terça-feira, 19 de julho de 2011

Hoje

«A crise originada em 2007 no sistema financeiro internacional poderia ter conduzido a profundas transformações no funcionamento e finalidades deste sector. Os poderes públicos poderiam ter olhado para os seus efeitos negativos sobre o conjunto da sociedade e decidido reapropriar-se de instrumentos de política económica e financeira que limitassem os seus impactos no presente e impedissem a sua repetição ou escalada futura. Em vez disso, abdicaram de reformar em profundidade o sistema financeiro e permitiram que este transferisse os custos da sua recuperação para os Estados, através de custosas operações de salvamento seguidas de ataques especulativos às dívidas soberanas, a começar pelas das economias mais fragilizadas e periféricas. A inclusão destas economias na zona euro não as protegeu de tais ataques, com as instituições da União Europeia a serem mesmo parte activa na imposição de um caminho de prolongada recessão económica e regressão social que traz consigo o risco de desintegração europeia.»

Do posfácio de Sandra Monteiro ao livro «Portugal e a Europa em Crise», editado pela Actual Editora e organizado por José Reis e João Rodrigues, que reúne artigos publicados na edição portuguesa do Le Monde Diplomatique, entre Março de 2008 e Maio de 2011. Um roteiro para compreender a crise, as suas verdadeiras causas, o descalabro da resposta europeia e as propostas alternativas para a sua superação. A apresentação da obra, a cargo de João Cravinho, realiza-se hoje às 18h30 na livraria Almedina do Atrium Saldanha (Lisboa), contando com a presença de José Reis e João Rodrigues.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Da soberania

Obama declarou, na semana passada, que os EUA não são a Grécia ou Portugal. Obama tem, claro, toda a razão. Os EUA são um país com imensos problemas, mas que dispõe de soberania monetária. Para além da desvalorização cambial, que sempre ajuda na correcção dos défices externos, podem adoptar políticas de estímulo económico interno e recorrer ao financiamento monetário por parte do seu mais pragmático Banco Central, comprando dívida, o que faz todo o sentido quando há desemprego e ampla capacidade produtiva por utilizar, devido à crise, e, logo, não existem riscos inflacionários relevantes.

Portugal e a Grécia, por seu lado, são membros de uma espécie de federação, disfuncional e incompleta, assente numa separação letal entre política orçamental e política monetária, colocados na dependência de instituições centrais que parecem só existir para favorecer a pilhagem financeira e não para realizar, entre outras operações de política económica que deveriam estar institucionalizadas, as transferências orçamentais entre “regiões” que partilham a mesma moeda. Abdicámos dos atributos centrais da soberania democrática sem os recuperar à escala europeia. Este é o nosso problema europeu e a questão é saber se o conseguimos resolver no quadro do euro. Como estamos é que não pode ser.

Entretanto, no campo da dívida pública, a crise nos EUA é resultado de um sistema político disfuncional, também dominado por ideologias aberrantes, ilustrando o perigo de se aceitar uma regra, um tecto, artificial, que as crises agudas se encarregam sempre de furar, para variáveis, como a dívida, que dependem sobretudo do andamento da economia, mas sem esquecer, claro, as consequências fiscais negativas da captura do Estado pelos mais ricos...

Portugal e a Europa na encruzilhada da crise

Foi publicado hoje um artigo meu no Público sobre a crise europeia e os cenários que nos esperam. Entretanto, por coincidência, saiu hoje no Financial Times um artigo do Wolfgang Munchau que converge bastante com o que digo, embora com a inevitável perspectiva ortodoxa. Já que está disponível em linha, transcrevo aqui a totalidade do meu texto.


A indignação geral, nacional e europeia contra as agências de notação nos últimos dias é mais reveladora da impotência da União Europeia em lidar com a actual crise financeira do que de uma qualquer epifania das nossas elites relativamente às responsabilidades destas agências e dos mercados financeiros na crise.

A decisão da Moody's em baixar a notação da República Portuguesa ou a ameaça da Standard and Poor's de avaliar o plano francês de envolvimento do sector privado no reescalonamento da dívida grega como bancarrota dão sobretudo conta do falhanço das políticas de austeridade. Num contexto de forte endividamento externo de famílias, empresas e Estado, qualquer movimento de redução do défice público tem como consequência uma redução do produto e, logo, uma diminuição da receita fiscal.

Não é, por isso, surpreendente que sejam necessários novos pacotes de financiamento, associados a mais austeridade e mais desemprego. Por outro lado, os acontecimentos dos últimos dias mostram também até que ponto o poder político europeu se encontra refém do sistema financeiro europeu, que não aceita quaisquer perdas neste contexto e que exige um euro forte para as suas estratégias de expansão. Só tendo isso em consideração, e não o ligeiro aumento da inflação, é possível compreender os recessivos aumentos da taxa de juro por parte do Banco Central Europeu.

Na iminência do incumprimento grego e com a especulação a alastrar de forma aguda aos mercados de dívida espanhola e italiana, entrámos, definitivamente, numa nova fase da crise. Esta não é uma crise susceptível de ser circunscrita a um pequeno número de países sem grande peso na economia europeia. Trata-se de uma crise sistémica, com origem na arquitectura disfuncional de uma União Económica e Monetária (UEM) na qual a moeda comum, sem um correspondente orçamento comum, cavou o fosso de competitividade entre o centro e a periferia que está na raiz dos presentes problemas. É, pois, tempo de pensar quais os possíveis cenários que nos esperam, se quisermos estar mais bem preparados para pensar em alternativas e reagir atempadamente.

Neste contexto, são três os principais cenários alternativos que se colocam perante nós, cada um dos quais susceptível de pequenas variantes que não comprometem o seu sentido e implicações gerais. No primeiro cenário, depois de um provável incumprimento (e saída do euro) por parte da Grécia, a Europa decide mutualizar a dívida pública europeia através de emissão de euro-obrigações que cubram parcial ou totalmente as dívidas públicas nacionais. Os países em situação idêntica à de Portugal veriam assim os seus custos de financiamento descer. No entanto, um tal cenário implicaria necessariamente a criação de um ministério das Finanças europeu, que imporia a continuação da austeridade na periferia. Ainda que o risco de incumprimento no curto prazo desaparecesse em consequência, a ausência de instrumentos de política económica e a necessidade de permanentes saldos orçamentais primários positivos na periferia resultariam na continuação do declínio face ao centro, gerando uma tal degradação económico-social e perda de soberania que a futura implosão da UEM não seria mais do que adiada.

No segundo cenário, o rumo actual da situação permanece alterado, com uma UE incapaz de se pôr de acordo, tendo como consequência a entrada em incumprimento generalizado por parte dos pequenos países da periferia. Devido aos seus défices públicos, estes países ver-se-iam forçados a sair do euro sob pena de não conseguirem pagar salários e pensões. A banca entraria em colapso devido à sua dívida externa em euros e a concessão de crédito congelaria. Três crises eclodem em simultâneo: crise de dívida, crise bancária e crise cambial.

O resultado, no curto prazo, seria uma forte contracção do produto, aumento da inflação, desemprego e instabilidade social, à imagem do que sucedeu, numa primeira fase, na Argentina. Os países do centro assumiriam parte dos custos, recapitalizando o BCE e assumindo as perdas do incumprimento soberano através de transferências fiscais. Para estes países, seria politicamente mais fácil convencer os seus cépticos eleitores que tal pagamento é o custo de se terem livrado dos países "malcomportados".

Finalmente, no terceiro cenário, os países da periferia negoceiam com a UE uma saída organizada do euro. O incumprimento soberano far-se-ia através da desvalorização cambial subsequente (os pagamentos seriam feitos em escudos em vez de euros). Introduzir-se-iam controlos de capitais de forma evitar a fuga destes e a banca teria de ser imediatamente nacionalizada e recapitalizada através de emissão monetária, de modo a prevenir os efeitos de uma crise bancária profunda. Seria necessário proceder ao aprovisionamento de alguns bens essenciais, da alimentação ao petróleo.

Numa segunda fase, as reservas de ouro seriam utilizadas para estabilizar a taxa de câmbio. No curto prazo, seria impossível evitar o impacto da saída do euro sobre o produto e a inflação. No entanto, se adoptada de forma organizada, tal opção restituiria ao Estado os instrumentos necessários à reconversão económica, tornando mais fácil combater o défice externo através da desvalorização cambial e defendendo o emprego e os serviços públicos.

Todos estes cenários envolvem custos. Todavia, pensar e debater estas três alternativas de forma séria proporciona benefícios evidentes à posição de Portugal no contexto europeu. Nessas condições, beneficiando do alastramento da crise a novos países e recusando a falida continuação da política da austeridade, não é impossível perspectivar uma aliança europeia que possa impor uma reestruturação da dívida favorável aos devedores e um reforço do orçamento europeu de forma a aumentar a sua capacidade redistributiva. Um primeiro cenário alterado, portanto, com uma reconfiguração radical da UE, que passaria também, por exemplo, por alterar os estatutos e as prioridades do BCE. No entanto, qualquer posição negocial só terá força se for credível nas suas ameaças, pelo que é fundamental considerarmos seriamente os outros dois cenários. Na verdade, se a adopção de uma tal posição comum se mostrar impossível em consequência da evolução política nos diferentes contextos nacionais, a necessidade de um plano B implicará encararmos seriamente a possibilidade do terceiro cenário, recusando discursos apocalípticos e perspectivando um país com futuro.

domingo, 17 de julho de 2011

Aterragem?


Baseando-se nas declarações de Vítor Gaspar, apostado em aprofundar uma “grande transformação” que nos conduzirá a crises cada vez mais violentas, o editorial do Público de sexta-feira declarava que “o país vai descolar do modelo social europeu para aterrar no liberalismo da América”. Os arranjos institucionais da zona euro ajudam quem está apostado em copiar o pior dos EUA, já que foram pensados para erodir direitos laborais e sociais, para favorecer todas as convergências regressivas entre os modelos de capitalismo disponíveis. No entanto, não se trata de liberalismo, que nos EUA até adquiriu historicamente uma conotação progressista, próxima da social-democracia, assente na valorização das liberdades “positivas”, mas sim de neoliberalismo, ou seja, de uma ideologia apostada em criar as condições institucionais e políticas para transferir rendimentos e riqueza para os que estão no topo da pirâmide social, através da financeirização da economia e do domínio do Estado e da vida pública pelas grandes empresas, em especial pelas empresas do sector financeiro, pelo poder do dinheiro cada vez mais concentrado.


O gráfico acima, que compara o crescimento cumulativo para diferentes segmentos de rendimentos (dos mais pobres aos mais ricos) em dois períodos cruciais da história do pós-guerra nos EUA, ilustra bem a conjugação de medíocre crescimento dos rendimentos e de injustiça social, indissociáveis da configuração de capitalismo sob hegemonia da finança de mercado que emergiu nos EUA, a golpes de política, a partir dos anos setenta: entre 1947 e 1973, época de consenso “liberal”, de contrapoderes sindicais fortes e de mercados muito mais limitados e politicamente enquadrados, o rendimento das famílias mais pobres (20% da população), cresceu, em termos reais, aproximadamente 97,5% e o rendimento das famílias mais ricas (5% da população), cresceu 89,1%; entre 1974 e 2005, na chamada “Era de Milton Friedman”, esse crescimento foi, respectivamente, de 10% e de 62,9%. O “trade-off eficiência-equidade”, em que muitos economistas ainda insistem, não passa de uma peça da máquina ideológica neoliberal montada com muito dinheiro. Entretanto, a percentagem de rendimento captado pelos 1% que estão no topo da hierarquia social passou, nos EUA, de 8,2%, em 1970, para 17,4%, em 2005. O desfasamento, com mais de duas décadas, entre o crescimento da produtividade e o da maioria dos salários, ao mesmo tempo que os gestores de topo, que ganhavam 38 vezes mais do que o trabalhador médio em 1979, passaram a ganhar 262 vezes mais em 2005, foi “compensado” pelo endividamento maciço das classes trabalhadoras, assim mantendo, de forma insustentável, a procura.

Uma fórmula fracassada que se quer replicar com ainda maior intensidade em Portugal – das desigualdades galopantes à crise permanente, passando pela emegência de um Estado penal, a alternativa à destruição do Estado social, até à exclusão de amplas camadas do acesso a bens essenciais, como a saúde, há assim muitos erros para repetir na aterragem planeada pelo governo. Até quando é que os cidadãos continuarão a aceitar utopias de mercado que fracassam sempre?

A queda

Luís Gaspar diz tudo o que é preciso dizer sobre a constante falta de seriedade de Cavaco, que vem agora apelar a uma desvalorização de um euro comandado pelo “independente” BCE, uma aberração anti-democrática saída de tratados que o mesmo Cavaco assinou e apoiou, como apoiou e apoia todas as medidas de austeridade cuja lógica é desvalorizar o factor trabalho, para usar uma expressão que lhe é cara. Gaspar também lembra a esquerda do que é essencial neste campo: “Estou certo que esta revisão doutrinária representa a queda de um anjo do pedestal da ortodoxia económica, o que levará a um questionamento por parte da profissão sobre as vantagens desta mesma ‘independência’ - quase sempre, a independência de uma instituição perante o estado geralmente aumenta a sua dependência perante interesses privados, e esta parte geralmente esquecem de ensinar. Finalmente, e reiterando que saúdo o que o Sr. Presidente disse publicamente, considero que a questão da força do euro é apenas parte do problema, escondendo, na verdade, outra questão que julgo pelo menos tão relevante. Cerca de 75% do valor das exportações portuguesas tem como origem países da União Europeia (…) O problema da periferia europeia é em boa parte um problema de dumping salarial por parte da Alemanha, como defendi aqui. Este dumping implica que o 'escudo' está sobrevalorizado perante o ‘marco’, e aí sim, parece-me, reside boa parte da chave do problema.”

sábado, 16 de julho de 2011

Não há stresse...

Os bancos-lixo nacionais lá passaram nos testes de stresse. O prestimoso governo veio logo reafirmar que alguns mil milhões de euros estão disponíveis para o que der e vier, sem quaisquer contrapartidas, claro. O governo sabe que o aprofundamento da crise, obra da austeridade, aumentará a fragilidade financeira, mas que não pode haver stresse para quem tem poder. O stresse, como temos sublinhado, é transferido para outros, para muitas famílias e empresas, apanhadas numa relação assimétrica com a banca. A economia é política, entre outras razões, porque se trata de saber quem é que tem poder para transferir custos para terceiros…

Pilhar

O jornalista Rui Peres Jorge faz um bom apanhado da recente opinião económica convencional sobre privatizações nas periferias europeias para chegar à conclusão que “as privatizações não resolvem a crise”. Aliás, a venda entusiástica dos bens estratégicos do país a preço de saldo revela bem a cumplicidade das nossas elites com um capitalismo de pilhagem com escala internacional. Como sublinha Eugénio Rosa, contrariando um discurso oficial cada vez mais aldrabão, trata-se de aprofundar a inserção dependente de Portugal e de canalizar cada vez mais recursos para o exterior.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Bifurcação

Em editorial do Público desta semana fazia-se uma defesa das euro-obrigações, ou seja, da emissão conjunta de dívida pública europeia, paga pelos Estados na medida das suas necessidades de financiamento. Estas necessidades estariam assim garantidas a taxas de juro substancialmente mais baixas, em especial para os países periféricos. O editorial opunha esta proposta à reestruturação da dívida, que inevitavelmente começará pela Grécia, em formato ainda por decidir, mas que, segundo o Financial Times de ontem, terá de significar uma redução para metade do peso da dívida grega no PIB (hoje nos 150% de um PIB em austeritária redução). Na realidade, estamos perante duas propostas complementares. A redução do montante da dívida, com perdas para credores demasiado gananciosos, recapitalização e aumento do controlo público dos bancos e substancial reforço do orçamento europeu, traduzindo a realidade das transferências orçamentais requeridas entre países neste contexto, seria acompanha por emissões de euro-obrigações, proposta hoje crescentemente partilhada por actores políticos da esquerda à direita, até um montante correspondente aos 60% do PIB para cada país, a regra de Maastricht para a dívida que serve de ponto focal mais ou menos arbitrário nestas discussões. No entanto, a emissão de euro-obrigações não significaria necessariamente o fim da austeridade com escala europeia. Para acabar com a economia de austeridade, seria preciso disponibilidade para dar um impulso público ao investimento nas pessoas, nas infra-estruturas públicas e na reconversão ambiental da economia europeia. Neste campo, a acção do Banco Europeu de Investimento, em versão reforçada, seria bastante útil. Na bifurcação europeia, ou vamos por aqui, com a necessária democratização das instituições europeias, onde se incluí um BCE com as prioridades mudadas, ou temos de começar a pensar a sério na nossa vida colectiva depois do euro.

Injustiça

O Ministro das Finanças tem razão num ponto: regista-se uma profunda "transformação estrutural" em Portugal. Disso faz parte uma alteração radical das relações sociais, em desfavor dos rendimentos do trabalho. Trata-se não apenas de uma rude desvalorização salarial mas também de desapossar os que trabalham de um lugar mais digno na economia e na sociedade. A forma desigual como esta sobretaxa se aplica, deixando de fora outros rendimentos (lucros, juros, ganhos financeiros) é, a este propósito, esclarecedora.

Desapossadas as pessoas, regressa a virtude à economia? Os liberais julgam que sim. Mas não parece. Gera-se mais e mais recessão, cria-se desconfiança e desânimo. E uma profunda sensação de injustiça...

Mas a regressão salarial tem relação com outro tema da conferência de imprensa: um plano de privatização intenso, com apelo aos capitais estrangeiros. Isto somado ao encolhimento rude do Estado nas suas funções sociais. É, de facto, uma profunda "transformação estrutural".

Acontece, no entanto, que Portugal, como economia periférica, está a ser alvo de uma manipulação agressiva a partir do exterior. É aí que está um problema estrutural decisivo. O mais difícil mas também o mais decisivo de todos. O que valem, nesse contexto, os sacrifícios rudes e desiguais que se impõem e o desapossamento da economia que se promove?


José Reis, Uma profunda sensação de injustiça, Público.

Claro como a água


Há alturas em que, não fosse as consequências serem tão dramáticas para a nossa economia e sociedade, quase agradeceríamos certos anúncios e medidas que tornam claro como a água do lado de que classe e de que interesses está o governo - e ajudam a afastar as ilusões que ainda possam ter os mais ingénuos (deve haver bastantes, visto que os elegeram):

Rendimentos do capital ficam isentos do imposto extraordinário - que é como quem diz, os trabalhadores e pensionistas que paguem a crise.

Um ladrão de bicicletas do outro lado do Atlântico

Em geral somos nós quem vai acompanhando o que Paul Krugman, entre outros, tem para dizer, mas desta vez quase pareceu que foi ao contrário. Depois de anteontem aqui termos escrito isto, Krugman escreveu ontem isto, em tradução mais ou menos livre:

“Seja como for, trata-se de duas histórias diferentes. Uma série de obcecados com o défice mudaram de narrativa a meio do caminho sem sequer o admitirem. Dantes o problema era o crowding out; quando este, ao contrário da crise grega, não se verificou, agarraram-se antes à questão da solvência.”

A canção da crise do euro

quinta-feira, 14 de julho de 2011

O Tratado de Lisboa é estruturalmente neoliberal

Diz-se frequentemente que a união monetária, que agora inclui 17 países, tem de ser mantida a bem do projeto europeu. Isto inclui ideais muito válidos, como a solidariedade europeia, a construção de padrões comuns para os direitos humanos e a inclusão social, a manutenção sob controlo dos nacionalismos de extrema-direita e, evidentemente, a integração económica e política subjacente a tal progresso. Mas isto confunde a união monetária, ou zona euro, com a própria União Europeia.

A Dinamarca, a Suécia e o Reino Unido, por exemplo, fazem parte da União Europeia mas não fazem parte da união monetária. Não há nenhuma razão para que o projeto europeu não prossiga e que a UE não prospere, sem o euro.

E há boas razões para esperar que seja isso que aconteça. O problema é que a união monetária, ao contrário da própria UE, é um ambíguo projeto de direita. Se isto não era claro no início, tornou-se agora completamente evidente, numa altura em que as economias mais fracas da zona euro estão a ser sujeitas a punições que antes estavam apenas reservadas para os países de baixo – e médio – rendimento, apanhados nas garras dos Fundo Monetário Internacional (FMI) e dos líderes do G7. Em vez de tentarem sair da recessão através de estímulos fiscal ou/e monetário, como fez a maior parte dos governos do mundo em 2009, estes países estão a ser obrigados a fazer exatamente o contrário, com enormes custos sociais.


Vale a pena ler o artigo todo (aqui).

A estrada de Damasco

«Será que se pode levar um murro no estômago e ver a luz? Pelos Atos dos Apóstolos, sabemos que São Paulo, quando ainda se chamava Saulo e perseguia os cristãos, foi cegado por uma luz fortíssima que o fez cair do cavalo quando viajava na estrada para Damasco. Depois desse momento, mudou de nome e tornou-se no mais importante apóstolo da fé cristã que antes perseguia. Tudo pode acontecer. Sobretudo em Portugal. O que testemunhámos na última semana com o nosso Presidente da República foi um episódio de conversão digno de São Paulo na estrada de Damasco. Cavaco Silva dizia há poucos meses ainda que Portugal tinha de dar a outra face — “não vale a pena recriminar as agências de rating” foram as palavras usadas — agora, quando o governo é do seu partido e a Moody’s nos classifica como lixo, diz que elas “são uma ameaça”. Antes explicou-nos que “não podemos insultar os mercados, que são quem nos empresta o dinheiro”; agora anseia por expulsar os vendilhões do templo.»

(Do artigo de Rui Tavares, no Público de 11 de Julho)

E, contudo, a «luz» fortíssima era já visível, há muito tempo, na estrada de Damasco. Apenas a teimosia insane, alimentada por uma fé cega na liberdade dos mercados, por um espírito medíocre de subserviência e pela cruzada contra o Estado, impede que líderes como Cavaco Silva não percebam as restantes evidências que se desenham, há muito, na estrada de Damasco. Da manifesta inviabilidade da via austeritária, tomada como solução única e inevitável, às disfuncionalidades do modelo de governação económica europeia (com a subjugação do BCE à lógica dos mercados financeiros), passando pela incapacidade de reconhecer nas soluções políticas o único caminho viável para resgatar o sonho europeu, que se esfarela cada dia que passa às mãos de lideranças sem rasgo nem competência.

A recente entrevista de João Ferreira do Amaral a José Gomes Ferreira, no programa «Negócios da Semana» (que infelizmente não se encontra disponível na respectiva página), constitui neste sentido um excelente mapeamento das sinuosidades que desenham a estrada de Damasco, dando conta das principais questões que é preciso discutir para sair da crise. Seria este o debate em que deveriam estar concentrados os líderes europeus. Mas o mais provável é que apenas sejam obrigados a despertar do seu son(h)o ideológico quando o fracasso das opções em que insistem, e reincidem, não mais se possa ocultar perante a luz incandescente das evidências que o mundo real nos oferece a cada dia que passa.

Um verdadeiro murro no estômago

Iniciei uma coluna quinzenal no jornal i. A primeira termina assim:

As agências de notação estavam erradas quando exigiam austeridade aos governos das periferias da UE por terem défices e dívida pública elevados. Por isso, a Espanha e a Itália que se cuidem. Contudo, as razões agora invocadas pela Moody's para descer a notação do país são plausíveis e resumem-se em poucas palavras: a austeridade não resulta. Compreende-se a histeria do Presidente da República e dos arautos da doutrina neoliberal. Pela primeira vez, um actor do sistema financeiro internacional diz-lhes que vamos a caminho do abismo. É um verdadeiro "murro no estômago", como disse o primeiro-ministro, mas sobretudo para o bloco central dos economistas que professam uma teoria económica "da idade das trevas", para usar a sugestiva expressão de Paul Krugman.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Mais Europa à custa da democracia?

Para evitar a ruptura da zona euro têm sido avançadas várias propostas que fariam a UE dar os primeiros passos no sentido de uma união federal. Por exemplo esta:

A alternativa é perdoar a totalidade, ou a maior parte, da dívida pública grega (de qualquer modo é impossível pagá-la); recapitalizar os bancos alemães, franceses (e gregos); conceder à Grécia apoio suficiente para que possa realizar investimento público em infraestruturas num volume tal que arraste o investimento privado e reponha a saúde da sua economia. Se quiserem, este é o cenário “Plano Marshall”. Este plano poderia ser financiado por Euro-obrigações (proposta do Sr. Juncker), por financiamento directo do BCE, ou por uma taxa Tobin (ou por uma combinação destas três formas); assim, ‘o custo para o contribuinte europeu’ seria de menor importância.

Alternativas deste tipo serão de facto alternativas? As Euro-obrigações obrigam os países ricos a assumir a responsabilidade pelas dívidas de todos, pelo menos até certo ponto (por exemplo até 60% do PIB de cada país). O problema, para mim da maior importância, é que a mutualização da dívida dos estados não tem apoio político e, por isso mesmo, nunca foi proposta pelos partidos políticos desses países. Por outro lado, o financiamento através do BCE por criação de moeda poria em causa as condições exigidas pelos alemães quando aceitaram abandonar o marco.

Infelizmente, grande parte do que tem vindo a ser proposto para superar a presente crise assenta num pressuposto que me parece anti-democrático: admite-se que, sob a pressão da finança europeia que não quer suportar qualquer custo, e face ao alto risco de incumprimento dos países devedores, os governantes alemães, holandeses, austríacos e finlandeses acabarão por dar o passo federalista colocando os seus concidadãos perante o facto consumado. Para superar a crise temos de sacrificar a democracia?

Para reflectir sobre esta questão vale a pena ler este texto.

A retórica dos interesses

Como é maleável a retórica dos interesses dominantes. A tese de que os gastos públicos consomem recursos do sector privado que, se libertados, provocarão uma libertação das forças vivas da produção e crescimento económico era ainda há pouco tempo enunciado como verdade evidente por vastos sectores da direita política, apoiando-se na respeitável retórica da direita académica. Setenta anos depois da Grande Depressão, a generalidade da macroeconomia neoclássica tem mantido a lei de Say ligada ao ventilador, desencantando formas rebuscadas de continuar a alegar que toda a oferta gera a sua própria procura, que não há desemprego involuntário, que o conceito de procura agregada não tem fundamento e que a intervenção expansionista do estado é sempre contra-producente e iníqua. Do monetarismo dos anos 70 para a teoria dos ciclos económicos reais dos anos 80 em diante, houve até um retrocesso em termos de realismo, passando a rejeitar-se a mera possibilidade da política monetária (a orçamental fora já discartada) influir no nível de actividade económica e a alegar-se que todas as expansões e contracções são causadas por factores reais (novas tecnologias, chuvas intensas e outras coisas caídas do céu). Toda esta retórica dá imenso jeito em fases de relativa expansão de modo a defender a redução do papel expansivo e estabilizador do estado, não vá a proximidade do pleno emprego ter como consequência que os trabalhadores, menos pressionados pela realidade ou iminência do desemprego, comecem a alcançar direitos e aumentos salariais excessivos e a ter outras ideias mais ousadas. Já quando, como no contexto europeu e norte-americano actual, começa a tornar-se evidente que a procura tem de vir de algum lado e que a austeridade pública é mesmo recessiva, mas se pode argumentar que “tem que ser, pois a dívida é insustentável e o problema tem que ser resolvido assim”, a direita (em Portugal como nos EUA e noutros lados) esquece convenientemente a preocupação com a teoria económica e os convictos anúncios da morte de Keynes. Dispõe de uma retórica igualmente fictícia, mas mais eficaz.

(publicado simultaneamente no Portugal Uncut)

terça-feira, 12 de julho de 2011

Quem pode confiar?

Podemos identificar dois tipos de economistas: os que discutem os problemas da economia portuguesa no quadro da zona euro e dos seus disfuncionamentos e os que, monopolizando o debate público, fingem que o nosso país pode ser pensado de forma isolada, ou seja, no quadro de regras europeias que não querem questionar porque sabem que estas favorecem o seu discurso neoliberal. Assumido pelos austeritários do bloco central, incluindo um Cavaco que no seu discurso de tomada de posse não referiu uma única vez a questão europeia, o moralismo das finanças públicas é hipócrita e equivocado, para além de ser estreito.

Será que isto está desactualizado, agora que os moralistas económicos nacionais, os da instituição de uma economia crescentemente imoral, foram obrigados a começar a descobrir a União Europeia e o euro, indicando assim que não andaram a fazer mais nada este tempo todo do que pura propaganda, com a prestimosa colaboração de demasiados editorialistas, ao serviço de uma agenda política pouco recomendável? Talvez não esteja totalmente desactualizado, já que os moralistas ainda não desistiram da austeridade, a grande oportunidade para enfraquecer ainda mais posição do trabalho que se organiza e para desmontar o Estado social, à boleia de um processo bárbaro de tentativa de correcção conjuntural dos desequilíbrios externos através da destruição económica, o que diz tudo sobre a insustentabilidade deste euro.

Os moralistas falam de promoção da confiança empresarial, quando o investimento privado colapsa, impulsionado pelos sinais dados pelo público, e até de promoção da poupança, quando o peso do crédito malparado das familias, até aqui dos mais baixos na UE, aumenta, graças ao desemprego de massas permanente e à quebra dos rendimentos. Quem pode confiar?

Ciclo de Cinema Memória e Revolução: «Outro País»

Amanhã, quarta-feira, 13 de Julho, a terceira sessão do ciclo «Memória e Revolução», organizado pela Cultra, CES e Casa do Brasil, com a exibição do filme «Outro País» (1999), de Sérgio Tréfaut. A sessão tem lugar na Casa do Brasil (Rua Luz Soriano, 42, no Bairro Alto), às 21.00h, seguido de debate, com a presença do realizador.

Sinopse: «Dezenas de cineastas, fotógrafos e jornalistas, vindos dos quatro cantos do planeta, viram-se envolvidos na revolução dos cravos, e possuem arquivos preciosos. Numa série de entrevistas a estes viajantes, Sérgio Tréfaut confronta o entusiasmo antigo com o olhar contemporâneo. Em alguns casos, segue os mesmos autores para retratar o estado presente do país e reencontrar as personagens fotografadas e filmadas em 1974/75.»

segunda-feira, 11 de julho de 2011

O euro acaba antes do convencimento?

Angela Merkel "convencida" de que Itália vai adoptar plano de austeridade. Será? A Itália, pela sua dimensão, pode bem mudar os dados do problema, indicando mais claramente a natureza sistémica da crise do euro e a miopia das elites europeias, as que impuseram a austeridade nos pequenos e desunidos países das periferias e as que aceitaram a "ajuda". Repito o que escrevi, há um ano, quando colaborava com o i - A política alemã enfrenta uma contradição insanável: salvar os seus bancos impondo um brutal ajustamento estrutural na periferia, ao mesmo tempo que pretende continuar um modelo exportador que requer défices comerciais nestes países. Esta jogada alemã é arriscada e irrealista. A perspectiva de uma década de deterioração económica na periferia, garantida por uma política económica errada, cria as condições para o fim de um euro que tão bem tem servido a burguesia financeira e industrial alemã…

Lançamento


Estão convidados para o lançamento no dia 19 de Julho, às 18h30m, na Livraria Almedina do Saldanha, em Lisboa. João Cravinho fará a apresentação do livro.

domingo, 10 de julho de 2011

Realismo

Em 2006, James Galbraith, um dos mais eficazes críticos dos ficcionistas do mercado livre, escreveu um artigo sobre o paradoxo europeu: “os ideais europeus requerem convergência, mas a política europeia, em especial a política da reforma laboral, impõe a divergência”. Uma estratégia europeia de pleno emprego implicaria reduzir as desigualdades regionais e sociais numa União globalmente mais polarizada do que os próprios EUA. Ninguém com poder quis ouvir, já que estava tudo entretido a “libertar” mercados e a aumentar desigualdades. Agora, Galbraith volta à carga: euro-obrigações e uma política de investimento com escala continental ou a desagregação, resultado da insistência das elites nas mesmas soluções liberais falhadas, de reunião de emergência em reunião de emergência. Ainda iremos a tempo de uma “economia de suporte mútuo” na Europa?

4,5 euros de investimento na cidadania

Para quem quer ir mais além da imprensa "cata-vento", sempre apanhada desprevenida pelo desenrolar da actual crise, a edição portuguesa do Le Monde Diplomatique é incontornável. A edição deste mês é particularmente pertinente.

sábado, 9 de julho de 2011

Para lá do cinismo

“A saúde não é imune à justiça social”, disse hoje Cavaco para justificar o pagamento dos serviços de saúde por quem “pode”. O cínico chefe dos neo-indignados, o que antes dizia que “não vale a pena recriminar as agências de rating”, é, na realidade, um dos muitos que apostaram em usar a crise e a resposta austeritária que a aprofunda como oportunidade para destruir, entre outros, os serviços públicos de saúde, usando, com a mesma desfaçatez de sempre, palavras como justiça social só para tentar dar alguma dignidade a uma agenda que faz as delícias de graúdos nos grupos económicos rentistas e de miúdos na caridade. Foi a pensar nesta novilíngua que escrevi há tempos um artigo em defesa do ideal ameaçado da universalidade dos serviços públicos, uma das principais bases da justiça social.

Amartya Sen: "O euro derruba a Europa"

Hoje, a austeridade apresenta aos olhos dos financeiros vantagens imediatas, mas não é nada seguro que estes vigilantes percebam com clareza como é que a Grécia poderá voltar a crescer estando agora numa recessão brutal. Para além da travagem da economia induzida por estas enormes reduções orçamentais conduzidas com o intuito de manter a qualquer preço a Grécia na zona euro, as próprias características do euro mantêm elevados os preços dos bens e serviços gregos tornando-os muitas vezes não competitivos nos mercados internacionais. Para mim, é um pobre consolo recordar que fui um firme opositor do euro, sendo ao mesmo tempo muito favorável à unidade europeia pelas razões que Altiero Spinelli tinha sublinhado com tanta força. A minha inquietação provinha principalmente do facto de que cada país renunciava assim ao poder de decidir livremente sobre a sua política monetária e as desvalorizações da taxa de câmbio, tudo coisas que no passado foram de grande utilidade para os países que passaram por dificuldades. Isso permitia não perturbar excessivamente o quotidiano das populações para satisfazer um interesse obstinado em estabilizar os mercados financeiros.

Evidentemente é possível renunciar à independência monetária, mas na condição de haver integração política e orçamental, como é o caso dos Estados americanos. A formidável ideia de uma Europa unida e democrática mudou com o tempo, fez-se passar para segundo plano a política democrática e promoveu-se uma fidelidade absoluta a um programa incoerente de integração financeira. Repensar a zona euro levantaria inúmeros problemas, mas as questões espinhosas merecem ser discutidas com inteligência (a Europa deve empenhar-se em fazê-lo) tomando em consideração de forma realista e concreta o contexto, diferente e específico, de cada país. Andar ao sabor dos ventos financeiros que sopram um pensamento económico obtuso e marcado por graves lacunas, frequentemente ditado por agências que apresentam lamentáveis resultados no que toca à previsão e ao diagnóstico, é mesmo a última coisa de que a Europa necessita. É preciso eliminar a marginalização da tradição democrática europeia: é uma necessidade imperiosa. Nunca será demais insistir.

(Excerto de um artigo de Amartya Sen traduzido a partir da versão francesa publicada no Le Monde)

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Electrelane - "Birds"


De Brighton para Barcelos, dia 24 de Julho, no Milhões de Festa. A não perder.

As taxas de juro, o euro forte e os interesses financeiros

Ontem, escrevi um breve post sobre o BCE e a sua política de defesa intransigente dos interesses do capital financeiro. Vale a pena tentar compreender como é que esses interesses se materializam num dos problemas do sistema financeiro do centro europeu a que pouca gente tem dado importância: o custo de financiamento da banca europeia em dólares. Na imprensa nacional nunca li nada sobre o assunto.

O início da história é familiar. Beneficiando dos excedentes da balança corrente de países como a Alemanha e a Holanda e da valorização contínua do Euro desde a sua criação, os bancos destes países investiram fortemente nos mercados externos, financiando países deficitários, como Portugal, e investindo em activos financeiros, em dólares. No entanto, estas posições em dólares precisam de ser refinanciadas pela banca europeia por dois motivos. Em primeiro lugar, se não obtiverem dólares, os bancos alemães e holandeses serão forçados a desfazer as suas posições, incorrendo em perdas que terão de ser assumidas no seu balanço. Em segundo lugar, sem este refinanciamento, a banca europeia não consegue continuar a sua expansão estratégica no mercado norte-americano.

Ora, com a crise financeira, o acesso ao mercado de dólares tornou-se mais difícil e custoso devido à desvalorização do euro durante 2009 e 2010 - o gráfico abaixo mostra o "prémio negativo" que a banca europeia tem de pagar para conseguir comprar dólares. Os bancos alemães, holandeses e franceses viram-se a braços com uma permanente falta de dólares. A melhor forma de resolver o problema é então valorizar o euro face ao dólar, aumentando a diferença positiva das taxas de juro entre os EUA e a zona euro. Os efeitos são recessivos na economia europeia, mas alguns dos problemas de financiamento de uma parte da sua banca são aparentemente resolvidos. Claro como a água.

Estes posts, do João Galamba e de Paulo Pedroso, são bons contributos para uma discussão necessária que precisa de ganhar espaço no debate público.

Para quê?

Prefiro uma crise em 'v', afundar rápido para depois começar a subir, que uma crise que não tem 'v', é só um dos lados, é um plano inclinado.

João Duque

Continua a demonstração de fé na espontânea “reviravolta dos mercados”. Face a uma inane ideologia neoliberal, especializada em ocultar a realidade com metáforas cínicas e em promover políticas que destroem as bases económicas de uma sociedade civilizada, mas que incrivelmente continua a deter um quase monopólio do “debate” público, resta-me recuar quase dois anos e recuperar, por exemplo, a sensatez keynesiana do José Maria: “A ideia de que depois da tempestade vem a bonança e depois da recessão a expansão serve de sedativo. Não admira que seja tão repetida pelos capitães deste enorme Titanic que insistem em ficar no posto a repisar os velhos hábitos, apesar de todos sabermos (eles incluídos) que são responsáveis pelo desastre.”

Fenómeno interessante?

Esta mudança no discurso político, mediante a qual o que era afirmado há pouco tempo pela esquerda mais radical, passou agora a senso comum da direita estabelecida, é um fenómeno interessante, tanto mais que se estende a outras dimensões para além da crítica às agências de ‘rating'.

João Cardoso Rosas

quinta-feira, 7 de julho de 2011

O outro imposto sobre os portugueses

BCE sobe taxas de juro de referência para 1,5 por cento

Deixa lá ver se percebo. Toda a Europa embarcou, de forma mais ou menos violenta, nas políticas de austeridade, que envolvem redução, indirecta ou directa, dos salários. Entretanto, devido à especulação nos mercados de matérias-primas, o preço destas aumentou, dando origem a um ligeiro aumento da inflação na zona euro. O BCE, com o quintal da zona euro a arder, toma este aumento da inflação como o maior risco que a economia europeia enfrenta, já que poderia dar origem a uma espiral inflacionista (não se percebe como, com os salários a cair). Aumenta, por isso, as taxas de juro para reduzir o crédito na zona euro e refrear o crescimento económico (que crescimento económico?), reduzindo a procura e estabilizando os preços. Os efeitos recessivos são agravados para os países onde as famílias e empresas estão fortemente endividadas, como Portugal.

Isto parece fazer tão pouco sentido que qualquer leitor duvidará do parágrafo anterior. De certeza que existirão outros motivos para tal comportamento. Motivos mais racionais. Tem razão. O que o BCE está a fazer não é mais do que defender os interesses financeiros da zona euro, cujo principal inimigo é sempre a inflação - na medida que desvaloriza os activos financeiros -, e proteger a sobrevalorização do euro nos mercados internacionais, tornando os "investimentos" europeus em dólares mais baratos e protegendo o papel do euro enquanto moeda de reserva internacional concorrente do dólar. Talvez nunca tenha sido tão clara a divergência entre os interesses do capital financeiro e os do resto da economia.

O movimento dos neo-indignados

Nasceu ontem, desde que se soube que a Moody’s nos reduziu a lixo, um novo movimento: o dos neo-indignados.

Ele é o Presidente, ele é Passos Coelho, ele são os banqueiros, eles são os comentadores da TV… São todos. Até a madrinha alemã e as suas primas da Europa fazem chegar postaizinhos de pêsames. Todos achavam ontem que as agências de rating desempenhavam uma função, ou pelo menos que faziam parte da paisagem. Pedro Guerreiro falou por todos eles, escreveu em bom português o manifesto dos neo-indignados.

A reacção lembra a do cônjuge traído – “dei-lhe tudo e agora isto?” Pois é, eu compreendo, ela é uma megera: foram anéis, contas bancárias, casas de férias e agora que acha que não vais conseguir pagar as dívidas vai-se embora – oh mercados ingratos!

Mas agora falando a sério para os neo-indignados. Digam lá: não chega já de brincar ao bom aluno para de passagem nos fazer engolir como terapia de choque o vosso programa de abertura aos negócios do espaço da provisão pública, de destruição do direito do trabalho e dos direitos dos trabalhadores, de consolidação dos privilégios com a reconstrução das barreiras de classe no acesso aos cargos públicos e privados, à escola, aos melhores espaços na cidade, a paraísos artificiais de férias permanentes na natureza?

Recordar é viver



Agora que os que dirigem o cortejo fúnebre da economia portuguesa falam de imoralidade e de abuso por parte das agências de notação, quando antes nos aconselhavam, liderados pelo cangalheiro Cavaco, a não discutir com os "mercados", é tempo de recordar:

Neste momento, as três mais importantes agências de notação financeira, precisamente as aqui denunciadas, noticiam e divulgam, diariamente, classificações de rating que, com manifesto exagero e sem bases rigorosamente objectivas, penalizam os interesses portugueses, originando uma subida constante, dos juros da dívida soberana.

José Reis, José Manuel Pureza, Manuela Silva e Manuel Brandão Alves, Introdução ao texto da denúncia facultativa contra três agências de rating, Abril de 2011.


É notável que as avaliações de agências que se celebrizaram por cometer erros do tamanho desta crise sejam agora utilizadas para justificar o regresso às políticas que nos trouxeram ao Estado actual.

José Gusmão, AAA em descaramento, Janeiro de 2010.


No momento em que os Estados se endividam na tentativa de resolver os problemas criados, em parte, por estas agências, estas cortam, ou ameaçam cortar, a sua notação, dificultando a resposta à crise.

Nuno Teles, O opaco preço da liberalização financeira, Janeiro de 2009.


É inaceitável que o Governo de Portugal continue a tomar decisões como se as empresas financeiras que "dão notas" aos Estados ainda tivessem, elas próprias, alguma credibilidade. Como se tudo estivesse a funcionar segundo a normalidade neoliberal e a auto-regulação em que Greenspan acreditava não nos tivesse levado ao desastre.

Jorge Bateira, O país tem fraca reputação, diz o ministro, Outubro de 2008.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Tinarewen com os "TV on the Radio"

Quatro cenários

1-O actual plano de austeridade PSD/PP funciona. O défice é reduzido, a recessão acaba dentro de um ano e meio e os mercados recebem de braços abertos o refinanciamento de dívida a preços marginalmente superiores aos praticados antes da crise. O crescimento económico mundial recupera em força, inundando os mercados de capitais e absorvendo ondas de emigração portuguesa. Portugal volta assim ao seu estado ex-ante de medíocre performance económica, já que vive com um estado manietado pela necessidade de saldos primários positivos (continuação da austeridade) impeditivos de qualquer reestruturação económica que não a que é feita pela redução dos salários directos e indirectos. Um país onde dificilmente se conseguirá uma vida decente.

2-Depois de um provável incumprimento (e saída do euro) da Grécia, a Europa decide-se a mutualizar a dívida pública europeia através de euro-obrigações. Associado vem obrigatoriamente um “ministro” das finanças europeu, como propõe o Sr. Trichet, que impõe a continuada austeridade na periferia, agora traumatizada pelo que aconteceu na Grécia. As economias da periferia entram em declínio face ao centro, até aos periféricos se fartarem da perda contínua de soberania e dos custos associados.

3-A Europa não chega a acordo e deixa os pequenos países da periferia entrar em incumprimento desorganizado. Devido às suas necessidades de financiamento público, são forçados a sair do euro. A banca colapsa e o crédito congela. Forte contracção do produto e instabilidade social. À argentina. A recuperação depende de aparecer um governo à Kirchner. Os países do centro recapitalizam o BCE e assumem as perdas do Fundo europeu através de transferências fiscais. Politicamente, é mais fácil convencer os eleitores que tal pagamento é o custo de se terem livrado dos países “mal comportados”.

4-Os países da periferia negoceiam uma saída organizada (e secreta) do euro com a UE. Dá-se um default através da desvalorização cambial subsequente, introduzem-se controlos de capitais e a banca é imediatamente nacionalizada e recapitalizada através da emissão monetária, prevenindo os efeitos de uma crise bancária. Os governos tomam as provisões necessárias anteriores ao anúncio para prevenir problemas de pagamentos e aprovisionamento de bens essenciais (da alimentação ao petróleo). Numa segunda fase, as reservas de ouro são utilizadas para estabilizar o câmbio. Adopta-se uma política industrial virada para a resolução do défice externo.

Nenhum dos cenários é agradável. Os cenários 1 e 4 são mais improváveis. O primeiro pela racionalidade económica (acho que é mais provável ganhar o Euromilhões), o quarto por ser politicamente impraticável. No actual rumo, estamos a caminho do terceiro.

Poder

O governo tenta agora discutir com as agências de notação, argumentando que está a desenhar políticas consensuais a pensar nos melhores interesses dos chamados mercados. Esforço inglório porque não estamos no domínio de qualquer racionalidade comunicativa, mas sim no domínio do puro exercício de poder. Quem aceita e até naturaliza uma configuração institucional que potencia a afirmação do poder financeiro, quem se deixa submeter e isolar, perde sempre. Como sublinha José Reis, as agências de rating “são insaciáveis porque o que preconizam é pôr mais crise em cima da crise”. Fica a lição: “Espero que o Governo veja que não vale a pena apostar só na austeridade. Tomou uma medida tão violenta, como o imposto extraordinário, e a agência de rating marimbou-se nisso. Foi um balde de água fria para o Governo”.

Erro vital

Vital Moreira, em plena versão ordoliberal da “economia zumbi”, repete pela enésima vez o mesmo erro: pensar que a “crise das finanças públicas” é causa do nosso problema económico, quando é precisamente sua consequência, como já aqui argumentei. Está tudo trocado e por isso Vital tem de recorrer à versão hiper-voluntarista da confiança, que partilha com o governo das direitas, o governo do destrutivo “programa robusto e sistémico de ajustamento” feito a pensar nos mercados, verdadeiro pensamento mágico, sem qualquer base empírica, de que o PS se terá de livrar. O lixo é este consenso político.

Pede-se então um pouco mais de rigor, se faz favor: baseado em inquéritos às empresas, o próprio Banco de Portugal tem indicado que é a perspectiva de evolução da procura que condiciona o investimento e, secundariamente, o acesso ao crédito. A austeridade, em nome de um suposto saneamento das finanças públicas, deprime a procura interna, e não há exportações que a compensem num contexto em que os países com excedentes se mantêm apostados em tentar mantê-los. Assim se promove a quebra de rendimentos, o desemprego e a fragilização financeira dos agentes económicos, gerando, em círculo vicioso, novos problemas nas finanças públicas e cada vez maior relutância na concessão do crédito.

É preciso que sejam os poderes públicos nacionais e europeus a promover a retoma, claro, estimulando a procura e logo a confiança. A fase ascendente do ciclo económico e um pouco de inflação, o sal do crescimento, associadas a um combate ao “Estado fiscal de classe”, permitirão tratar das finanças públicas. A experiência das economias desenvolvidas com as dívidas de guerra, pagas na medida do crescimento que resultou da instituição de economias mistas no pós-guerra, indica isso mesmo. Nos raros casos em que a austeridade resultou nos termos de Vital, as economias dispunham da possibilidade de desvalorização cambial e/ou de reduzir as taxas de juro, o que não está ao nosso alcance. Pelo contrário, os sinais dados pelo BCE nesta matéria são terríveis. Precisamos de tempo. Para ganharmos tempo, precisamos de enfrentar o constrangimento europeu com a arma das periferias, a ameaça de reestruturação da dívida liderada pelos devedores, e obter uma reconfiguração da forma de financiamento dos Estados periféricos: euro-obrigações. Sem reformas deste tipo, estamos condenados a mais uma década perdida em termos de crescimento e a assistir à abertura de fracturas sociais cada vez maiores. As consequências da economia zumbi são selectivamente letais.

Ciclo de Cinema Memória e Revolução (II)

Na segunda sessão do ciclo (hoje, 6 de Julho), organizado pela Cultra, CES e Casa do Brasil, serão exibidos os filmes «A Lei da Terra» (1977) e «Luta do Povo: Alfabetização em Santa Catarina» (1976), da Cooperativa Grupo Zero. A sessão terá lugar às 21.00h na Casa do Brasil (Rua Luz Soriano, 42, no Bairro Alto), sendo a projecção seguida de um comentário de António Loja Neves (jornalista e divulgador, programador e crítico de cinema) e de debate.

Sinopse («A Lei da Terra»): «A Lei da Terra é um documentário assinado pela cooperativa de filmes Grupo Zero, sendo a sua realização atribuída a Alberto Seixas Santos. Ideologicamente empenhado no apoio da luta dos trabalhadores, o documentário opta por uma abordagem de estilo objectivo: há uma narração em voz off que expõe os factos e contextualiza historicamente a luta dos trabalhadores agrícolas alentejanos. Pela voz de alguns entrevistados, declaram-se as condições de vida relativas ao emprego sazonal, ao trabalho jornaleiro incerto e árduo, às caminhadas longas, à fome e à miséria. Através de testemunhos, explica-se como as cooperativas se organizaram para trabalhar as terras abandonadas. Neste salto do particular para o geral, o exemplo tomado como regra cumpre uma função de validação e assume uma posição partidária da luta.»

Sinopse («Luta do Povo: Alfabetização em Santa Catarina»): «O golpe de Estado de 1974 desencadeou um processo revolucionário em que a modificação radical das relações que até então se processavam no seio da família, no trabalho e no conjunto da sociedade jamais permitiu retrocesso. Se muitos tentam pintar esse processo convulsivo, e inevitavelmente conturbado, como um desastrado momento de rebeldias gratuitas e simplesmente folclóricas, este filme da Cooperativa Grupo Zero contém a resposta mais cabal que poderemos dar a tais interpretações analiticamente pouco sérias. Naqueles anos de brasa, raras vezes se filmou tão judiciosamente o povo tomando nas mãos o seu futuro. Na aldeia Santa Catarina, no Alto Alentejo, o povo discute a sua vida, os seus valores, as suas necessidades. Um dos pontos de encontro é o curso de alfabetização. Alfredo é um dos alunos. Homem feito e "crestado" do trabalho na terra, só aos 44 anos pode finalmente a ler e a escrever o essencial, porque em pequeno tinha sido tempo de "trabalhar, passar fome e levar porrada." Com o advento da democratização, aprenderá as letras e com elas mais do que é a política, a participação no pulsar colectivo da sua comunidade, a vida organizada e livre de peias na cooperativa agrícola a que pertence.»

terça-feira, 5 de julho de 2011

Para não cairmos no abismo

A agência de 'rating' cortou em quatro níveis o 'rating' de Portugal para 'Ba2' devido ao risco de o País precisar de um segundo resgate. ... A Moody's explica esta revisão em baixa com dois factores. Por um lado, a casa de 'rating' argumenta que existe o risco crescente de Portugal precisar de um segundo pacote de empréstimos internacionais antes de conseguir regressar aos mercados com "taxas de juro sustentáveis" no segundo semestre de 2013.

A Moody's indica também que existe uma "possibilidade crescente de a participação dos investidores privados [nesse segundo 'bailout'] ser imposta como pré-condição" de uma nova ronda de empréstimos internacionais, tal como está a ser estudado em relação à Grécia. (Notícia do DE)

Os dirigentes europeus, incluindo o Banco Central Europeu, têm mais medo das agências de notação do que dos bancos. Estas dispõem de um enorme poder na zona euro que não dispõem em nenhum outro lugar. ... O Banco Central Europeu está a delegar as suas principais decisões políticas em agências de notação de risco (americanas), que têm um desempenho terrível e que continuam a não ser minimamente responsabilizadas.
(Paul De Grauwe no Expresso, 2 Julho 2011, p. 30)

De facto, a austeridade não compensa, bem pelo contrário. E como não podemos ficar eternamente dependentes de sucessivos pacotes de financiamento, sob condição de austeridade contraproducente, salta à vista que o primeiro passo para a saída da crise não é um pedido à UE e ao FMI para que tenham a bondade de nos deixar iniciar uma renegociação da dívida pública com os nossos credores.

O primeiro passo para não cairmos no abismo só pode vir de um governo que rompa com a política de austeridade e a ditadura dos mercados financeiros, suspenda o pagamento da dívida e faça uma auditoria para decidir o montante e as condições da dívida que o País pode pagar.

As esquerdas têm o dever de começar a preparar uma plataforma política alargada que proponha ao País um governo de ruptura com esta política económica suicida.

Com o agravamento da crise, o aparecimento dessa alternativa faria acelerar a perda de legitimidade da actual coligação e criaria condições favoráveis a uma fractura da coligação governamental e à convocação de novas eleições. Os portugueses não vão esperar quatro anos de austeridade e privatizações para, do fundo do abismo, dizerem o que pensam.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Não há mercados sem planos…

“Nem todos os detalhes são claros, mas o plano faz pouco para ajudar a Grécia e muito para ajudar os bancos.” Quem o diz é a The Economist, num primeiro balanço das últimas engenharias que estão a ser elaboradas pelos grandes bancos e pelos seus representantes políticos no centro europeu para tentar mitigar e adiar o inevitável: os “investidores” recebem 30% do capital investido nas obrigações gregas que chegam à maturidade nos próximos anos, graças aos empréstimos europeus, e comprometem-se a reinvestir voluntariamente 70% em novas obrigações com prazos dilatados e com juros generosos; o Estado grego, por sua vez, coloca 30% deste reinvestimento num “veículo financeiro especial” que compra obrigações com notação máxima (AAA) que servirão como “seguro” para os investidores em caso de incumprimento. É mais ou menos isto.

O negócio é bom para os bancos, diz a The Economist, porque lhes permite desde já embolsar algum dinheiro, evitar perdas imediatas de grande dimensão, que podem bem ser da ordem dos 50%, e receber juros atractivos. Para a Grécia, pelo contrário, o plano é pouco atractivo porque “não faz nada para reduzir o fardo da dívida e pode complicar uma eventual reestruturação” a sério, embora as agências de notação e a Comissão discutam agora se um plano deste tipo configura ou não um “incumprimento selectivo”. As palavras são importantes também em economia política.

Seja como for, continuamos no domínio da real ajuda cooperativa, mais ou menos sofisticada dadas as circunstâncias políticas e económicas, aos bancos, mascarando a crise sistémica com centro nos bancos, em que Yanis Varoufakis tem insistido, e da fictícia “ajuda” à Grécia através de empréstimos usurários, de austeridade punitiva e de formas de controlo político de tipo neo-colonial. Um plano neoliberal, um plano definido pelos grandes interesses financeiros, que, tal como os planos que desenharam o euro ou os mercados financeiros liberalizados, vai acabar mal.

O austeritarismo não passará!

Um aspecto em aberto é o de saber se o liberalismo anti-igualitário e conservador deste Governo será ou não democrático. Parece-me significativo que Passos Coelho tenha nomeado como seu assessor político alguém que considero ser o nosso mais talentoso crítico da democracia: o meu amigo e ex-aluno Miguel Morgado. Uma das ideias fortes do Miguel é a de que "todos os Governos funcionantes são autoritários" e que, em democracia, não é possível a existência de autoridade. Isso leva-me a pensar que a grande tentação do actual Governo, no seu afã de ser "funcionante", consistirá em invocar uma espécie de estado de emergência - a lembrar Carl Schmitt - devido à ameaça de bancarrota, impondo autoritariamente à sociedade portuguesa uma liberalização radical da economia e das funções sociais do Estado, muito para além do memorando de entendimento e contra o espírito da Constituição. Para isso não será necessário um golpe de Estado no sentido clássico. A invocação da absoluta excepcionalidade do momento será suficiente, desde que os restantes órgãos de soberania, em especial o Presidente, deixem passar a procissão. (João Cardoso Rosas, DE)

New Deal na Europa

O que têm em comum Giuliano Amato, Enrique Baron, Michel Rocard, Jacek Saryusz-Wolski, Mario Soares, Jorge Sampaio e Guy Verhofstadt? São ex-líderes europeus, com responsabilidades na actual configuração da integração europeia, que apelam agora a um New Deal na Europa, superando esta austeridade contraproducente. Defendem a adopção de alguns dos pontos da chamada modesta proposta, elaborada pelos economistas Yannis Varoufakis e Stuart Holland, e já defendidos por Jean-Claude Juncker e Mario Tremonti. Trata-se, entre outras coisas, de converter uma parte da dívida nacional em dívida europeia através da emissão de euro-obrigações para "financiar a recuperação económica em vez da austeridade" e para diminuir o poder das agências de notação. A alternativa a isto é o fim do euro...

domingo, 3 de julho de 2011

As Operações SAAL


«O Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL) constitui um episódio singular na história das políticas de habitação em Portugal. Concebido e implementado no contexto da revolução do 25 de Abril, o SAAL pressupõe a efectiva participação das classes populares nos processos de alojamento. O diálogo entre moradores e associações de moradores, serviços públicos e brigadas técnicas, estabelece um estimulante e nem sempre pacifico confronto entre diferentes conhecimentos, linguagens e modos de encarar a casa, o bairro e as próprias cidades.»

O documentário de João Dias, «As Operações SAAL» (2007) é exibido amanhã, segunda-feira, no Teatro Cerca de São Bernardo (Coimbra), às 21.30h, seguido de um debate com José António Bandeirinha. A projecção insere-se nas actividades do Estágio Ciência Viva, «Cidades e Participação Cidadã», organizado pelo CES. A entrada é gratuita.

Economia política da (des)união europeia

Propostas como as euro-obrigações para financiar os Estados europeus em melhores condições, o reforço do papel do Banco Europeu de Investimento, a taxação à escala europeia das transacções financeiras, uma proposta tão óbvia que até a Comissão Europeia dá sinais de a defender, ou a criação de uma agência europeia pública de notação vão fazendo o seu caminho no meio das ruínas deixadas pelo social-liberalismo.

Parecem ser cada vez mais os social-democratas que reconhecem que esta integração europeia assimétrica – a coexistência de uma união monetária e financeira guiada pelos interesses do capital financeiro com a fragmentação nacional de políticas sociais, laborais e fiscais, cada vez mais condicionadas por orientações neoliberais emanadas de Bruxelas e Frankfurt, sem instrumentos relevantes de política económica contracíclica ou de transformação económica estrutural progressiva a qualquer escala – tem contribuído decisivamente para a erosão dos elementos de incrustração social-democrata das economias nacionais.

Uma das traduções políticas desta assimetria foi aliás hoje bem formulada em artigo no Público: “A Europa tem cada vez mais políticas sem política ao nível da UE, e política sem políticas ao nível nacional. Esta dissonância cria uma atmosfera de instabilidade propensa a acidentes”. O esvaziamento europeu da política democrática facilita todas as tarefas liberais.

O social-democrata alemão Fritz Scharpf, um influente teórico da integração europeia, tem também identificado muitas das fontes económico-legais da referida dissonância europeia, que erode o que chama de “economias sociais de mercado”, defendendo, em interessante comunicação recente, que a austeridade com escala europeia, inscrita nas regras deste euro, ameaça os Estados democráticos, a sua legitimidade e capacidade, sobretudo na periferia, e o próprio projecto de integração, já muito fragilizado por sucessivos enviesamentos liberais. E assim se alimentam todos os ressentimentos e todas as desuniões...

Grécia, Canto Geral



VOY A VIVIR

Pablo Neruda, Canto General, 1949

Yo no voy a morirme. Salgo ahora
en este día lleno de volcanes
hacia la multitud, hacia la vida.
Aquí dejo arregladas estas cosas
hoy que los pistoleros se pasean
con la “cultura occidental” en brazos,
con las manos que matan en España
y las horcas que oscilan en Atenas
y la deshonra que gobierna a Chile
y paro de contar.
Aquí me quedo
con palabras y pueblos y caminos
que me esperan de nuevo, y que golpean
con manos consteladas en mi puerta.

Música e direcção da orquestra e coro de Mikis Theodorakis, nascido em 1925 na ilha Grega de Chios.

sábado, 2 de julho de 2011

Traduções e expropriações

O Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM), dinamizado por Eric Toussaint, que esteve em Lisboa na quinta-feira num seminário muito participado, tendo depois sido entrevistado, disponibiliza um manual para conduzir auditorias à dívida dos países do "Sul" que pode ter algumas lições para as periferias europeias. É por isso que, em breve, estará disponível uma tradução portuguesa. Aliás, o CADTM, como este informativo livro colectivo acabado de lançar indica, tem também vindo a centrar a sua atenção recente na crise da dívida a "Norte". A história repete-se? De alguma forma: a expropriação financeira das periferias europeias expressa, por exemplo, no TGV anual de juros de que falava Santos Pereira antes de ser o Álvaro, super-ministro, num quadro recessivo induzido por uma austeridade que tem a mesma lógica dos programas de ajustamento estrutural de tão má memória, indica a insustentabilidade da situação e a ilegitimidade de uma economia marcada pelo domínio do capital financeiro sobre o resto da sociedade.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

American way...

A saída construtiva seria reestruturar a dívida excessiva, recapitalizar os bancos afectados e relaxar a austeridade o suficiente para permitir que os países devedores – Grécia, Irlanda e Portugal são os que estão em risco maior – voltem a crescer para terem solvência.

New York Times, Leaderless in Europe, 28 de Junho (via esquerda)

Eles repetem-se...

Estou sem tempo para fazer outra coisa que não seja repetir o que neste blogue temos dito, agora a propósito da nova ronda de austeridade que, uma vez mais, corta directamente os rendimentos da maioria dos trabalhadores: o governo até pode cortar na despesa e tentar aumentar as receitas de forma manhosa, erodindo a moralidade fiscal, mas não controla o défice orçamental, porque não controla a reacção no lado das receitas, e mesmo em algumas rúbricas da despesa pública, à recessão induzida pela quebra na procura graças a sucessivas rondas de austeridade. É o tal círculo vicioso que também tem sido gerado pela decisão de proceder a transferências de rendimentos para o buraco sem fundo criado pelo capital financeiro e de activos para os sectores rentistas. Os compromissos do governo só são firmes com quem aposta na transformação do poder do dinheiro concentrado em poder político. Vítor Gaspar bem que pode falar de credibilidade e de confiança com toda a calma do mundo. As duas palavras do pensamento económico mágico, que já achou, e nos sectores lunáticos ainda acha, que a austeridade podia ter efeitos expansionistas, exprimem cinismo ou cegueira ideológica. É a perspectiva de evolução da procura e, secundariamente, o acesso ao crédito que determinam o investimento. Quem pode ter confiança?