China, é importante ter em conta a sua composição, com o abrandamento, muito nítido desde a crise internacional de 2008, da produção industrial e do comércio mundiais em relação ao PIB mundial, a que se junta, mais recentemente, também o abrandamento relativo do transporte mundial de carga.
Tudo isto concorre para uma menor procura de petróleo. E, de facto, o consumo mundial de petróleo, cujo crescimento tem sido sempre inferior ao crescimento do PIB mundial (em volume) desde os anos 70, continuou a diminuir a bom ritmo em relação a este último em 2014. A elasticidade do consumo de petróleo em relação ao PIB mundial, e poupo aqui os números, continuou a cair.
Esta desproporção relativa entre os crescimentos da oferta e procura, agravada pela recusa da Arábia Saudita, por razões que aqui não discuto, em cortar a produção com vista a um ajustamento, que evitasse uma queda tão drástica dos preços, explica o essecial do fenómeno.
Que pode estar aí para durar, enquanto a queda do investimento, especialmente no shale oil norte-americano, não se fizer sentir, com a décalage característica, na forte desaceleração ou quebra da produção do petróleo não convencional.
Repare que isto não nega os movimentos especulativos no mercado de títulos do petróleo, mas esses são movimentos que se encavalitam nesta tendência de fundo, no momento presente marcada pelo mencionado desequilíbrio relativo da oferta e procura.
Um dos problemas do Frankel é que, sem negar esta explicação, e muito menos demonstrar que não é adequada, quer à viva força justificar um movimento presente, em que aquela explicação é cristalina (o que nem sempre sucede), com a consideração a martelo dos efeitos do tapering da Reserva Federal.
Para isso propõe um mecanismo causal que passaria pelo efeito do aumento das taxas de juro.
Através de quatro meios: pelo incentivo à extração presente em vez de futura do petróleo, pelo desincentivo à constituição de inventários, pelo enviesamento do investimento para os títulos de dívida dos EUA e pela apreciação do dólar.
O quarto factor apenas explicaria a diminuição do preço do petróleo no mercado doméstico dos EUA (e de outros países com a moeda atrelada ao dólar), quando o fenómeno é reconhecidamente mundial, com diminuições acentuadíssimas expressas em qualquer moeda, como se pode confirmar imediatamente na evolução do custo do Brent, talvez a principal referência mundial, e certamente a grande referência europeia, quando expresso em euros.
Os dois primeiros factores têm um efeito limitado e que, contraditoriamente, em alguma medida, se compensam, porque a redução dos inventários também atua no sentido de diminuir a produção presente.
(conclui já de seguida)
(conclusão)
O terceiro factor seria, parcialmente, verdadeiro se as taxas de juro dos EUA tivessem aumentado. Mas basta olhar para a evolução ao longo de todo este ano, até ao seu final, para comprovar que a tendência foi para a diminuição. Aliás, quando os responsáveis da Reserva Federal deram recentemente a entender que o apertar da política monetária se faria provavelmente a um ritmo mais lento o preço do petróleo não aumentou, continuou a cair.
Eu admito que as taxas de juro venham a subir, embora não esteja certo quanto aos ritmos (que podem ser mais longos) nem quanto aos aumentos (que podem ser mais curtos, menos significativos). Mas o mercado dos futuros de petróleo é um mercado mundial, não exclusivamente doméstico dos EUA, e o que não falta no mundo é dinheiro para aí ser investido. Daí que o enviesamento para as obrigações dos EUA tivesse apenas uma influência, como disse, parcial, possivelmente reduzida, no que respeita à fuga dos activos financeiros energéticos.
Essa fuga, massiva e desordenada, pode ser bem real, mas pelas razões apontadas antes, não por uma antecipação (de quanto tempo, meses, anos?) de futuros aumentos significativos das taxas de juro num mercado que se caracteriza por funcionar ao dia, à hora, ao minuto.
Que as alterações da política monetária da maior economia mundial (em valor nominal) e do Estado mais poderoso influenciem a generalidade dos preços dos ativos financeiros é algo que quem tenha um mínimo de bom senso não se atreveria a negar.
Mas isso é muito diferente de querer explicar – e muito menos ainda explicar predominantemente como faz o Ricardo (“nas origens da baixa do preço do petróleo surge uma alteração da política monetária dos EUA”), dado que nem o Frankel se atreve a negar o boom do shale oil, a recusa de cortes da OPEC ou a desaceleração da procura mundial – a evolução dos preços da generalidade das matérias-primas, ainda por cima sem distinguir as especificidades de cada uma, sobretudo das energéticas e, muito especialmente, do petróleo.
A respeito disto é esclarecedor recordar que é o próprio Frankel que reconhece que o Commodity Price Index do The Economist, expresso em euros, subiu este ano. No entanto, o preço do Brent (bem como de qualquer outro, como por exemplo o West Texas Intermediate ou o Dubai Fateh), quando expresso em euros, desceu brutalmente desde junho.
Como é que a alteração da política monetária dos EUA, ainda por cima supostamente por via de umas taxas de juro que não subiram, explicaria isto?
Quero ainda chamar a atenção de que é particularmente fraca a correlação (que, é sempre bom recordar, não traduz necessariamente uma relação de causalidade) apontada por Frankel entre os padrões históricos da evolução das taxas de juro nos EUA e os preços do petróleo.
Siga-se o link disponibilizado no artigo do autor. Lamento dizê-lo, mas só uma assustadora ausência de sentido crítico pode engolir como convincente a fraca correlação dos gráficos (que, mais uma vez, misturam o petróleo com o resto).
Mesmo sem grandes análises numéricas, olhe-se para o segundo gráfico e os exemplos mais recentes mencionados por Frankel. Diz que de 2002-2004 e 2007-2008 a queda das taxas de juro reais foram acompanhadas pelo aumento dos preços reais das commodities. Certo, só que, a avaliar pelo próprio gráfico (com uma muito estranha escala de abcissas), de 2004-2007 e de 2008(2ª metade)-2009 e várias vezes depois disso foi ao contrário. Igualmente perturbante: sempre a julgar pelo próprio gráfico, que tem uma das escalas verticais invertidas, o movimento dos preços do petróleo, nestes períodos, frequentemente (na maioria das vezes) precedeu o das taxas de juro, o que deveria levantar ao autor sérias interrogações sobre a causalidade que quer estabelecer (sem refugiar-se nas “antecipações” ad hoc dos mercados, que pelos vistos dão para tudo).
Mais sentido crítico, menos ilusões num governo PS e um excelente ano novo é o que sinceramente lhe desejo.
Ricardo,
Se entendermos a estratégia pelo que lhe é fulcrar – caminho de longo prazo para um objectivo – não é o inevitável empobrecimento de curto prazo que dita o seu irrealismo. O irrealismo que recusa esse empobrecimento é que ameaça a viabilidade da democracia.
Pagar a dívida, como bem dizia o genial financeiro Sócrates, pode bem reduzir-se a poder sustentá-la com notação de baixo risco.
Agradeço os desejos de ano novo (que retribuo) e ainda mais o desenvolvimento dos seus contra-argumentos. Já não irei a tempo de discutir em detalhe o seu comentário sem pôr em risco as festividades, terei de voltar depois. Rapidamente, não escrevi em lado nenhum que a procura e a oferta (ou outros factores) não têm qualquer papel, o que afirmo é que as dinâmicas especulativas são decisivas e estão (como estiveram no boom de 2008) estritamente ligadas à recente evolução do preço do petróleo. Chamo também a atenção para o facto de o argumento de Frankel sobre taxas de juro dizer respeito ao efeito de antecipação de uma descida esperada e não da evolução recente. Mas retribuirei o esforço de análise noutra ocasião.
Jose,
Há um caminho estreito que permitiria que tal estratégia funcionasse, implicando sempre não o mero empobrecimento mas um retrocesso civilizacional que não tem nada de inevitável. Tal caminho é tão estreito e as suas implicações tão lamentáveis que seria pouco razoável não pensarmos em caminhos alternativos.
Podemos sempre partir do princípio que as coisas são como são e não poderiam ser de outra forma. Se todos tivessem sempre pensado assim, ainda hoje viveríamos numa sociedade dividia em três Estados.
Regresso ao comentário do anónimo, agora com mais vagar, começando por agradecer novamente o esforço de análise.
Relendo o seu texto e os originais de Frankel, parece-me clara a falha que aponta quando o professor de Harvard refere a evolução (positiva) dos preços das 'commodities' na Europa, sem mencionar a evolução específica (negativa) do preço do brent em euros.
De resto, se percebo bem, a sua crítica baseia-se em dois argumentos: 1) caberia a Frankel mostrar que a evolução da procura e da oferta é insuficiente para explicar a evolução do preço de petróleo; 2) a tese de Frankel assenta nas expectativas de evolução das taxas de juro (cuja aferição é discutível); e 3) a evidência empírica de Frankel é pouco robusta e não demonstra um sentido claro de causalidade.
Estes contra-argumentos convencem-me menos.
Primeiro, sendo o petróleo transaccionado com um activo de investimento, não há motivo para considerarmos que as lógicas de investimento especulativo são menos relevantes para explicar as evoluções do preços no curto e no médio prazos do que o consumo de petróleo ou a sua oferta (até porque esta última pode ser influenciada por aqueles movimentos especulativos, como sugere Frankel).
Quanto aos pontos 2 e 3, embora as explicações assentes em expectativas sejam sempre delicadas, Frankel discute em detalhe os mecanismos de causalidade que tem em mente (que, de resto, são semelhantes ao funcionamento de outros mercados de natureza especulativa), sendo os dados que mostra compatíveis com a sua tese. Aqui o ónus da prova estaria do lado de quem questiona os mecanismos de causalidade propostos por Frankel.
(Já percebi que não é esse o seu ponto, apenas põe em causa a relevância destes mecanismos. O meu ponto tmabém não era recusar a relevância de múltiplos outros factores, apenas alertar para a relação entre a política monetária e o preços deste tipo de activos.)
Em qualquer caso, o seu cepticismo quanto à explicação de Frankel é estimulante. Se puder partilhar referências que desenvolvam este debate, ficaria agradecido.
Sinceramente, duvido que o desiquilíbrio da oferta e procura seja suficiente para explicar uma queda tão substancial do preço do petróleo. A economia mundial não ficou mal de um momento para o outro.
Na minha opinião, a antecipação da alteração de política monetária nos EUA já está a surtir efeitos.
Se os juros desceram isso deve-se exactamente ao aumento de atractividade dos activos denominados em USD.
Logo, assim se explica a valorização do dólares e o aumento do preço das obrigações do Tesouro Americano.
São os investidores a saírem dos activos mais arriscados porque o diferencial de taxas de juro em breve não vai compensar o risco de estar longo nessas posições dos mercados emergentes. Portanto, é perfeitamente aceitável que parte da queda do petróleo se deva à redução das posições especulativas.
Porém, parece-me óbvio que existe uma estratégia por parte dos EUA e da Arábia Saudita para baixarem os preços do petróleo com o objectivo de atacar a Rússia, o Irão e a Venezuela.
Resta saber se será bem sucedida. É que as reservas da Arábia Saudita estão em declínio e a maioria do shale oil não é recuperável ou os custos são economicamente inviáveis.
Quanto à Europa, neste momento temos o BCE a querer assumir o papel da Fed. Pois claro, sem o apoio do BCE os activos financeiros da Europa ficam sem suporte. Veja-se o que está a acontecer na Grécia e o comportamento dos papéis alemães sendo que alguns já oferecem taxas negativas.
Atenção que não nego o papel da especulação, certamente determinante, mas que dificilmente classificaria como “decisivo” (embora, pontualmente, possa sê-lo).
O que em geral não aprecio nas explicações da especulação é o seu caráter quase religioso, quase como se substituísse o “Deus quis assim” por “foi a especulação”. Por exemplo, como em 2008, se os preços sobem desmesuradamente é por causa da especulação, se não sobem põe-se discretamente a especulação na gaveta e não se volta a falar no assunto, até novamente os preços voltarem a subir exageradamente, a especulação voltar a atuar, Deus querer assim.
A especulação, intrínseca e permanente nos mercados de commodities e de capitais, tanto pode atuar para cima como para baixo, mas é engraçado constatar que a tese normalmente só é utilizada para cima. Daí termos períodos em que se acusa intensamente a especulação (como no caso do petróleo em 2008) e depois períodos prolongados, às vezes de anos (como no caso do petróleo em 2011-1º semestre 2014), quando os preços oscilam em torno de um valor mais ou menos constante, em que nunca mais se ouve falar dela. Daí se chegar até ao ponto de, quando os preços descem desmesuradamente para baixo (como no caso do petróleo no 2º semestre de 2014), alguns pouco mais conseguirem do que acusar o estouro de uma “bolha especulativa”, de que, estranhamente e por contraste com outros períodos (como em 2008), não falaram durante anos.
Na verdade muitos destes movimentos podem explicar-se simplesmente pela análise dos custos de produção e pelos movimentos de oferta e procura. A habilidade não está nem em sobreavaliar a dinâmica especulativa nem em negar o seu papel. Está em saber relacioná-la com os movimentos de fundo, saber, tal como disse anteriormente, como se encavalita nas tendências de fundo, como se aproveita delas e como por sua vez as influencia e potencia ou refreia. Para usar a sugestiva imagem, que abstrai dos efeitos de retroação, de um querido amigo, que certamente a reconhecerá se ler isto, a determinação pela especulação é como o sky aquático, em que o skyador se pode afastar consideravelmente para a esquerda ou para a direita, mas que tem o seu movimento fundamentalmente determinado pela orientação do barco.
No caso do petróleo, a mais fundamental de todas as mercadorias, pela centralidade do seu papel de principal fonte primária de energia da atividade económica humana, há uma especificidade crucial que, a não ser levada em conta, deita logo por terra qualquer análise com pretensões de explicar seriamente a evolução dos preços na última década. Esta especificidade existe também, em menor grau, no caso de outras mercadorias, daí a importância de não amalgamá-las todas indiferenciadamente (e muito menos amalgamá-las absurdamente com o ouro, outra das mercadorias fundamentais do capitalismo, agora não pelo seu papel na produção, mas pelo papel que lhe foi historicamente atribuído de dinheiro e de ativo de refúgio).
Falo do facto, reconhecível empiricamente, da produção de petróleo convencional, devido a restrições de carácter físico e geológico, se ter abeirado do seus limites históricos e ter, a partir de 2005, entrado numa espécie de “planalto ondulante”, com notória dificuldade de incrementar significativamente os níveis de extração e com os progressos em recentes e novos campos a compensarem muito dificilmente o declínio e fecho dos antigos (a tese do peak oil). Isto causou enormes dificuldades em 2008, em que o crescimento da procura devido ao crescimento económico quase exauriu os stocks e com a enorme incapacidade da produção em reabastecê-los. Muitos ainda se lembrarão das terríveis pressões de Bush filho e da sua secretária de estado Condolezza Rice sobre a Arábia Saudita, que argumentava que os seus níveis de produção estavam a todo o vapor e que dava a entender que não podia fazer muito melhor.
(continua a seguir)
(continuação)
Esta brutal desproporção, de sentido inverso à actual, entre uma oferta limitada e uma procura em alta do petróleo em 2008 é a explicação fundamental do pico dos preços registado nesse ano (que, não se nega, foi provavelmente bastante potenciado pela dinâmica especulativa que se aproveitou e gerou a partir do desequilíbrio referido).
Entretanto, e para abreviar, deu-se a “revolução” da fracturação hidráulica e do petróleo de xisto. É o enorme incremento do chamado petróleo não convencional (shale oil, tight oil, petróleo das areias betuminosas, de águas profundas, do Ártico, etc.), com custos de produção muito mais elevados que os do petróleo tradicional, mas possibilitado pela subida dos preços entretanto decorrida, que explica a inversão do panorama no que respeita à oferta. Por outro lado, a persistência da estagnação global, bem como ganhos de eficiência energética e alterações na estrutura do produto mundial, desaceleram a procura. O resultado é o inverso do de 2008. Num caso como noutro, tanto na subida como na descida, a dinâmica especulativa tem o seu inegável papel, mas que só é plenamente reconhecível e compreensível se enquadrado pelo movimento de fundo, dos custos e dos desequilíbrios dinâmicos da oferta e procura.
Uma das grandes críticas que se pode fazer desde logo ao Frankel é que quer analisar o preço do petróleo sem levar suficientemente em conta as suas especificidades, que o distinguem nitidamente das restantes mercadorias, seja no que respeita ao seu papel enquanto principal fonte energética, seja dos constrangimentos reais da sua produção, seja das recentes folgas nestes últimos.
Se seguir os links do artigo e ler com atenção o seu recente paper (Effects of Speculation and Interest Rates in a “Carry Trade” Model of Commodity Prices, January 2014) verá que o essencial disto lhe passa completamente ao lado.
Isso é muito nítido, por exemplo no 1º parágrafo da pág. 5, quando, para responder à crítica (do Krugman e outros) de que se a teoria da especulação e a sua própria teoria das taxas de juro estivessem certas os inventários deveriam ter sido muito elevados aquando do pico de 2008, tendo sucedido exatamente o contrário, afirma que essa objeção toca a todos e manipula a tese do desequilíbrio da oferta/procura (a mais próxima do que apresenta como sendo a tese do crescimento global), reformulando-a em termos das expectativas do crescimento futuro em vez de fundamentalmente das necessidade presentes, imediatas, do crescimento presente.
Ou, igualmente, quando, no 3º parágrafo da pág. 25, em que discute o possível caráter endógeno das variáveis da sua equação (cuja crítica entenda que não posso fazer neste curto espaço), afirma que então as restrições ou ruturas de abastecimento deveriam levar a uma queda da atividade económica e sugerir uma correlação dos aumentos dos preços com o aumento das taxas de juro (pelos bancos centrais, para limitar a inflação), tendo constatado o contrário.
O erro da objeção está em vincular, com uma enorme e dececionante unilateralidade, o movimento da atividade económica, da inflação e das taxas de juro aos preços do petróleo (um factor importante sem dúvida, mas entre outros), quando o mais importante seria compreender como, inversamente, o crescimento económico, por via da procura acrescida, em combinação, não com uma rutura, mas com uma progressiva restrição do crescimento da oferta (que prejudica o ritmo do crescimento mas não leva necessariamente ao seu colapso, que geralmente advém, e se deu em 2008, por outros motivos), exerce uma tremenda pressão para a elevação do preços.
(continua a seguir)
(conclusão)
Isto também nos conduz à discussão da robustez das correlações do Frankel e da pretensa compatibilidade dos dados com a sua tese. Como aqui parece que o ónus da prova me cabe a mim, chamo desde logo a atenção para o relativamente baixo poder explicativo da sua hipótese. No gráfico central, já discutido, que relaciona, ambos em termos reais, o índice de preços das commodities da Moody’s com as taxas de juro (pág. 4 do artigo em análise), o coeficiente de determinação é sofrível (r^2=0,249). Não se pode dizer que a correlação entusiasme.
Mas, mais do que isso, e aqui apelo novamente para um forte sentido crítico e para uma observação cuidadosa do gráfico, se dividirmos o período temporal em dois, a metade mais recente, aproximadamente os últimos trinta anos (mais precisamente a partir algures de 1983), revela uma enorme degradação da correlação que o Frankel quer extrair. Há vários períodos, que chegam a durar vários anos, em que a correlação, em vez de negativa é positiva (recorde-se que um dos eixos verticais está invertido), ou seja, em que as taxas de juro descem e os preços das commodities também descem ou em que as taxas de juro sobem e os preços também sobem, exatamente ao contrário do que pretende o Frankel. É nítido que, calculado apenas para a metade mais recente, o coeficiente de determinação, já de si pouco mais que medíocre, se degradaria muito. A correlação seria bastante fraca.
Não insistirei novamente nos pertinentes problemas dos mecanismos da causalidade, e da própria causalidade em si mesma, nomeadamente de quem precede quem, mas cumpre-me assinalar que é o próprio Frankel, no seu artigo científico, que reconhece que é claro que a (fraca ou muito moderada) correlação não implica necessariamente a causalidade (pág. 11, último parágrafo).
Voltando à situação presente, a insuficiência do crescimento mundial não augura, nos próximos tempos, uma reviravolta com a aceleração da procura de petróleo. Por outro lado, enquanto a baixa do preço não for suficientemente longa e desincentivadora da produção do petróleo não convencional, da rentabilidade de algumas das suas produções actuais (por ordem decrescente do custo: do petróleo das areias betuminosas, do Ártico, de águas ultra-profundas ou, mais importante que tudo, do xisto) e dos respetivos investimentos, que leve inclusivamente à imediata interrupção de alguns dos seus segmentos, e por maioria de razão da produção futura debilitada pela falta de investimento, enquanto essa baixa, reforçada entretanto pela recusa da OPEP em reduzir o abastecimento, não produzir grandes efeitos na oferta, é provável que os baixos preços, não necessariamente tão baixos como no presente (mas que, por outro lado, pelas tais dinâmicas especulativas que ninguém deve desprezar, podem baixar mais ainda), se mantenham.
Quanto às taxas de juro dos EUA, veremos. Acredito que subam, mas talvez não tanto e não tão depressa como alguns esperariam (e o tipo dominante de investidores especulativos nos títulos de petróleo não tem de maneira nenhuma a paciência que lhe parece atribuir o Frankel). A sua influência sobre os preços do petróleo, no grande quadro traçado, em que a especulação tem o seu papel, é, creio, a existir, muito residual, como tem mostrado a situação presente.
Não tenho infelizmente grandes referências concretas a partilhar. Mas a literatura sobre o peak oil é geralmente relevante. A tese de um máximo determinado por constrangimentos físicos, desde que reformulada da forma simplista de uma curva de Hubbert com uma aba descente a partir do extremo, cruzada com a reavaliação das novas técnicas de extração e dos novos tipos de petróleo (cujos limites históricos de progressão são também inevitáveis e que em certa medida até se prenunciam, mas que estão longe de serem alcançados) e da consideração de fatores sociais (especialmente económicos) e não apenas naturais, continua, a meu ver, válida.
Desculpe, só acrescentar, quanto a referências concretas, que, se se der um grande desconto às parvoeiras neoclássicas e à crónica volubilidade de opinião do Patrick Artus, do Natixis, vale a pena seguir os seus estudos, geralmente rigorosos quanto aos dados. Ainda anteontem publicou um sobre a estrutura global do PIB e o consumo mundial de petróleo, que aproveitei no comentário. Se se despachar, ainda o apanha no respetivo site (http://cib.natixis.com/research/economic/publications.aspx)
Uma boa fonte de informação sobre esta discussão: http://peak-oil.org/ (ASPO - USA)
http://peak-oil.org/2014/12/08-december-2014/
Muito obrigado pelas referências e pelas reflexões.
http://www.bloomberg.com/news/2014-11-30/iran-wary-of-oil-shock-therapy-as-opec-vies-for-market-share.html
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