sábado, 9 de outubro de 2021

Queremos um "New Deal"?

No anterior texto, alertei para o excessivo entusiasmo com que os pacotes de despesa pública, nos EUA e na UE, têm sido recebidos, nomeadamente à esquerda. Se a “página” da austeridade, enquanto cortes na despesa pública agregada, parece virada, “o regresso do Estado”, invocando experiências históricas, como o New Deal norte-americano ou mesmo os anos “dourados” do keynesianismo do pós-guerra, está longe de ser uma realidade. Mas para lá da mera propaganda, é assinalável como o New Deal permanece uma inspiração para a intervenção pública, bem patente no selo “Verde” agora acoplado, usado dos dois lados do Atlântico, embora com maior plausibilidade ali onde existe o Estado nacional que realmente o implementou no passado. Importa, pois, regressar ao New Deal de Roosevelt: no seu conteúdo, diferentes etapas e resultados. Só aprendendo com a história, podemos partir para a construção de uma agenda progressista de intervenção pública que vá para lá do neoliberalismo “realmente existente” dos nossos dias.

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New Deal e o intervencionismo público

Produto do período da Grande Depressão, a maior crise da história do capitalismo, acompanhada por forte agitação social e política, a eleição de Roosevelt e a aplicação do seu programa económico fornecem pistas importantes do que pode ser um programa sistémico com ambição de reconverter toda uma economia. Os primeiros cem dias de governo Roosevelt são impressionantes na catadupa de medidas e programas aprovados: dos programas emergenciais de alívio da pobreza à regulação financeira (obrigando ao encerramento dos bancos durante uma semana), passando pelos primeiros passos da saída do dólar do padrão-ouro, desvalorizando a sua moeda e, através da anulação de garantias em ouro, reestruturando, de facto, dívidas públicas e privadas.

Um dos mais emblemáticos programas foi o National Industrial Recovery Act (NIRA) que, juntando sindicatos e associações patronais sob a autoridade do Estado, através da National Recovery Administration, procurou estabelecer objectivos de produção, fixar preços em diversos sectores industriais e empreender um ambicioso programa de investimentos público em infra-estruturas. Esta intervenção sectorial foi suplementada por uma forte regulação do mercado de trabalho, estabelecendo salários mínimos, combatendo o trabalho infantil, regulando as horas e condições de trabalho e promovendo a negociação coletiva com sindicatos. As empresas teriam como contrapartida a suspensão das leis anti-trust, criadas no início do século para promover a concorrência. Adoptando uma modelo corporativista, o Estado norte-americano pretendia controlar preços para assim contrariar a deflação e estimular a economia. Ainda nestes cem dias foi aprovada o Agricultural Adjustment Act, que permitiu a imposição quotas de produção e subsidiação de produtores, aumentando os preços dos produtos agrícolas.

Se é certo que o crescimento económico e do emprego (objectivo central destes programas) foram atingidos no curto-prazo, o sucesso destas iniciativas legislativas presta-se a uma avaliação mais complexa. É consensual apontar o caso da administração agrícola como um exemplo de sucesso, ao contrário da intervenção pública na indústria através da NRA, que de resto culminou na declaração da sua inconstitucionalidade em 1935. Diferentes análises apontam a incapacidade institucional do Estado nesta área, face a uma administração agrícola qualificada que já existia desde o início do século XX, ou a capacidade de boicote e evasão dos “capitães” da indústria em sectores com bens mais heterogéneos, de maior díficil controlo público como causas deste falhanço. Sem ignorar estes factores, uma diferença essencial entre os dois sectores intervencionados esteve no trabalho e sua centralidade. O livro sobre o New Deal, Fear Itself, de Ira Katznelson, fornece-nos muitos pistas acerca dos sucessos e derrotas do New Deal. Se na indústria a regulação das condições de trabalho, o incentivo à sindicalização ou o aumento dos salários faziam parte do pacote de intervenção do Estado, na agricultura tal intervenção estava ausente. Não admira, pois, que a resistência e mobilização do capital tenha sido muito maior no primeiro caso, condenando a coordenação entre capital, trabalho e Estado então desejada.

As razões para a ausência da regulação do trabalho na agricultura vão para lá da disputa capital-trabalho. Com este sector concentrado nos Estados do sul racista e segregacionista e sendo estes estados dominados então pelo Partido Democrata (e portanto com os votos cruciais à aprovação da legislação do New Deal), Roosevelt optou por ignorar o racismo legalizado de Jim Crow, onde os linchamentos continuavam a ser prática comum, e os destinos dos trabalhadores afro-americanos para conseguir a aprovação da sua legislação. A regulação do trabalho, protecção social e sindicalização eram claros riscos à segregação racial, como aliás aconteceu nos estados industrializados do Norte. A questão social e sua articulação com a discriminação racial foram assim afastadas no mundo rural, onde o New Deal viu um dos seus maiores “sucessos” no combate à deflação. Não é difícil especular um pouco e encontrar neste esforço de preservação da segregação racial uma das causas para a inexistência nos EUA de uma provisão pública de bens como habitação, saúde e educação que caracterizou a construção do Estado Social europeu.

Economia de Guerra e a recuperação do planeamento

Depois do sucesso económico inicial do New Deal, o seu legado histórico esteve em risco, potenciado pela inconstitucionalidade do NIRA e pela adopção de políticas de austeridade em 1936-37 – na sua fase inicial, o New Deal continuava comprometido com o objectivo de orçamentos equilibrados –, resultando em nova recessão em 1937-38. No entanto, a iminência de uma nova guerra mundial alterou a correlação de forças políticas, permitindo um novo esforço de planeamento económico, intimamente ligado ao esforço de guerra, financiado em igual medida pela taxação e pelo endividamento. Guiado pela despesa militar, mas com a participação de inúmeras agências governamentais e gestores do sector privado, o Estado, através do National Planning Resource Board, empreendeu uma notável reconfiguração da economia norte-americana financiando a modernização produtiva e investindo como nunca. No final da Guerra, o Estado norte-americano controlava 40% de todos os activos produtivos.

Este planeamento foi complementado por um sistema de controlo de preços, por forma a prevenir a inflação verificada aquando da I Guerra Mundial. No seu recente How China Avoided Shock Therapy, a economista Isabella Weber dedica um capítulo do seu livro ao debate teórico e político por detrás dos controlos de preços norte-americanos durante a guerra, dirigidos pelo Office of Price Administration, coordenado por um dos economistas mais influentes do século XX, John Kenneth Galbraith. Galbraith divergiu na avaliação da economia de guerra feita por Keynes. A economia de guerra não era um bolo fixo, sujeito a pressões de procura causadas pela mobilização militar e civil, que implicariam uma maior massa salarial na economia, como defendeu o inglês, que preconizava esquemas de “poupança” forçada que adiassem decisões de consumo. Para Galbraith a prioridade estava em antecipar eventuais gargalos produtivos, expandindo capacidades produtivas e competências, aliadas a controlos de preços e eventual racionamento. No entanto, a ideia de controlos selectivos, baseados em cálculos de custos produção, através de matrizes input-output, foi abandonada dada a multiplicidade e complexidade das mercadorias a serem sujeitas a tais controlos. Alternativamente, optou-se por um controlo generalizado de preços baseado na sua evolução recente e permitindo algumas flutuações ao longo do tempo. A nova política, mais pragmática, aliada à intervenção pública na estrutura produtiva e armazenamento de mercadorias, foi um sucesso (ver figura abaixo). A contrapartida oferecida às empresas foi a garantia de procura a preços previsíveis, mantendo as suas margens, sobretudo para os grandes conglomerados industriais. Por outro lado, embora os salários também estivessem controlados, os sindicatos viram as suas fileiras a crescer dado o aumento da força de trabalho. Entre 1940 e 1944, o PIB norte-americano praticamente duplicou.
Fonte: Weber, Isabella (2021). How China Avoided Shock Therapy, Routledge: Londres.

O sucesso económico do planeamento no periodo da II Guerra mundial foi abandonado ainda antes do fim desta. A pressão política do capital norte-americano, com os seus lucros limitados e a ansiedade do Sul racista em terminar com qualquer ingerência federal que colocasse em causa a segregação racial, determinaram o abandono das políticas de planeamento da economia. A planificação central foi substítuida por uma intervenção mais macroeconomica, através da política orçamental, com o Budget Office Bureau a ganhar recursos face ao NPRB, entretanto desmanteladas. Naturalmente, o papel do Estado na economia não desapareceu, nomeadamente através dos usos de défices e excedentes orçamentais, e orientação industrial de certos sectores, como no famoso complexo militar-industrial, mas a intenção inicial do New Deal de uma economia coordenada, orientada para a valorização do trabalho, com sindicatos fortes, foi derrotada.

E Keynes?

Embora a "Teoria Geral do Emprego do Juro e da Moeda" de Keynes só tenha sido publicada em 1936, já o New Deal ia no seu terceiro ano, este programa político é normalmente associado ao economista inglês. E com razão. É certo que muitas das políticas do New Deal, como o fim do padrão-ouro ou o controlo de preços, encontram a sua origem no movimento populista do final do século XIX – entretanto vilipendiado ao ponto de hoje a palavra populista ser mero insulto. Todavia, o debate económico a seguir à I Guerra Mundial, onde Keynes desempenhou um papel central, naturalmente influenciou o programa de Roosevelt.

Um dos principais economistas pós-keynesianos da actualidade, James Crotty, publicou há dois anos o livro "Keynes Against Capitalism". Para lá do seu discutível argumento central – Keynes como um tecnocrata anti-capitalista –, o economista norte-americano oferece uma interessante leitura dos escritos do economista ao longo dos anos vinte. Na sua análise da economia britânica, Keynes identifica alterações estruturais do capitalismo, nomeadamente a tendência para a monopolização nascida das crescentes economias de escala do novo modelo de produção industrial e das lógicas de centralização e concentração de capital. Com as necessidades de investimento produtivo cada vez mais exigentes e um ambiente marcado pela incerteza radical, as unidades produtivas tenderiam a gastar menos do que o desejável, conduzindo ao desemprego estrutural e à estagnação económica num paradoxal contexto de abundância de capital. O Estado teria, pois que assumir o papel de organização de um vasto esforço de planeamento e centralização do investimento público, por forma a atingir um melhor equilíbrio entre sectores (velhos versus novos sectores, indústria versus agricultura, investimento nacional versus internacional), e atingir o pleno emprego. Um dos exemplos oferecidos foi o de um vasto programa de construção de habitação no Reino Unido, que respondesse às necessidades sociais, disciplinasse mercados e mobilizasse capacidade produtiva. Keynes chega mesmo a arriscar que dois terços de todo o investimento devia ser público. A gestão macroeconómica da política orçamental e a política monetária de juros baixos e controlos de capitais aparecem com condições ou complementos a esta estratégia planificadora.

Não surpreende que Keynes tenha sido um entusiasta do New Deal. Mais interessante, como mostra a recente biografia de Keynes, escrita por Paul Zachary, o New Deal criou as condições para o sucesso académico da Teoria Geral nos EUA, particularmente em Harvard, através de alguns dos principais economistas americanos do século que estudaram em Cambridge, como o marxista Paul Sweezy ou o grande popularizador do pensamento de Keynes naquele país, John Kenneth Galbraith. Segundo Paul Samuelson, autor nobelizado do manual de Economia mais vendido de sempre, no final da Guerra, todos os economistas teriam sido convertidos ao keynesianismo.

No entanto, tal como New Deal foi amputado dos seus elementos mais radicais no final da Guerra, o mesmo aconteceu com a teoria económica que lhe deu suporte. Um conjunto de economistas empreendeu o esforço de compatibilizar a velha microeconomia neoclássica com alguns dos contributos macroeconómicos de Keynes, como a preferência pela liquidez ou o multiplicador orçamental, deixando de lado as considerações teóricas deste sobre incerteza radical ou o funcionamento dos mercados financeiros, impossíveis de modelizar matematicamente. Este esforço foi bem sucedido, do famoso modelo IS/LM de John Hicks, ainda nos anos trinta, até à mais tardia curva de Phillips – uma regularidade estatística, mais tarde inavalidada, que estabelecia uma relação inversa entre inflação e desemprego. Assim se criou arcabouço teórico da síntese keynesiana, chamado de “bastardo” pelos discípulos directos de Keynes, centrado na possibilidade de intervenção do Estado através da manipulação das váriaveis do défice público e da taxa de juro. O planeamento económico, guiado pela valorização e libertação do trabalho, desapareceu. A regulação financeira ou a política industrial, conquanto continuando como políticas públicas, perderam respeitabilidade teórica, sendo abandonados ou reformulados a partir do mercado desde os anos setenta. Restou, assim, uma política orçamental através da manipulação do défice, assente na possibilidade de gastos orçamentais para estabilizar a economia, concentrados no complexo militar-industrial norte-americano, e a política monetária de fixação de taxas de juro de curto-prazo, crescentemente deixada aos tecnocratas dos Bancos Centrais.

Conclusão

O New Deal norte-americano, nas suas diferentes etapas, foi o resultado de diferentes correlações de forças sociais e políticas nos EUA. Se este programa económico faz empalidecer qualquer das tentativas presentes de “regresso do Estado”, chamando a atenção para a importância do planeamento da economia, este modelo foi atravessado por contradições suficientes para justificar algum cepticismo em relação à invocação de novos “New Deal”. Qualquer programa económico tem por detrás uma dada economia política que abre ou limita aquelas que são as possibilidades de política económica. O conflito entre trabalho e capital, atravessado pelas questões raciais, marcou a orientação deste programa, como, aliás, sempre acontece. Programas económicos emancipadores precisam de ser engendrados, suportados e articulados com o movimento dos trabalhadores, nas suas diferentes declinações organizativas. Só a participação popular pode robustecer um programa e garantir o seu sucesso. A política económica não pode ser deixada a tecnocratas ou elites intelectuais. Por outro lado, não devemos desprezar a experiência histórica e a luta das ideias, sobretudo no terreno da teoria económica. As ideias contam, mas como parte de uma luta social mais vasta, quando se inscrevem em movimentos que movem milhões.

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1 comentário:

Jose disse...

Vou ler mais devagar...

Mas um New Deal com o nível actual de exploração de recursos, níveis de consumo e liberdade e meios de circulação, e DÍVIDA?!?!?!