quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

SNS e eficiência


No debate sobre a resposta à crise pandémica que vivemos, parece estar a causar alguma estranheza o argumento de que a gestão privada na saúde não é mais eficiente do que a pública. As PPPs da saúde foram sempre elogiadas pela direita como sendo modelos de eficiência. Normalmente, esta tese é apoiada em notícias sobre estudos realizados ou pagos pelos próprios privados, embora também aconteça ser apoiada em coisa nenhuma. No entanto, os dados mostram mesmo que a superioridade da gestão privada não passa de um mito, e é preciso estar bastante desatento para não o compreender.

Se formos ver relatórios e estudos de entidades independentes, é cada cavadela, cada minhoca: na PPP de Loures havia manipulação de dados de consultas para maximizar o lucro do negócio e na PPP de Cascais houve denúncias de burla e corrupção. Mas há mais. A PPP de Vila Franca de Xira foi investigada pela Entidade Reguladora da Saúde por internar doentes em refeitórios/casas de banho. A ERS concluiu que esta "não é uma medida excepcional [e] não tem qualquer relação com o aumento de procura”, contrariando a tese defendida pelo grupo privado. Além disso, o relatório notava o óbvio: a solução “não respeita a dignidade dos utentes”.

Além disso, há seis estudos oficiais sobre PPPs da saúde: um da ERS (2016), duas auditorias gerais do Tribunal de Contas (2009 e 2013) e três auditorias do Tribunal de Contas sobre Cascais (2014), Loures (2015) e Braga (2016). Nenhum permite concluir que foram mais eficientes que o público - muito pelo contrário. Basta ver as conclusões a que chegaram: o relatório do TdC de 2013 reconhecia que “Ainda não existem evidências que permitam confirmar que a opção pelo modelo PPP gera valor acrescentado face ao modelo de contratação tradicional". Em 2014, a auditoria à PPP Cascais admitia que o "desempenho do hospital foi idêntico ao do centro hospitalar de Entre Douro e Vouga".

Na auditoria a Loures (2015), de novo: "Não resulta evidente maior eficiência do modelo de gestão privada, face à gestão de outras unidades com gestão pública empresarial do SNS". Além disso, o estudo apontava para o facto de que “o financiamento por doente padrão, em 2013, foi mais elevado do que o dos centros hospitalares públicos comparáveis”. No relatório da ERS em 2016, notava-se que os “hospitais PPP apresentaram quase sempre menor percentagem de primeiras consultas médicas realizadas dentro do tempo máximo de resposta garantida”. A conclusão foi a de sempre: "Não foi possível identificar diferenças estatisticamente significativas entre os resultados dos hospitais PPP e os outros hospitais do SNS".

O caso da PPP de Braga também merece a nossa atenção. A auditoria em 2016 dizia que "a produção acordada não se tem subordinado às necessidades da população, o que levou ao aumento das listas e tempos de espera". Os que gostam de citar este relatório deviam lê-lo na íntegra: a atividade contratada era inferior às necessidades, daí o dinheiro "poupado" pelo Estado, que depois acabava por ser gasto nos hospitais públicos do Porto que recebiam doentes transferidos (algo que até originou multas da ARS). Este hospital melhorou os indicadores de produtividade após passar para a gestão pública, o que não deixa de ser revelador. Estes relatórios já tinham sido avaliados pelo Francisco Louçã no Expresso, que apontara a discrepância entre o discurso sobre a superioridade da gestão privada e os relatórios sobre a situação realmente existente na saúde, na sequência de uma notícia de João D'Espiney no Jornal de Negócios.

É preciso ter em conta que as PPPs tiveram casos de adulteração de dados clínicos ou sobrefaturação denunciados pela PGR ou pelo TdC, alguns apontados acima. Ou seja, a gestão privada não só obriga os contribuintes a pagar a margem de lucro dos privados, como implica custos de fiscalização e litigância. É o cenário enquanto ainda existe provisão pública. No dia em que não existissem hospitais públicos e o SNS fosse mero pagador, os privados podiam chantagear o Estado, usando os próprios utentes para obter valores de extorsão. O Estado não teria capacidade negocial nenhuma. 

Daí que os sistemas assentes em provisão privada saiam mais caros. O Ricardo Paes Mamede já explicou neste blog as falácias sobre a superioridade da gestão privada, usando como exemplo o sistema alemão, que não só gasta mais do que Portugal na saúde em % do PIB, como não apresenta melhores resultados, de forma geral.

Estas linhas dizem apenas respeito à questão da eficiência. Deixei de fora todos os problemas éticos e deontológicos que resultam de orientar cuidados de saúde de acordo com a maximização do lucro. Fazer da Saúde um negócio funciona mal. E, além disso, sai mais caro.

10 comentários:

Anónimo disse...

A direita (e parte do PS, já agora) deixaram de ser políticos para serem lobyistas.
Continuamente, eles repetem o mantra de que é necessário recorrer ao sector privado e social.
Relativamente a este último, é mais um embuste: não existe sector social nenhum. A santas casinhas são tão privadas como os restantes privados.
Quanto à eficiência, convinha apurar se a eficiência não está pendurada em milhões, ou até biliões, de euros em calotes.
Lembro que a GFC fez o Estado nacionalizar 25 biliões de € de calotes e que, coincidência das coincidências, apareceram a seguir dezenas de hospitais e clínicas privadas por todo o lado.
Só mais uma coisinha: o Estado não pode contratar serviços com quem tem dívidas ao Estado. Parece que é lei.

Jose disse...

As tabelas de custos por acto médico alcançados pelo SNS, que regularmente são publicadas, são um permanente embaraço para o sector privado da saúde!

José António Gouveia disse...

Ha uns anos a minha irmã foi operada no hospital do terço no porto por indicação do serviço público. Teria sido uma cirurgia muito simples que se transformou num horror! Foi tirar a vesícula com o método dos furos! Entrou de manhã cedo lá e ficou só todo o dia sem ninguém lá por os pés no quarto. Foram busca la as 9 da noite para o bloco quase sem qualquer tipo de conversa e ...vou resumir ,de manha mandaram na para casa . Fui busca la cheia de dores que nem conseguia andar. Sem medicacao indicada pelo medico sem nada! Horror! Á noite tive qua a levar à urgencia do santos silva em v n gaia onde nos foi dito logo á entrada: vêm do terço? Oh meu Deus outro doente do terço disse à enfermeira para o colega! Fez tratamento pós operatório tudo que tinha direito que devia ter sido lá e saiu como nova. Em poucas horas era outra pessoa. Ainda os quis processar mas desisti. Recebi vários telefonemas de lá, porque primeiro eu tinha reclamado,a directora queria falar comigo a todo custo. Mandei a lixar e arrumei o assunto. Na altura o hospital era dirigido por uma empresa ou hospital de Braga e vim a saber mais tarde que tinha má gestão ou estavam na falência. Um caso de muitos o da minha irmã presumo eu... Boa tarde.

Paulo Marques disse...

A eficiência que quem escolhe que serviços aceita e quais despeja é sempre maior. E daí?

JE disse...


Calores de 25 biliões?
Não são calotes. É o "sistema" a funcionar. E parte dele vai para financiar e olear bem a campanha de coisas asquerosas como Ventura. Ou daquele tipo da IL

E não é propriamente nacionalizar "calotes".É sim socializar prejuízos.

A saúde é o negócio mais rentável a seguir ao das armas.Pela boca duma das privatizadas coisas

A.R.A disse...

Público vs Privado
A aclamada e suposta liberdade de escolha já não me choca pois a livre concorrência de mercado revirou tudo do avesso, ora vejamos:
- liberou-se o mercado de combustíveis e logo se criou um cartel de gasolineiras
- Na banca idem com um cartel de bancos
- Colégios mui selectos e privados que reclamam pelo corte de ajudas do Estado
- Grupos de saúde que nos seus hospitais transformaram médicos em "mecânicos" de pessoas ou seja entramos com um braço partido e fazem-nos exames a urina por ?€ exame ao sangue ?€, exame oftalmológico por ?€ ... e se o braço estiver demasiado complicado vai para o SNS e a factura segue para casa
Enfim, perante alguns dos exemplos acima, a questão de fundo é mesmo saber qual a real relevância de manter este sorvedouro de dinheiros publicos com as siglas PPP?
O real erro deste governo foi de não ter ditado a estes grupos do negócio da doença a seguinte narrativa aquando estes susugeriram os € necessários para tambem fazerem parte da luta á pandemia:
- Ou aceitam uma compensação de igual valor ao gasto no SNS por doente ou impõe se uma requisição civil que vai exactamente ao mesmo
Se alguém duvidava dos poderes instalados aqui tem a prova cabal de que mesmo em tempo de pandemia o negócio da doença sobrepõe se a tudo e todos tendo no nosso PR o seu lobista mor.
Portanto já não me choca tanto ver e entender o que se passa com uma relativa calma e estupidez natural visto que estes Srs. são realmente os donos de isto tudo e tal como dizia o outro:
- O povo não aguenta? Aí aguenta aguenta!

Jose disse...

«uma compensação de igual valor ao gasto no SNS»

Será que já se deram ao trabalho de fazer essas contas?

Hélder Rocha disse...

É melhor enviar este post para o polígrafo. Parece que o Hospital de Braga era muito eficiente com a gestão privada.

A.R.A disse...

"Será que já se deram ao trabalho de fazer essas contas?"

Não se faça de rogado e apresente as "suas" contas! Estou deveras curioso para ver batem certo com as minhas ...
Posso esperar sentado?

A.R.A disse...

José
Ainda estou à espera dessas contas ... sentado, claro está !