terça-feira, 15 de maio de 2018

Notas soltas ainda a propósito do artigo de Centeno III

Para finalizar esta curta série de notas a propósito do artigo de opinião que Centeno publicou no jornal Público no passado dia 9 de Abril, comecemos por recordar, para nos situarmos, da sua afirmação: “Podemos tomar como exemplo a experiência da Bélgica que reduziu o rácio da dívida pública de 130,5% em 1995, um valor próximo do registado em Portugal em 2016, para 94,7% em 2005”. Ou seja, um recuo da dívida pública em 35,8 pontos percentuais concretizado num período de 10 anos.

A partir daqui, deixo um par de observações a propósito das implicações para o resto da economia belga desta trajetória do seu défice público.

Comecemos por referir que a evolução da poupança e do investimento está estreitamente relacionada com a interação de uma economia com o resto do mundo. De acordo com a aritmética da contabilidade nacional, a diferença entre poupança bruta interna e investimento total do sector público e do sector privado é igual à capacidade/necessidade de financiamento de um país relativamente ao resto do mundo, ou seja, é igual ao saldo do sector externo.

Assim, de forma abreviada, pode dizer-se que isto acontece porque, se numa economia a despesa de uns é necessariamente a receita de outros, então, em termos agregados, a despesa total é igual à receita total.

Usando uma linguagem mais próxima da análise dos saldos financeiros sectoriais, pode dizer-se que, se um sector melhora o seu saldo financeiro, ou seja, se aumenta a poupança líquida (saldo entre total do rendimento e total da despesa ou saldo entre poupança bruta e investimento), um ou mais sectores têm de a diminuir no mesmo montante, ou seja, não podem todos poupar simultaneamente, dado que a poupança de uns é a despesa de outros. A lógica impõe que o contrário também seja verdadeiro.

À luz deste quadro conceptual, vejamos então o que aconteceu na Bélgica no período 1995-2005, o intervalo de tempo que Centeno oferece como referência.


Vejamos mais de perto, agora com números do gráfico acima. O que podemos observar?


Em 1995, o défice público era de 4,4% e, no período subsequente (1996-2005), em média anual, desceu para 1,2%; ou seja, o Estado Belga poupou e melhorou a sua posição orçamental em 3,2%. De onde surgiu esta poupança? Como a balança de pagamentos contribuiu com apenas 0,1%, o sector privado viu-se forçado a diminuir a sua poupança nos restantes 3,1%, passando de um saldo anual, em 1995, de 8,8% para um saldo anual médio de 5,7%.

Conclusão: a redução do défice do sector público fez-se à custa do sector privado; dado que a posição do sector externo se manteve praticamente inalterada, o aumento da poupança líquida do sector público resultou quase inteiramente da diminuição da poupança líquida do sector privado. Adicionalmente, esta diminuição da poupança líquida do sector privado não por acaso coincidiu com um aumento do endividamento deste sector em cerca de 29,2 pontos percentuais (91,5% do PIB em 1995 e 120,7 em 2005) o que compara, recorde-se, com recuo da dívida pública em 35,8 pontos percentuais.

Chegados aqui, pergunto-me: É isto que Centeno quer para Portugal? Parece que sim. Por um lado, não pode ser por acaso que a Bélgica é oferecida como exemplo. Por outro, os números apresentados no Programa de Estabilidade 2018-2022 (PEC) apontam para uma forma de comprimir o défice público que, se descontarmos a ainda maior intensidade do esforço exigido è economia portuguesa, se assemelha muitíssimo ao que foi feito no país dado como referência. Senão vejamos:


Repitamos o processo e vejamos mais de perto, agora com números do gráfico acima. O que podemos observar?


Em 2017, tivemos um défice público de 3% e, para o período subsequente (2018-2022), em média anual, projeta-se um superávite de 0,5%; ou seja, o Estado português planeia poupar e melhorar a sua posição orçamental em 3,5%. De onde surgirá esta poupança? Como a balança de pagamentos contribuirá com apenas 0,3%, o sector privado ver-se-á forçado a diminuir a sua poupança nos restantes 3,2%, passando de um saldo anual, em 2017, de 4,4% para um saldo anual médio de 1,2%.

Conclusão: se tudo correr como Centeno planeia, a transformação do défice do sector público em superávite far-se-á à custa do sector privado; dado que se prevê que a posição do sector externo se mantenha praticamente inalterada, o aumento da poupança líquida do sector público resultará quase inteiramente da diminuição da poupança líquida do sector privado.

Resumindo, para um governo diminuir o défice rumo a um orçamento equilibrado ou superavitário, tem de cobrar mais dinheiro em impostos do que aquele que devolve na forma de despesa ou investimento públicos. Onde vai o sector privado obter esse dinheiro dado que está legalmente impedido de o imprimir?

Teoricamente, de um de três modos: ou esse dinheiro resulta de uma economia que cresce apesar de dispor de menos dinheiro, e/ou obtêm-no, sobretudo, a partir de mais exportações líquidas de importações, e/ou pede-o emprestado à banca.

A primeira opção é improvável dado que a velocidade de circulação do dinheiro, embora volátil, tende a decrescer com o tempo.

A segunda opção não se materializou na economia belga no período analisado e é também descartada por Centeno: o PEC prevê uma ligeira deterioração da balança comercial ao longo do horizonte de projeção e, por isso, uma igualmente marginal melhoria da balança de pagamentos que, prevê-se, resultará da manutenção dos magros saldos positivos da balança corrente e de capital; como vimos acima, a previsão é que o sector externo compense a drenagem de recursos financeiros que a redução em 3,5% do défice público representará para a economia com apenas 0,3%. Coloca-se a questão de saber se mesmo assim não há aqui algum optimismo: os sinais que começamos a ter não são animadores.

Esta segunda opção é difícil, entre outras razões, porque pressupõe investimento continuado na mudança estrutural da economia e se materializa apenas no médio e longo prazo. No caso de Portugal a dificuldade é acentuada pelo facto do investimento ter estado em queda mais ou menos pronunciada durante todo o período 1999-2013 e da inversão registada a partir de 2014 ser muito incipiente; acresce que também não ajuda, muitíssimo pelo contrário, que a zona euro no seu conjunto, e a Alemanha em particular (desconte-se a apologia dos gastos militares e atente-se na análise do centrista Wolfgang Münchau), procure resolver o lastro de endividamento deixado pela Grande Crise Financeira de 2007/8 e pelos subsequentes desenvolvimentos europeus através de estratégias de simultânea contenção da procura interna porque, lá está, dado que a despesa de uns é a receita de outros, as exportações de uns têm de ser as importações de outros.

Chegados aqui, resta-nos a terceira opção. Tal como aconteceu na Bélgica, em Portugal, o sector privado, confrontado com uma redução da sua poupança líquida, para manter níveis de consumo e investimento compatíveis com o crescimento da economia vai ter de aumentar o seu endividamento.

É isto que uma parte daqueles que no debate público clamam por menos défice público têm em mente?

Será esta estratégia de ‘consolidação’ orçamental uma boa ideia quando o endividamento privado ainda representa 171,4% do PIB e o crédito malparado 13,3% do total do crédito concedido?

“O problema”, como diz Steve Keen, “em depender de níveis sempre crescentes de endividamento privado devia ser óbvio: esta dependência não pode acontecer porque a dada altura o sector privado se recusará a aceitar mais dívida. É o que em grande medida aconteceu em 2008 e originou a crise económica em resultado da contração da quantidade de dinheiro na economia e da própria economia”.

18 comentários:

Jose disse...

Tudo irá dar à imprescindibilidade do investimento estrangeiro?
Nada como uma frente esquerdalha para um tal efeito...

Anónimo disse...

Aumentar a produtividade do setor público é essencial

Paulo Marques disse...

Nem mais, Paulo. É tão elementar que a Eurolândia não funciona que dói.


Jose:
Deixa-me advinhar, cortando os impostos que já não pagam e tornando mais fácil que extraiam os dividendos que já saem acima do investimento? Isso em pentelhos dá quanto?

Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Jose disse...

Pentelhos nas circunvoluções cerebrais são sério entrave ao desenvolvimento.

Anónimo disse...

Mais migalhas da UE
http://sicnoticias.sapo.pt/economia/2018-05-16-Fogos-de-2017-podem-valer-mais-506-milhoes-de-ajuda-da-UE
Os fogos, essa criação maléfica criada pelo Euro!
S.T.

Anónimo disse...

Um excelente post e um precioso comentário de Paulo Marques

S.T. disse...

Mais dois comentários "assinados" S.T. destinados a confundir os incautos, 16 de maio de 2018 às 17:13 e 16 de maio de 2018 às 16:45
Escusado será dizer que nada tenho a ver com o conteúdo.
S.T.

Paulo Coimbra disse...

Caro S.T.,

É escusado, sim, mas a coisa levanta poeira. A sua intervenção é apreciada. Obrigado.

João Pimentel Ferreira disse...

Bem-vindo caro S.T. ao mundo dos comentários construtivos e identificados, independentemente se a conta que se usa é verdadeira ou não. Como reparará também sofro bastante com está avalancha de comentários anónimos repletos de ataques ad hominem à minha pessoa. As suas intervenções são bastante apreciadas.

Anónimo disse...

Ahahah

joão pimentel ferreira himself a fazer-se passar por coitadinho.

E a não assumir o que é. Registe-se este comentário de pimentel ferreira porque vai ser muito útil no futuro

( essa dos ataques ad hominem referem-se aos "comentários do próprio pimentel ferreira?)

Quando não se consegue debater tenta-se boicotar o debate. Velha táctica de um tipo a quem pimentel ferreira um dia não escondeu a sua admiração, um gajo de nome Goebbels

Anónimo disse...

Tem graça.

Descortina-se uma admiração pacóvia pela UE e pelos fundos da UE de quem se faz passar por outrém às 17 e 13.

Ora quem se conhece que passa o tempo a martelar nisso? Exactamente desta forma tão idiota que chega ao ponto de convocar os fogos para o debate?

O LdB incomoda. Tanto que há quem faça tudo para boicotar o que se debate

Anónimo disse...

Tem graça.

O sujeito que usurpa o nome de outrem às 16 e 45 fala em "controlo da despesa em salários e pensões" como processo de.

Exactamente o que um sujeito passa os dias aqui a debitar. Paralelamente ao seu enaltecimento da governação criminosa de Passos Coelho.

O ódio ao salários e pensões está bem, expressa nesta sua frase de darwinista social:
" No dia em que ganharmos todos o mesmo, é o dia em que todos ganharemos muito pouco".

O controlo dos salários e pensões de quem trabalha. Para que estes trastes possam continuar a ganhar muito

Anónimo disse...

Tem graça

A 16 de maio de 2018, pelas 16 e 45, alguém se faz passar por outro

Quem assim procede tem um tipo de discurso todavia facilmente reconhecível. Como de ...fala-barato em género de pilhas duracell

Onde já vimos coisas assim?


Mas há uma palavra muito pouco usual - a segunda pessoa do plural do verbo ver no imperativo. A palavra "vede"

Muitíssimo pouco usual excepto para uma pessoa: e essa pessoa é joão pimentel ferreira.
Que a usa por duas vezes noutro post exactamente no mesmo dia. Aqui:

https://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2018/05/merito-e-escolhas-colectivas.html

Mas que a usa bastas vezes, por exemplo aqui:
-https://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2016/12/tiveram-e-tem-razao.html
( também por duas vezes)
-https://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2016/10/hoje-le-monde-diplomatique-edicao.html
-https://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2018/04/frase.html
-http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2018/02/uma-poderosa-ferramenta.html?m=1
-http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2018/04/por-quem-o-sininho-dobra-no-eurogrupo.html

Ora se virmos bem , joão pimentel ferreira é o mesmo que aparece com fotografia de há 20 anos, a bater no peito e a falar em " comentários construtivos e identificados" e a apelar para a comiseração dos demais

É demais, mesmo que para um "social-liberal" trafulha

Aónio Eliphis disse...

Caro Paulo Coimbra

Como justifica então a redução do défice e o aumento da poupança privada em Portugal a aprtir de 2008, e em clima de recessão económica? Não é um paradoxo, considerando os pressupostos da sua análise?

Cumprimentos

Paulo Coimbra disse...

Acabou-se-lhe o palco. Vede comentário anterior.

Jaime Santos disse...

Há uma coisa que nao entendo. Se ocorrer aquilo que propõe, o saldo baixa para 1,2% mas ainda se mantém positivo. Isto não me parece que corresponda a endividamento adicional, simplesmente uma desalavancagem mais lenta do privado em benefício do público.

Depois não deixa de ser curioso que, como notaram Reinhart e Rogoff, as crises de endividamento são normalmente resolvidas com recurso a repressão financeira, ou seja, se bem compreendo, obrigando os bancos a deter obrigações do Estado a juro reduzido. O Jorge Bateira referiu-se amiúde a esta estratégia. O que é isto senão exatamente aquilo que descreveu, se bem que aplicado apenas ao sector financeiro?

Parece-me pois que salvo uma renegociação que implique haircut significativo (e que nunca se fará sem contrapartidas, ou seja, nova austeridade, porque são sempre os credores que impõem as suas condições), vai ser mesmo alguém por cá a pagar o pato...

Anónimo disse...

Duas pequenas questões a respeito do que diz Jaime Santos:

-Porque motivo está sempre a dizer que são sempre os credores que impõem as suas condições? Contradiz o que ocorre por vezes entre particulares e não só. Não será esta afirmação tão taxativa apenas um meio para justificar uma submissão inquestionável ( mas falsa ) aos credores? Com variados intuitos mas fazendo lembrar que até nesta questão há uma rendição absoluta aos pressupostos neoliberais? Outro TINA a aparecer assim discretamente mascarado?

-Porque motivo se fala (usando aquela linguagem que os homens de negócios importantes usam para consumo mas massas ignaras) que "vai ser mesmo alguém por cá a pagar o pato"?
Não sabemos que quem tem pago consecutivamente o pato consumido pelas ditas elites tem sido precisamente quem não come do pato?
Que as negociatas dessas mesmas elites ou que o hipotecar da nossa soberania tem estado na base do aumento do consumo do pato entre os que estão em cima à custa da imensa gente que está em baixo?
Então porque motivo são estes avisos? Haverá receio que a conta chegue finalmente aos que nos venderam e que vão singrando incólumes à destruição que o neoliberalismo tem provocado?