A celeuma em torno do OE para 2022 lembra a do PEC4.
Quando se discute o famoso momento da sua votação, a ideia dominante é a de que esquerda se juntou à direita para chumbar o poder socialista e teve um efeito desgraçado: chumbar o pacote de medidas acordado com a chanceler Merkel conduziu à queda do Governo Sócrates e, com ele, à entrada da troica em Portugal e, depois das eleições antecipadas, a um Governo PSD/CDS (Passos Coelho/Paulo Portas) que foi "além da troica", cujos resultados foram desastrosos para o país e para os portugueses.
Mas geralmente esquece-se a materialidade das medidas que estavam a ser votadas.
No caso concreto, e desde o segundo trimestre de 2010, as instituições europeias mudaram de opinião. Em vez de um programa de investimento e de defesa o emprego - passou-se à austeridade, cortar na despesa pública. Como se as contas públicas estivessem na origem da crise do euro e não da crise de 2007/2008, filha da distopia do sistema financeiro e que transbordara para os Estados quando lançaram a mão para pagar os seus desmandos, com repercussões nos mercados financeiros onde - por obrigação ideológica - os governos da UE se têm de financiar, porque os países cederam ao BCE o seu poder de emissão monetária.
Cada pacote de medidas agravava a recessão e o desemprego. E o PEC4 já era o quarto pacote.
O Governo PS, sem querer olhar o problema de frente, tendo como ministro das Finanças Fernando Teixeira dos Santos - nas palavras de José Sócrates, um "embaixador do governo alemão" - acatava os ditames aparentemente irracionais vindos de Bruxelas e Frankfurt. Aparentemente, porque esses pacotes visavam, sim, provocar uma ruptura financeira que forçasse a intervenção externa que, por sua vez, financiasse sobretudo a banca francesa e alemã - que apostara nos juros altos da dívida pública nacional. Ou seja, pressionava-se para aplicar um programa de austeridade que fizesse a população portuguesa pagar o empréstimo externo que, por sua vez, pagaria os desmandos dos "credores". E nesse capítulo, a filosofia "as dívidas são para pagar" assemelha-se mais à própria voz dos "credores" seus beneficiários.Essa era a essência do PEC4. O seu chumbo era, pois, justo. Se não fosse o PEC4 a ser chumbado, seria o seguinte, porque nenhum deles resolveria os problemas nacionais. Pelo contrário, agravava-os e a esquerda não poderia apoiar esse programa. Mas esse facto gravoso não impediu que toda esta materialidade tivesse ficado ofuscada na suposta insanidade - passada em coro na comunicação social - da aliança contra-natura que o deitou abaixo. Logo se repetiu que esquerda e direita se aliaram para derrubar o Governo PS, omitindo-se os motivos bem diferentes (como se pode ver no vídeo bastante edificante).
Mas por que razão se colocara o Governo PS nessa posição?
Ora, o OE para 2022 não era um plano de austeridade. Mas tinha enormes fragilidades. E a principal talvez era a opacidade de quem o gere, que nunca presta contas sobre as suas opções de não concretizar despesa orçamentada e aprovada pelos parceiros, acumulando défices materiais na provisão pública na saúde, na educação, na cultura, nas despesas sociais, etc.
Se é legítimo perguntar por que razão o PS sustentou programas como o PEC4, talvez se deva perguntar por que razão o Governo se mostra incapaz de cumprir orçamentos ou de mudar a lei laboral que, como os próprios socialistas admitem, promove os baixos salários e desequilibra a relação laboral. E não há muitas respostas:
1) Bruxelas e Frankfurt não querem;
2) os patrões não querem e eles acabam por mandar, devido ao papel de verdadeira Câmara Corporativa que é presentemente a Comissão Permanente de Concertação Social (vidé episóio recente da suspensão da sua participação supostamente por causa das compensação por despedimento, mas na verdade porque o Governo decidiu pôr em causa o seu poder;
3) o Governo não quer porque, na realidade, prefere salários baixos porque uma subida de salários contribui para a subida do investimento e, com elas, as importações tendem a subir, contribuindo para desequilibrar as contas externas.
Ou seja, o Governo tem uma insanável contradição no seu programa. E Portugal tem um problema que este Governo se recusa a encarar: como crescer sem desequilibar as contas externas. Até lá, até saber o que fazer, o PS adia e aperta as contas, gere a crise nacional, enquanto dia após dia, Portugal se afunda às mãos de uma armadura imposta de fora, impregnada de um ideário neoliberal.
7 comentários:
O João Ramos de Almeida repete as motivações para um chumbo do OE, ou seja, as suas manifestas insuficiências, na sua opinião.
Só que a questão central não essa. A questão é saber, como aponta o seu colega de blogue Ricardo Paes Mamede e não apenas eu, qual era a decisão racional para a Esquerda tomar, se a defesa dos seus princípios, se a viabilização, seguida de uma eventual discussão na especialidade que de qualquer forma nunca traria a essa Esquerda aquilo que queria, mas que possibilitaria alguns ganhos de causa, e vá lá perguntar aos eleitores do BE e do PCP-PEV se eles não ficariam satisfeitos com eles.
Você argumenta com aquilo que a seu ver é justo, Costa argumenta com aquilo que a seu ver é possível. E o PS e o PCP-PEV e o BE nunca se entenderão (a não ser que o PS seja tomado por uma ala frentista, mas aí garanto-lhe que nunca mais será Governo, porque uma larga maioria dos seus eleitores é mesmo centrista) a respeito da maior parte das matérias, a começar pelas questões europeias.
Logo, se quer justificar a razão pela qual os Partidos de Esquerda acabaram na prática por derrubar o Governo que tornaram possível em 2015, muito bem. Se quer apelar a um novo OE que a Esquerda possa viabilizar e que seria muito diferente deste, lamento mas é demasiado tarde para isso. Chega a ser patético esse apelo agora.
Não andamos a brincar aos Orçamentos, eles representam as opções em termos de política corrente (fiscal, económica, de saúde, etc) do Governo em funções e que seguramente refletem o seu Programa.
Sem elas, o Governo não sobrevive. Por isso, agora os Partidos de Esquerda têm que assumir nas urnas as razões não para chumbarem o OE, mas sim para a mudança de Governo.
Caro Jaime,
Não entendeu o meu ponto ou talvez não me tenha explicado bem.
Não repito razões para o chumbo do OE e até, se quer que lhe diga, até aceito discutir qual teria sido a melhor táctica a adoptar. Até sou capaz de partilhar consigo que a opção adoptada bloqueou a esquerda do PS a uma posição de ter se defender face à barragem de críticas, perdendo oportunidade para ter a iniciativa de uma posição mais fortalecida. Sou mesmo capaz de lhe dizer que era preciso ter tido um cuidado extremo para gerir esta decisão para evitar que as pontes não acabassem cortadas, permitindo a um Paulo Rangel - e ao Jaime... - argumentar com a inutilidade do voto no PS.
Mas todas as opções sobre um possível chumbo não afastam a questão de fundo. E essa questão de fundo prende-se com a esquizofrenia em que o PS vive há décadas, se calhar desde quando Mário Soares aceitou a vinda do FMI como moeda de troca da adesão à CEE, aceitando desmantelar o que se conseguira até 1975. Tentar a quadratura do circulo, entre ideais social-democratas e uma política euroliberal, não pode ter muitos resultados, senão aquele que está à vista. E até permite ao PSD – via Cavaco Silva – agitar com a estagnação do país... para continuar a afundá-lo ainda mais!
O PS deveria ter já aprendido com os erros que cometeu em 2008 (2ª versão do Código do Trabalho que aprofundou a da direita de 2003), com a política de 2010/11 que criou o terreno para Passos Coelho dizer que era pouco e que se tinha de ir mais longe; com a legitimação das políticas de 2012 aprovadas por Passos Coelho que tinham um único propósito – reduzir salários – pelas mais diversas vias.
É complicado? Alguém disse que poderia ser fácil? Mas para isso é que é urgente que todos se falem. Porque entretanto o país vai indo pelo cano abaixo, e os nossos jovens vão aparecendo no programa da Antena 1 “os portugueses no mundo”.
MISTIFICAÇÕES POUCO OU NADA INOCENTES - BE e PCP já haviam votado contra os PEC's 1, 2 e 3, que tiveram o apoio do PSD e do CDS. Sendo previsível que PCP e BE votassem contra o PEC 4, o PS/Sócrates contava com o voto dos do costume, PSD/CDS, que inesperadamente roeram a corda.
Procurou o PS/Sócrates qualquer entendimento com a esquerda? Não. Demitiu-se, sem procurar acordos ou apoio à esquerda, assim abrindo as portas ao Governo de Pedro & Paulo, que teve sempre o apoio parlamentar do PS/Tó Zé Seguro e Cisco Assis.
Não fosse a disponibilidade de PCP e Bloco para viabilizarem o Governo minoritário do PD/Costa e o Páf teria continuado a governar, com o apoio sucessivo de Cavaco e de Marcelo.
É um facto que o PS/Costa no Parlamento, tem sempre contado com o voto favorável do PSD e restante direita nas questões estruturantes, questões estas que têm contado com voto contra do PCP e Bloco.
Sendo assim, cabe perguntar. Porque carga de água Costa e outros altos dirigentes do PS, á revelia deste, contribuíram activa e objectivamente para a reeleição folgada de quem nunca escondeu ao que vinha?
Se Costa acredita que em novas eleições terá maioria absoluta, o que nunca sucedeu nem antes nem depois do 1º Governo de Sócrates, parte duma base não realista, pois terá o desapoio militante do actual Presidente da República e da comunicação social, interessados no ressurgimento do chamado Bloco Central entre PS e PSD, sob o comando deste ou dum Governo viabilizado pelo Chega, digam Rangélico e Rio o que disserem.
O João Ramos Almeida, usa na sua argumentação pressupostos que não tem sustentação nos factos.
Afirma que: "Governo se mostra incapaz de...de mudar a lei laboral que, como os próprios socialistas admitem, promove os baixos salários e desequilibra a relação laboral."
Omite que o governo tinha em discussão pública para submeter á aprovação do parlamento a "Agenda para o Trabalho Digno" que introduz mais de 60 alterações à legislação laboral e entre elas:
"o prolongamento, para 2024, da suspensão dos prazos de sobrevivência das convenções colectivas para 2024".
Na fase de negociação do OE com o PCP o governo comunicou publicamente que tinha aceitado que essa suspensão se mantivesse "sine die";
Fonte: https://www.portugal.gov.pt/download-ficheiros/ficheiro.aspx?v=%3d%3dBQAAAB%2bLCAAAAAAABAAzNDI2MgUAmp2vnQUAAAA%3d
Pelas declarações de Jeronimo de Sousa, parece que o PCP só agora se deu conta do enorme erro que cometeu. (esperar isso do BE, é inútil. Eles nunca erram. são sempre os outros).
Não só queimaram as pontes para um novo entendimento à esquerda, no curto prazo, como correm o risco de se tornarem irrelevantes na influência das políticas públicas.
Se há uma coisa que ninguém tem duvidas é que das novas eleições só vai resultar uma de duas soluções: ou um governo de maioria de direita ou um outro governo do PS. E em nenhuma delas o BE e o PCP vão estar em melhores condições para fazer avançar a sua agenda, do que estiveram nestes ultimos 6 anos.
Ainda custa acreditar como foi possível, mas agora só resta fazerem gestão de danos.
Caro Tavares de Moura,
Quando à lei laboral, parece-me que o PS está bem longe de "destroicar" a legislação. Não inverte na totalidade as compensações por despedimento, não inverte na totalidade a compensação por trabalho suplementar nem o descanso por esse trabalho realizado; não inverte os cortes no subsídio de desemprego; não inverte a desregulação dos tempos de trabalho; e, sem querer ser exaustivo, não inverte totalmente o que foi feito na contratação colectiva, porque simplesmente teve uma participação actuante desde 2008 (e o PS não quer colocar-se nessa posição de ter de põr em causa a sua actuação). Suspender sine die a possibilidade de caducidade era uma possibilidade de diálogo, mas pouco convicta pelas razões já invocadas. Por alguma razão era ... uma "suspensão". Dava para os dois lados: para o diálogo à esquerda e para Bruxelas...
Quando ao segundo tema do seu comentário, é uma interpretação possível. E há, de facto, riscos elevados.
Entender o que verdadeiramente foi a intervenção da Troika é essencial, é um trabalho que tem que ser feito, e não o será feito pela comunicação social que tanto contribuiu para a imposição da austeridade e do euro-liberalismo.
O PCP e BE apresentam medidas tipicamente sociais-democrata e o Partido “Socialista” diz “Não pode ser, é demasiado”.
O Partido “Socialista” para além de não ser Socialista despreza a Social-Democracia, e a despreza porque o Neoliberalismo com vestes europeístas a despreza, afinal, a União Europeia foi o martelo que foi usado para pregar os pregos no caixão da Social-Democracia.
A farsa que os partidos “Socialistas” e “Sociais Democratas” que optaram pela Terceira-via montaram é deveras extraordinária, e extraordinário também é o esforço que fazem para a manter.
Mas como qualquer farsa acabará por se desmoronar com o peso enorme das mentiras que foi acumulando ao longo dos anos.
O Partido “Socialista” é hoje o partido favorito da classe dominante, é o partido que mais garante previsibilidade e o partido que esmaga qualquer irreverência progressista.
A proposta de lei que exibe "mais de 60 alterações à legislação laboral", no quadro da chamada "Agenda do Trabalho Digno", só foi aprovada pelo Governo no passado dia 21 de Outubro, seis dias antes da votação da proposta de OE2022 na AR e três dias antes das reuniões dos organismos de direcção do PCP e do BE para decidir o sentido de voto quanto à proposta orçamental (não quanto à dita agenda). Como se pode constatar nesta razoável síntese jornalística (https://rr.sapo.pt/noticia/economia/2021/10/22/agenda-do-trabalho-digno-saiba-o-que-vai-mudar/257855/), as alterações propostas até podem ser muitas, mas é inegável que, embora oferecendo alguma coisa, a generalidade destas alterações oferece muito poucochinho, claramente abaixo das expectativas do movimento sindical (e não apenas dos partidos de esquerda).
No dia 23 de Outubro, o presidente-comentador Marcelo não quis comentar a possibilidade de a proposta orçamental ser chumbada, limitando-se a dizer que esperaria até ao último minuto por um acordo que poupasse custos e problemas. Contudo, logo no dia seguinte - o dia das grandes decisões dos partidos de esquerda sobre o OE2022 - o presidente-comentador acabou por revelar o que sobre esta matéria já há muito tinha combinado com António Costa: em caso de chumbo na votação parlamentar, ele trataria de pôr imediatmente em marcha o processo de dissolução do Parlamento e, sem ter que elaborar nova proposta de orçamento, o Governo continuaria em funções.
Sublinhe-se que, até à passada 4ª feira, o único chumbo de um OE no Portugal democrático tinha ocorrido em 1978, quando Portugal - sob resgate do FMI - estava a cumprir um programa de austeridade. Mas, nessa altura, não houve dissolução do Parlamento: o Governo foi mesmo obrigado a apresentar uma nova proposta de orçamento, a qual foi aprovada por uma maioria de deputados...
A. Correia
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