quarta-feira, 12 de setembro de 2007

O mito da transparência

Sempre que há uma crise financeira (e no actual regime financeiro liberal as crises não cessam de se repetir) a retórica é sempre a mesma: é preciso aumentar a transparência e a circulação de informação para que os agentes não voltem a cometer os mesmos erros e exageros. É evidente que isto é quase só palavreado oco de banqueiro central ou de economista liberal que quer impedir que se discuta o essencial: a criação de mecanismos de controlo e de regulamentação que bloqueiem as dinâmicas colectivas irracionais a que os mercados financeiros liberalizados são tão propensos.

Dado que os mercados financeiros se baseiam em apostas em relação ao futuro e dado que o futuro é incerto, então nada mais previsível do que a emergência de convenções e de fenómenos de mimetismo. Em geral, a pressão social e a concorrência entre os agentes financeiros são factores que explicam a consolidação e hegemonia de interpretações da realidade que estão na base dos frequentes episódios de euforia financeira. Esta situação tem dois efeitos perniciosos. Por um lado, dá origem a um enfraquecimento do espírito crítico durante o boom, a uma tendência para não se pôr em causa a sabedoria convencional (Keynes dizia que nos mercados financeiros, para a maioria dos agentes, mais vale ser «mal sucedido com as convenções do que ser bem sucedido contra elas»). Por outro lado, desencadeia o que se designa por «miopia face ao desastre». Quer isto dizer que os agentes, a partir do momento em que partilham a crença na sabedoria do mercado, tendem a subestimar de forma sistemática os sinais e as anomalias (a tal informação) que se vão acumulando e que apontam para a insustentabilidade da situação. Até ser demasiado tarde. Depois vem o pânico...

8 comentários:

NC disse...

Você fala da actividade financeira como se fosse de jogadores de um casino. Não acredito que não seja intencional.
Isso é apenas olhar para um lado do cubo, neste caso o lado especulativo do mercado que existe e não pode ser ignorado. Mas em muitos aspectos da vida em sociedade a especulação também existe sem que isso cause grande escândalo.
Não vejo que mal vem ao mundo por existirem agentes com «miopia face ao desastre». Quem faz aquilo de que não percebe só com sorte terá sucesso. Se eu for à praça sem perceber nada de fruta, legumes ou peixe, arrisco-me a comer "kunami" ou um peixe que não gosto. Não vejo que isso seja motivo para proibir alguém de ir às compras ou de a obrigar a tirar uma licença. Faz falta, por à disposição dos agentes informação para que se possam proteger de fazer asneira. Mais do que isso é entrar num caminho de paternalismo e desresponsabilização. E isso torna-nos uma sociedade mais estúpida, subserviente, sem criatividade e dependente.

João Rodrigues disse...

Pois claro. Tudo se assemelha a uma ida à mercearia ou ao mercado.

Há actividades (caso das actividades financeiras) que são demasiado importantes para serem deixadas sem mais aos caprichos dos mercados e à suposta racionalidade sem falhas dos agentes que os povoam. A miopia é mais do que um problema individual. É um problema de estrutura e dos comportamentos que são incentivados.

A influência e o poder que os mercados financeiros detêm fazem com que os "erros" cometidos tenham que ser pagos por todos. Questão de dependência e de interdependência. De resto, a finança de mercado, que se desenvolveu com os processos de liberalização, desintermediação e desregulamentação, é responsável pela instabilidade vivida e pelo aumento da polarização.

O problema está então nas estruturas que foram criadas e na sua expansão. E são estas que têm de ser modificadas. Definitivamente, isto não vai lá com mais informação.

E, como sempre, ir pondo trelas no capitalismo é a maneira mais segura de expandir as liberdades para a maior parte dos trabalhadores assalariados e de responsabilizar os que têm mais influência e poder.

NC disse...

«De resto, a finança de mercado, que se desenvolveu com os processos de liberalização, desintermediação e desregulamentação, é responsável pela instabilidade vivida e pelo aumento da polarização.»

Troque-me lá isso por miúdos que eu não atingi. Tenho de ler mais

«Definitivamente, isto não vai lá com mais informação.»

É a sua profissão de fé. Tudo bem.


«como sempre, ir pondo trelas no capitalismo é a maneira mais segura de expandir as liberdades»
"Pôr trelas" é o oposto de "expandir liberdades", a não ser que considere capitalismo = crime, o que denotaria um extremo maniqueísmo relativamente ao assunto.

João Rodrigues disse...

Não é uma questão de fé. É uma questão de evidência. Quando as actividades financeiras estavam mais enquadradas pelos governos (ou nos países onde ainda o estão) a propensão para as crises era menor. E não consta que houvesse problemas de financiamento do investimento produtivo. Pelo contrário. Os problemas começaram nos anos oitenta com a liberalização financeira. Hoje um número crescente de economistas (mesmo liberais que tendem a dizer que isto é irreversível) aceita este facto.

Quanto ao resto, tudo depende da definição que se use de liberdade...

NC disse...

«A influência e o poder que os mercados financeiros detêm fazem com que os "erros" cometidos tenham que ser pagos por todos.»

Costumo usar muito este argumento quando falo do Estado e do seu despesismo. Adequa-se mais.

João Rodrigues disse...

Pois olhe que se calhar está na altura de mudar de enfoque. Como sempre é o "despesismo" que tira economias das recessões...

NC disse...

Para não encher mais a caixa de comentários deixei um texto lá no meu estaminé.

http://caldeiradadeneutroes.blogspot.com/2007/09/o-assalariado-um-potencial-especulador.html

NC disse...

«é o "despesismo" que tira economias das recessões...»
Em situações limite de total inoperância da maioria dos mercados admito que sim.
Em condições normais o despesismo estatal não é mais que um fardo que todos temos de pagar, gostemos ou não. Com a agravante que este tem uma propensão natural para engordar.