quinta-feira, 23 de setembro de 2010

O problema da direita


A direita tem um problema: é-lhe difícil dizer claramente o que pensa e o que quer. A direita pensa que os despedimentos individuais não precisam de justa causa, que deve haver um serviço nacional de saúde e uma escola pública para pobres e um mercado de saúde e de educação para ricos que paguem menos impostos. Mas quando o diz ou dá a entender, as pessoas não gostam de ouvir. É então que a direita cai do alto nas sondagens. Isso parece ter sido exactamente o que aconteceu ao PSD com as suas propostas de revisão constitucional.

É claro que as pessoas têm muita razão em não gostar das coisas que a direita realmente quer. Não gostam de empresas em que é preciso obedecer ao chefe para lá do aceitável sob pena de despedimento por razão “atendível”. Não gostam de um país dividido com hospitais e escolas pobres para os pobres e hospitais e escolas mais a sério para os ricos que pagam menos impostos. As pessoas sabem que isto tudo para além de injusto, é estúpido: ainda sai mais caro a todos do que o SNS e a escola pública universal e tendencialmente gratuitos.

Já que não pode dizer o que pensa e o que quer a direita tergiversa. O que é então dito?: “Ora essa até gostamos muito do Estado Social, o problema é que ele é insustentável e vocês devem meter isso na cabeça”. “Nós até queremos que quem não pode pagar tenha hospital e escola”. O que fica por dizer: “Nós até não nos importamos de pagar um dinheirão pela saúde e educação desde que paguemos menos impostos; apenas os impostos suficientes para garantir uma saúde e uma educação mínima a quem não pode pagar, além de uma polícia de segurança pública que nos proteja a vida e a propriedade”.

Já a esquerda, ou as esquerdas se quiserem, tem outros problemas. Mas este não tem: não perde em dizer com verdade aquilo que quer.

Portugal tecnológico?

Está decorrer na FIL a 3ª edição do Portugal Tecnológico. Para quem não conhece, trata-se duma mistura de feira de negócios de empresas tecnológicas, de montra do melhor se faz em Portugal – em termos empresariais e também de políticas públicas (sim, na administração pública portuguesa há quem, competentemente, prossiga objectivos de política industrial) – e, obviamente, de mais um momento de propaganda governamental.

O site do evento não tenta esconder esta sua terceira dimensão. Logo de início é-nos oferecida uma fotografia do Primeiro Ministro, acompanhada de uma frase da sua autoria: “A balança tecnológica portuguesa tornou-se persistentemente positiva. Quer dizer, Portugal passou a integrar o conjunto de países que exportam mais bens e serviços tecnológicos do que aqueles que importam.” Não é a primeira vez que Sócrates utiliza a evolução recente da Balança Tecnológica como exemplo da modernização tecnológica do país. Mais cedo ou mais tarde, apercerber-se-á que não presta um bom serviço a esse desígnio – nem à credibilidade do seu governo.

Desde logo, a ideia de que a Balança de Pagamentos Tecnológica (BPT) é um bom indicador da posição do país no comércio internacional de produtos tecnológicos é simplesmente errada. De acordo com a definição do Banco de Portugal, a BPT engloba as transacções dos seguintes itens: Direitos de aquisição e utilização de patentes, marcas e direitos similares; Serviços de assistência técnica; Serviços de investigação e desenvolvimento; Outros serviços de natureza técnica. Ou seja, em nenhum caso estamos a falar de “bens tecnológicos”, mas sim de direitos de propriedade industrial – onde o desempenho comercial do país é sistematicamente negativo – e de serviços. O facto de o país exportar mais serviços tecnológicos do que aqueles que importa não deixa de ser boa notícia, mas há que mantê-la nas suas proporções. Em primeiro lugar, o saldo positivo da BPT foi de 85 milhões de euros em 2009, ou seja, uns modestos 0,05% do PIB. Em segundo lugar, a sustentabilidade deste saldo positivo está longe de estar garantida, como mostra a evolução dos últimos anos.

Fonte: Banco de Portugal

Por outro lado, quando analisamos a evolução da balança de produtos transformados deparamos-nos com uma realidade bem distinta: a importação de bens de alta e média alta tecnologia correspondeu em 2009 a 12,8 mil milhões de euros, enquanto a exportação do mesmo tipo de bens ficou-se pelos 7,2 mil milhões. Ou seja, o saldo do que poderíamos chamar “Balança de bens tecnologicamente intensivos” apresenta um valor negativo de 5,7 mil milhões de euros. Perto disto, o saldo positivo da BPT não significa muito, pois não?

Adicionalmente, também aqui, o que vinha sendo uma evolução favorável até há poucos anos atrás tem vindo a deteriorar-se com a crise.

Fonte: GEE


Na verdade, nada disto é surpreendente. Que a economia portuguesa é sobre-especializada em sectores de baixa intensidade tecnológica não é novidade. E a recente redução do peso das exportações mais intensivas em tecnologia apenas traduz a dependência histórica que temos de uma mão cheia de multinacionais no que toca a tecnologia avançada (cujos resultados recentes se limitam a reflectir a crise internacional).

E nada disto deverá menorizar as dinâmicas de inovação que se vão vislumbrando no tecido económico português e que, aqui como noutros países, têm beneficiado de uma acção empenhada de algumas agências públicas. É esta parte da mudança necessária que se pode ver no Portugal Tecnológico. Mas o problema do padrão de especialização não se resolve em pouco tempo - exige objectivos claros, focalização e persistência dos responsáveis políticos. Se o governo insistisse mais nesta mensagem e menos na estatística de circunstância, não nos arriscaríamos tanto a ver ir por água abaixo os esforços que muitos têm investido na modernização do país – quando as mesmas estatísticas, por razões conjunturais, vierem a mostrar-se menos apelativas.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

John Maynard Keynes


Excertos da recensão ao livro "John Maynard Keynes", de Paul Davidson, que publiquei no Le Monde Diplomatique (edição portuguesa) deste mês.

A crise financeira de 2007-2010 revelou as fragilidades do pensamento económico dominante na academia e nos círculos políticos. A hegemónica teoria neoclássica, assente nos postulados da eficiência dos mercados, não conseguiu prever a crise, não a soube explicar, nem, consequentemente, apresentar prescrições políticas para debelar os seus efeitos. A crise teria sido um «cisne negro», provocado pela ganância e ilegalidades de uns quantos banqueiros. Assistimos, nos primeiros meses de crise, e face à urgência de não se cair numa nova «grande depressão», à recuperação das políticas monetárias (redução das taxas de juro e injecção de liquidez) e orçamentais (aumento dos défices públicos). Estas políticas pareciam simbolizar a recuperação das propostas do mais influente economista do século XX, John Maynard Keynes.(…)

Neste âmbito, a obra publicada pela Actual Editora sobre a vida e obra de Keynes pelo, provavelmente, mais destacado economista pós-keynesiano vivo, Paul Davidson, é muito significativa. Esta obra destaca-se por fornecer uma excelente síntese do pensamento de Keynes, colocando-o em confronto quer com o pensamento clássico, hegemónico durante a vida do economista, quer com a subsequente síntese dita keynesiana nascida do trabalho de Paul Samuelson, que conta, na sua versão contemporânea, «neo», com alguns dos mais conhecidos economistas da actualidade, como Paul Krugman ou Joseph Stiglitz.

Conceitos-chave do pensamento, como o de incerteza radical, procura agregada, preferên¬cia pela liquidez ou socialização do investimento, são explicados em pormenor e à luz não só da luta das ideias na teoria económica, mas recorrendo a inúmeros exemplos da economia real das últimas décadas. (…)

As prescrições políticas advogadas por Keynes e pelos seus seguidores pós-keynesianos − Abba Lerner, Hyman Minsky ou John Kenneth Galbraith − para uma maior regulação dos mercados financeiros, intervenção pública na estabilização do ciclo económico e promoção do pleno emprego ou a regulação pública internacional dos fluxos internacionais de bens e capitais surgem aqui com uma robustez teórica cuja derrota no campo político só se pode dever à marginalidade a que foram condenadas na academia.

Num mundo onde o keynesianismo é tão rapidamente proclamado como consensual (em 2008), como atirado para o caixote do lixo das ideias (vejam-se as contracíclicas medidas de austeridade impostas um pouco por todo o mundo como eloquente exemplo), Paul Davidson fornece um exaustivo mapa para o mais importante pensamento económico do século XX, mostrando habilmente como este foi apropriado e abastardado teórica e politicamente nos últimos 60 anos. Em suma, Davidson mostra, sem sectarismos, como ao contrário do que diz a afirmação que se atribui a Richard Nixon no início dos anos 70, não somos, nem nunca fomos, todos keynesianos. (…)

Cadê?

Talvez não. Porque há sempre um momento em que um bloquista tende a fazer demagogia. Um exemplo: ao fazer alusão à queda da receita fiscal em sede de IRS, Gusmão escreve: “-7,7% na tributação progressiva dos rendimentos do trabalho e alguns de capital, apesar do aumento das taxas”. A quebra de receita com origem na “tributação progressiva dos rendimentos do trabalho” acontece porque houve um aumento do desemprego, logo menos rendimentos do trabalho sujeitos a tributação. Não se pode tributar os rendimentos de quem não os tem, “apesar do aumento das taxas”.

Cadê a demagogia? O ponto que faço em todo o artigo (com o qual começo e com o qual termino) é o de que a política de austeridade é perversa e ineficaz mesmo do ponto de vista do ajustamento orçamental. Contraponho a ideia de que o ajustamento orçamental só pode ser conseguido de forma sustentável através do combate ao desemprego. O autor do post citado acusa-me de demagogia por não referir que a quebra na receita fiscal se deve ao aumento do desemprego. Agradeço a ajuda, mas o contributo do sr. assessor do Governo só pode ser lido como uma crítica ao empregador. É que a dinâmica do desemprego é pelo menos em parte uma responsabilidade do Governo. Ou não?

Ainda a crise da social-democracia

Vítor Dias descasca muito bem o artigo de Vital Moreira no Público de ontem sobre a crise da social-democracia. Um processo de autodestruição, condicionado pela participação na viragem neoliberal da integração europeia, como já aqui ou aqui defendi. Acrescentaria um ponto ideológico: do que eu conheço, Vital Moreira é o melhor representante nacional do chamado ordoliberalismo de origem alemã, precisamente uma das mais destacadas correntes do colectivo intelectual neoliberal na economia política. Muito influente na construção europeia e na colonização ideológica da social-democracia. A expansão deliberada da concorrência de mercado como alfa e ómega do legislador e das politicas públicas: a mão invisível requer várias mãos visíveis. Uma defesa da pilotagem de um capitalismo em processo de purificação por mãos sem pressões da “turba” democrática. Um anti-keynesianismo feroz. Assim, ainda mais estranhas soam as diatribes tardias de Vital Moreira contra o neoliberalismo. Um pouco de transparência e de consistência, por favor.

Nota bibliográfica. Sobre o neoliberalismo, em geral, e o ordoliberalismo, em particular, leia-se o presciente “Nascimento da Biopolítica” de Michel Foucault, recentemente traduzido entre nós. E traduza-se, por favor, o livro acima indicado, que desenvolve as suas ideias.

Aldrabices simétricas

Lá para os lados da direita intransigente, do cachimbo ao insurgente, andam todos ufanos a relembrar manifestos e a assinalar nomes. Fazem bem porque a memória é uma arma. Eu assinei um manifesto que dava prioridade ao emprego e não tenho razões nenhumas para mudar de posição. Na realidade, não houve, à escala europeia, nenhuma iniciativa concertada de estímulo deliberado da economia. O somatório dos estímulos nacionais é relativamente reduzido. O mesmo não se pode dizer de outras regiões menos presas a dogmas. Ao contrario do que afirmou até certa altura a propaganda socrática, que a direita intransigente comprou numa aldrabice simétrica, o défice orçamental em Portugal deve-se quase exclusivamente à inevitável quebra de receitas e, embora muito menos, ao aumento automático e também inevitável de algumas despesas e não a qualquer impulso deliberado através do investimento. As restrições externas de financiamento devem-se à mais do que previsível acção dos mercados financeiros sem trela. De resto, o nosso diagnóstico das falhas institucionais europeias neste contexto – do BCE ao PEC, passando pela perversa separação entre política orçamental e monetária –, confirma-se e condiciona tudo. Felizmente, não estamos sozinhos no diagnóstico e na proposta.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Já podem ser amigos do Ladrões no Facebook

AQUI.

A economia executada


Os dados da Execução Orçamental até Agosto estão a suscitar um debate, ou melhor dizendo, vários debates sobre o andamento da nossa economia e sobre as escolhas que têm sido feitas sobre os instrumentos privilegiados para o ajustamento. Para lá das visões parciais promovidas a este respeito (as árvores que cada um escolhe para pôr a floresta ao seu jeito), é interessante perceber algumas das tendências de fundo que se começam a clarificar.

1. O que a análise geral destes números demonstra é que as boas notícias na frente orçamental estão ligadas a alguns dos melhores (ainda que tímidos) sinais de recuperação económica e que, da mesma forma, as más notícias são também elas inseparáveis da fraca dinâmica de crescimento e do agravamento da situação social. O que indicia que a solução para o problema orçamental depende das soluções que se encontrar para promover e o crescimento e a criação de emprego. E não, ao contrário não funciona. Bem sei que os autores deste blog tendem a repetir-se neste ponto, mas se a realidade não estivesse permanentemente a confirmá-lo...

2. O maior enviesamento deste debate é o total monopólio das questões relacionadas com a despesa, como se o ajustamento orçamental não se promovesse dos dois lados. Esse enviesamento tem como efeito importante obscurecer a importância das variáveis relacionadas com o crescimento (nomeadamente o consumo) em algumas das boas notícias.

3. Outra das consequências mais importantes é não se olhar, com a atenção que merece, para uma alteração (ou melhor, um agravamento) que se está operar na estrutura da receita fiscal. A desagregação do aumento homólogo de 3,3% na receita fiscal mostra-nos duas dinâmicas contraditórias: a queda da receita fiscal em sede IRC (-4,9) e IRS (-7,7% na tributação progressiva dos rendimentos do trabalho e alguns de capital, apesar do aumento das taxas) e o rápido aumento da receita nos impostos indirectos (10,6), com destaque para o IVA (13,9), ou seja, a tributação regressiva dos rendimentos do trabalho.

4. Daqui decorrem duas consequências: a) O sistema fiscal que menos redistribui na Europa, está a redistribuir ainda menos em momento de crise. b) O aumento da receita fiscal está a fazer-se à custa da tributação sobre o consumo, o que deveria fazer pensar sobre as medidas que estão a ser discutidas para comprimir ainda mais os orçamentos das famílias.

5. Na análise da despesa, entre os dados mais interessantes estão os saldos positivos (e crescentes) na Saúde e na Segurança Social. Isto é uma chatice para Passos Coelho porque mostra que, se estas são áreas determinantes pelo seu peso orçamental, estão longe de ser aquelas em que a despesa está descontrolada.

6. Mostram também que a contenção da despesa está a afectar o Investimento Público, mais ainda do que a despesa social, que não se reduz, apesar dos esforços manifestos do Governo. O problema é que, mesmo restringindo o acesso a todas as prestações sociais (com o consequente abandono de muitas das vítimas da crise), o agravamento da situação económica e social sai caro nesta frente. E daqui voltamos ao primeiro ponto. É o que se chama morrer da cura.

Descontrolado, sim, está o desemprego. 10,6% de média durante o primeiro semestre, o que significa que, para cumprir a previsão do Governo, teria de rondar os 9% no segundo semestre... Era tão bom ter um Ministro das Finanças que dissesse que estava disposto a tudo para baixar esta taxa...

Indigência intelectual

Os comentários mais agressivos à minha posta de ontem revelam que anda por aí muita gente que se atreve a falar sobre economia a partir de conceitos de senso comum, do estilo "Então não é evidente que é o Sol que gira à volta da Terra?". Ignoram as diferenças entre senso comum, ideologia e conhecimento científico. São uma amostra da indigência intelectual que hoje prevalece no espaço público.

Não perco o meu tempo com quem não sabe do que fala. Prefiro dar a conhecer uma perspectiva da economia política que está excluída da comunicação social.

Hoje chamo a atenção para este texto publicado há dias por Robert Skidelsky. Aqui fica um pequeno extracto:

"Os argumentos do BCE [Banco Central Europeu] parecem-me o raspar do fundo da panela intelectual. A verdade é que não é o medo da bancarrota do governo mas a determinação dos governos em equilibrar as contas que está a reduzir a confiança dos negócios através da degradação das expectativas sobre o emprego, rendimentos e encomendas. O problema não é o buraco no orçamento; é o buraco na economia.
(...)
O problema é que a actual crise apanha os governos em situação de desamparo intelectual porque a sua teoria económica é uma trapalhada. Os acontecimentos e o senso comum levaram-nos aos défices de 2009-2010 mas não os levou a abandonar a teoria de que as depressões não podem acontecer, e que os défices são portanto prejudiciais (excepto em guerra!). Por isso agora competem uns com os outros na pressa em cortar o tubo de oxigénio a que eles próprios ligaram a economia. Os políticos têm de reaprender Keynes, explicá-lo com clareza e aplicar as suas lições, e não inventar argumentos pseudo-racionais para prolongar a recessão."

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Banca na corda da bamba

António de Sousa, presidente da Associação Portuguesa de Bancos, afirmou em entrevista que a banca nunca viveu uma situação tão grave como a actual. São aparentemente estranhas estas declarações, sobretudo depois dos surpreendentes resultados recorde da banca nacional (com as taxas de IRC a caírem a pique devido às fantásticas provisões contabilísticas). Contudo, dada a sua especificidade na economia, não é difícil perceber como podem, simultaneamente, os bancos estar em apuros e conseguir lucros espantosos.

O sector financeiro é responsável por mais de metade (55%) do endividamento externo nacional (contra 29% do sector público). Dada a fragilidade da economia portuguesa e do sistema financeiro, em particular, a sua reputação anda pelas ruas da amargura, estando o tradicional mercado interbancário internacional fechado à banca portuguesa - a Euribor, taxa à qual a maioria dos nossos empréstimos está indexada, é a taxa a que os bancos emprestam uns aos outros na zona euro. Numa situação imaginária de mercado puro, os bancos já teriam declarado falência. No entanto, a banca beneficia do crédito extraordinário que o BCE, uma instituição pública, lhes disponibiliza, a uma taxa mais baixa do que a própria Euribor (1% contra 1,4%). Conclusão, as margens dos bancos têm aumentado, já que nós pagamos cada vez mais em relação ao seu custo de financiamento, permitindo-lhes uma rápida recapitalização (ajudada pela evasão fiscal).

Qual é, então, o problema? O problema coloca-se de três formas diferentes: 1- Quanto mais um banco está dependente do BCE, pior a sua reputação nos mercados financeiros e maior a dificuldade em voltar ao mercado interbancário; 2- As maturidades dos empréstimos do BCE são normalmente inferiores às do mercado interbancário, colocando os bancos portugueses sob pressão (os nossos empréstimos são de 20, 30 anos); 3– Agora que a banca dos grandes países europeus parece recuperar, o BCE prevê limitar o crédito à banca europeia nos próximos tempos. Isto não vai ser fácil…


P.S. Já reparam que, sem subestimar os problemas de financiamento público, o Estado se encontra numa situação mais confortável do que a da banca nos mercados financeiros? No entanto, desta última pouca gente fala.

O mito do comércio livre

O Ricardo Paes Mamede assinalou num post abaixo como a política industrial nunca deixou de ser seguida pelos campeões do comércio livre, com os EUA à cabeça. Esta peça da Economist sobre a indústria aeronáutica comercial é bem instrutiva. As duas grandes empresas deste mercado, Boeing e Airbus, beneficiam de muitos milhões de apoio público, disfarçado das mais diferentes formas. Claro que os EUA e os países europeus por detrás da Airbus correm à OMC (Organização Mundial do Comércio), queixando-se, como virgens ofendidas, da concorrência desleal. Estas queixas não são mais que um simulacro do livre-cambismo. O problema está quando em conflito se encontram países com recursos muito diferentes. Aqui, o livre-cambismo é o proteccionismo dos mais fortes.

Carta aberta ao jornalista Mário Crespo

Caro Mário Crespo

O seu programa ‘Plano inclinado’ / SIC Notícias ofende o direito dos cidadãos portugueses a uma informação plural e rigorosa. De facto, os economistas ‘residentes’ no seu programa representam apenas um segmento de opinião. Mais ainda, os pressupostos teóricos e políticos em que se baseiam mas que nunca explicitam, envolvidos em juízos de valor sobre o que entendem dever ser a política económica do País, constituem pura ideologia neoliberal. Para o caso de não saber o que é o neoliberalismo, recomendo-lhe uma pesquisa neste blogue.

Não fui ler o contrato de adjudicação à SIC de um bem público (o “sinal”) que lhe permite fazer negócio com a informação que transmite, mas de uma coisa estou certo: o seu programa é pura propaganda ideológica que manipula a mente dos cidadãos e os faz aceitar como inevitável uma próxima intervenção do FMI em Portugal. Como é óbvio, os grupos económicos abrigados da concorrência, com os bancos à cabeça, estão-lhe gratos pelo serviço prestado: um serviço de propaganda neoliberal que manipula a opinião pública usando um bem público.

Mário Crespo, a situação do País é realmente grave mas os cidadãos portugueses têm direito ao debate de ideias alternativas para poderem fazer escolhas políticas informadas. Têm direito a outras análises que não tratem a economia de um país como se fosse uma “economia doméstica”. Se um professor universitário utilizasse esse tipo de metáfora para ilustrar as matérias de Introdução à Economia (ou de Macroeconomia) numa licenciatura de uma universidade credível teria de ser severamente repreendido pelo Conselho Científico da faculdade/departamento. Se o fizesse numa reunião científica internacional provocaria uma gargalhada da audiência.

Como é natural, o Mário Crespo não sabe que, na situação de estagnação em que estamos após uma gravíssima recessão global, a redução em larga escala da despesa pública nunca irá melhorar o saldo do Orçamento nem reduzirá a Dívida pública. Pelo contrário, fatalmente agrava-os. Não lhe vou explicar aqui este mecanismo. Apenas lhe peço que repare nos casos da Irlanda, Grécia e Hungria após a aplicação das chamadas “medidas de austeridade”. Afinal não foi suficiente! Vão ter de fazer ainda mais cortes na despesa pública. Que vão gerar decréscimo do Produto e, por isso, menos impostos e mais despesa em subsídios de desemprego. Já estão lançados numa espiral de desastre empurrados pela economia política dos anos trinta do século passado que hoje domina a Alemanha e outros países europeus, a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu, a OCDE e o FMI.

Mas, como jornalista de um programa de economia, o Mário Crespo tem obrigação de acompanhar o que Paul De Grauwe ou Robert Skidelsky têm escrito. Pelo menos deveria ler as colunas de opinião do Financial Times e The Guardian. Se o fizer, ficará a saber que a economia é uma ciência plural e que há argumentos que pulverizam a retórica de “donas de casa” com que Medina Carreira e João Duque ‘fazem a cabeça’ de muitos portugueses … incluindo a sua.

Caro Mário Crespo, é tempo de dizer basta. Se não quer fazer um programa em que o pluralismo de análise económica e de políticas seja real - no que conta, José Silva Lopes é mais do mesmo embora com mais inteligência e sensibilidade social - então só nos resta apelar para a entidade reguladora da comunicação social. Porque quem percebe alguma coisa de economia não pode estar sujeito a ouvir da boca de Medina Carreira, com o silêncio conivente do Mário Crespo, que os economistas que dele discordam são uns “trafulhas”. O contrato de exploração da SIC obriga-a a respeitar o pluralismo de opinião e a tratar com decência os telespectadores.

Cumprimentos de um economista atento e razoavelmente informado.

Tendências pós-liberais na economia...

Enquanto a fracção dominante das nossas desgraçadas “elites” políticas e intelectuais se entretém, na sua eterna miopia, com ultrapassados romances de mercado à mistura com uma muito patriótica vontade de deixar a economia portuguesa ser definitivamente canibalizada pelos credores à boleia de novos PECs ou do FMI, há quem discirna com algum realismo, ainda que com liberal desaprovação, as tendências pós-liberais emergentes na economia mundial.

É o caso dos insuspeitos Ian Bremmer e Nouriel Roubini que, apesar de muitas das suas pouco recomendáveis prescrições, reconhecem o óbvio esgotamento do “modelo anglo-saxónico de laissez-faire” e a emergência do “capitalismo de Estado”. Em Portugal, o bloco central privatiza tudo o que há para privatizar, mas nas potências emergentes sabe-se que uma estratégia de desenvolvimento não pode prescindir de um Estado directamente envolvido nos sectores económicos fundamentais: “Na última década (...) a riqueza, o investimento e a empresa públicas regressaram em força. Uma era de capitalismo guiado pelo Estado começou; uma era em que os governos injectam cálculo político na performance dos mercados.”

Esta tendência favorece a reacção proteccionista nos países desenvolvidos, como este artigo de Paul Krugman no i, sobre a relação EUA-China, ilustra. Nada de novo. Esta é a história secreta da construção dos capitalismos. Basta lembrar que o argumento da protecção das indústrias emergentes surgiu no final do século XVIII nos EUA antes de ser teorizado pelo alemão Friedrich List no século XIX e de ser aplicado, a partir daí, um pouco por todos os processos de desenvolvimento. Como assinalou o Ricardo, a politica industrial, aberta ou disfarçada de politica cambial, está por aí à vista de todos, menos dos que hegemonizam o debate económico português lá para os lados da SEDES e de outros “faróis”.

Temos mesmo de alterar as regras do comércio e investimento internacionais e alargar as boas e flexíveis práticas de protecção socioeconómica para refragmentar a economia mundial e para torná-la assim mais gerível, quebrando o enviesamento para a contenção dos custos laborais, para a compressão da procura interna e para a geração de brutais desequilíbrios comerciais e de repetidas crises financeiras. A proposta do economista Dani Rodrik é cada vez mais sensata: os países subdesenvolvidos devem poder continuar a copiar as práticas de protecção industrial selectiva e temporária dos países bem sucedidos; os países desenvolvidos devem poder evitar a erosão dos seus standards laborais ou ambientais, bloqueando formas de concorrência internacional e de chantagem do capital consideradas ilegítimas. Isto para não falar dos necessários controlos de capitais, de que muitos países, e bem, nunca prescindiram. Portugal, economicamente esgotado depois de duas décadas de liberalização continuada, precisa de umas fortes suspensões das regras do mercado interno europeu...

Para os que não querem que a Europa continue a medina-carreirar

“A crise económica e financeira que abalou o mundo em 2008 não parece ter enfraquecido a dominação dos esquemas de pensamento que orientam as políticas económicas há mais de trinta anos. O poder da finança não foi minimamente posto em causa. Na Europa, pelo contrário, os Estados, sob pressão da Comissão Europeia, aplicam com renovado vigor os programas de reformas e de ajustamento estrutural que, no passado, geraram instabilidade e desigualdades e que podem agora agravar a crise europeia.

Horrorizados por esta perspectiva, queremos favorecer a expressão pública de numerosos economistas, provenientes de diversas correntes teóricas, que não se resignam perante a reafirmação da ortodoxia neoliberal e que julgam ter chegado o tempo de uma mudança de paradigma nas politicas económicas europeias. É por isto que surge este 'manifesto dos economistas horrorizados'. Este texto não pretende ser um programa alternativo, mas sim apontar para alguns dos desafios essenciais nas questão monetárias e financeiras europeias. Se está de acordo com as suas orientações gerais, agradecemos a sua subscrição.” (minha tradução)

O detalhado manifesto por uma política económica para superar a crise gerada pelo neoliberalismo, organizado por um grupo de economistas franceses ligados à Associação Francesa de Economia Política, pode ser lido, em francês, aqui.

O regresso da política industrial

«Temos de tomar decisões estratégicas sobre sectores estratégicos», afirmou Obama em Maio de 2009. No auge da crise, ficava assim decretado o regresso oficial das políticas dirigidas a actividades produtivas específicas, neste caso sob a forma de apoios maciços do governo federal americano ao sector bancário e à indústria automóvel. Medidas semelhantes eram anunciadas por governos de todo mundo, dirigidas àqueles e a outros sectores de actividade, e apresentadas como essenciais ao desenvolvimento económico de longo prazo dos respectivos países.

O regresso em força da política industrial ao discurso oficial dos países desenvolvidos assume contornos de descontinuidade histórica, após três décadas de hegemonia neoliberal no debate sobre a intervenção do Estado no tecido produtivo (em que as únicas políticas tidas como legítimas eram as ditas ‘horizontais’). Na verdade, os governos nunca se abstiveram de intervir no sentido de promover as condições favoráveis ao desenvolvimento económico, muito para além do exercício das funções minimalistas de regulador e de garante do cumprimento da lei. Por trás da retórica sobre a superioridade dos mecanismos de mercado na afectação de recursos, poucos foram os países que abdicaram de apoiar o desenvolvimento e a expansão das actividades com uma procura mais dinâmica e com maior potencial de crescimento da produtividade. Nos próprios EUA, o sucesso de sectores como a aeronáutica, as tecnologias de informação, a farmacêutica e a biotecnologia – actividades de elevado valor acrescentado onde o domínio americano persiste a nível mundial – é indissociável dos apoios do Estado, canalizados de forma mais ou menos discreta, por agências públicas ligadas aos sectores da saúde e da defesa.

Talvez tenha chegado o tempo de dispendermos menos energia a dicutir se a política industrial deve ou não existir – ela é um facto – e concentrarmo-nos antes na discussão das condições necessárias para que tal política seja eficazmente colocada ao serviço do desenvolvimento sustentado do(s) país(es).

Desencostar a bicicleta

Os ladrões estão de regresso numa conjuntura intelectual e política muito exigente. Um grupo, por agora mais reduzido, sempre concentrado na economia política e na política económica. Como se indica na nossa apresentação de Abril de 2007, a economia de combate é a razão de ser deste projecto. Pedalemos então.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Constituição e Sistema Político: a (re-)visão do PSD (II)



O problema com a proposta do PSD é que propõe que esta nova solução possa coexistir com a anterior (art. 194): a MCC implica a indigitação de um novo primeiro-ministro o qual, se votado favoravelmente por uma maioria de deputados, deverá ser necessariamente aceite pelo presidente; a “moção de censura simples” (a oposição une-se só para fazer cair o governo, sem ser capaz de gerar uma alternativa) faz o governo cair mas passa a implicar necessariamente novas eleições (uma novidade). Portanto, como bem se vê, a proposta do PSD fica aquém das soluções alemã ou espanhola e, portanto, seria quanto muito um paliativo (aquém do desejável) para favorecer a estabilidade dos governos e a formação de oposições responsáveis.

Mas mesmo em Portugal a discussão sobre o reforço da estabilidade dos governos, embora sem se beliscar a representação dos pequenos, já evoluiu mais. Por exemplo, para reforçar a estabilidade dos gabinetes e a formação de oposições responsáveis era desejável que o executivo pudesse converter o orçamento numa espécie de moção de confiança (como em França) só derrubável por quem tivesse um primeiro-ministro e um governo alternativos e com apoio maioritário no Parlamento (“orçamento construtivo”). O PSD também aqui não foi tão longe.

Um dos problemas por vezes apontados pelos constitucionalistas à adopção da MCC em regimes semipresidenciais é que esta solução implica alguma limitação dos poderes do PR. Na verdade, creio que este problema está algo empolado. Por um lado, é óbvio que, para que a medida seja consequente, o PR deve ser “obrigado” a aceitar a solução de governo alternativo decorrente de uma MCC votada favoravelmente (como aliás o PSD propõe). Por outro lado, também é verdade que eventuais governos minoritários que qualquer PR venha a nomear ficarão mais reforçados: os poderes do PR saem por esta via indirectamente robustecidos. Finalmente, ao continuar a deter na íntegra o poder de dissolução do Parlamento, o PR continuará a ser sempre a última ratio do funcionamento do sistema político, a derradeira válvula de escape deste. Neste domínio, o problema da proposta do PSD é a possibilidade que concede ao PR demitir livremente o governo, uma solução que existia até 1982 e que funcionou mal (gerou instabilidade). Esta solução só funciona em regimes onde o PR comanda o partido maioritário, como é tradição em França (mas não em Portugal), e, mesmo assim só em situações de confluência entre a maioria parlamentar e presidencial. Portanto, por um lado, o PSD pegou em algumas boas ideias e operacionalizou-as de forma deficiente e contraditória, prejudicando-as por isso. Por outro lado, parece que não preparou bem as suas próprias propostas pois mal as apresentou começou logo a recuar… Finalmente, algumas boas medidas como a possibilidade de aparentamento de listas nos círculos locais (um incentivo à cooperação entre os partidos: art. 149, 3), a ineligibilidade dos condenados por crimes no exercício de funções públicas (art. 150), ou o fim do quorúm mínimo nos referendos (art. 115, 11) perderam-se com a atenção que certas medidas chave, mas mal operacionalizadas, mereceram. Esperava-se mais ponderação do PSD.

Publicado originalmente no Público, 26/7/2010.

Constituição e Sistema Político: a (re-)visão do PSD (I)





No capítulo do sistema político, duas das propostas emblemáticas (e também contraditórias, como já foi sublinhado) do projecto de revisão constitucional do PSD são a adopção (apenas parcial) da moção de censura construtiva (MCC) e o reforço dos poderes do presidente (PR), que passaria a poder demitir livremente o governo. Antes de passar à análise das propostas, vale a pena definir o que é a MCC, onde existe, porque foi criada, quais são os seus traços fundamentais e que implicações pode ter no sistema de governo. Para quem quiser saber mais, aproveito para recomendar um pequeno mas muito informativo livro (A Revisão Constitucional e a Moção de Censura Construtiva) editado pela Fundação Friederich Ebert, em 1988, no contexto da revisão constitucional de 1989 (quando o PS propôs esta solução) e que conta com grandes especialistas, designadamente Dieter Nohlen e José Encinar.

A MCC foi inicialmente adoptada na República Federal Alemã, 1949. Mais tarde, viria também a ser adoptada em Espanha, 1978. Quer num caso, quer noutro, esta solução é uma resposta à memória da forte instabilidade política e governativa: na República de Weimar (1919-1933) e na II República Espanhola (1931-1939), respectivamente. Pretende-se combater a instabilidade política associada muitas vezes aos regimes eleitorais proporcionais, mas sem ser através compressão (artificial) da representação parlamentar dos pequenos partidos. Mais, pretende-se responsabilizar as oposições e impedir a formação de maiorias meramente destrutivas: unem-se para fazer cair os executivos mas são incapazes de gerar soluções alternativas de governo (“coligações negativas”). Esta solução pode ser especialmente adequada para favorecer a estabilidade de governos minoritários impendido que as oposições se possam unir só para fazer cair o governo. Para que com a MCC se possa efectivamente fazer cair o governo é preciso que, primeiro, os seus proponentes apresentem um primeiro-ministro alternativo ao que pretendem demitir (e que deverá liderar o novo gabinete) e, segundo, que a moção seja favoravelmente votada pela maioria dos deputados. Caso não se verifiquem ambas as condições, a moção é chumbada. Como sublinha Dieter Nohlen no livro citado (p. 45) e referindo-se ao sistema eleitoral português (uma outra via para promover a estabilidade dos governos) “aumentar a desproporcionalidade entre os votos e os assentos parlamentares significaria acabar com o princípio proporcional”; “perante estas alternativas, seria conveniente optar pela MCC, evitando toda e qualquer intervenção no sistema eleitoral no sentido de uma menor representatividade.”

Publicado originalmente no Público, 26/7/2010.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Encostar a bicicleta...

O Ladrões de Bicicletas iniciou a sua actividade a 17 Abril de 2007. Desde esse dia temos comentado o que se vai passando por aí, sobretudo no campo da economia política e da política económica. Chegou a altura de encostar a bicicleta e fazer uma pausa. Voltaremos a escrever com regularidade lá para meados de Setembro. Até lá.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Redução da pobreza em 0,6% em 2008?

Hoje, no Parlamento, os números do INE relativos a 2008 (alguém me explica este desfasamento temporal?) sobre pobreza estiveram em debate. Sócrates vangloriou-se de uma redução de 0,6% da taxa de risco de pobreza, conseguido sobretudo através da diminuição do risco de pobreza entre os idosos. Já em 2008 aconteceu o mesmo. Recupero este post que escrevi na altura sobre a redução da taxa de pobreza em 2006 para explicar como as estatísticas podem enganar.

O que aconteceu em 2008 foi provavelmente o mesmo. O limiar de pobreza (60% do rendimento mediano) passou de 406 para 414 euros, um aumento de 1,97%. Ora, a taxa de inflação foi em 2008 de 2,67%. Ou seja, em termos reais o rendimento mediano caiu -0,7%. O rendimento real dos 50% mais pobres caiu.

No entanto, com aumentos de 2,4%, os pensionistas mais pobres tiveram aumentos superiores ao do rendimento mediano, embora ainda abaixo da taxa de inflação (-0,2%). O seu rendimento caiu em termos reais, mas aproximou-se mais da mediana. Conclusão, houve mais gente acima do limite dos 60%, ainda que a sua situação real tenha piorado.

Mais interessantes são os dados sobre a intensidade da pobreza, distância percentual do rendimento mediano dos indivíduos em risco de pobreza face ao limiar de pobreza, que se manteve e a intensidade de privação material, baseado num “conjunto de nove itens representativos das necessidades económicas e de bens duráveis das famílias”, fixada em 23% da população nacional em privação material. Não há muito para comemorar no retrato de Portugal pré-crise, pois não?

A economia é política

O Público tem hoje um conjunto de peças sobre economia e política portuguesas. Assim relacionadas. Pediram uma declaração ao João Rodrigues e outra a mim sobre assuntos só aparentemente diferentes. Enfim, uma correcção: não sou “do ISCTE”; sou estudante de doutoramento da SOAS e investigador do RMF.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Desmascarar a falsa neutralidade do Banco de Portugal

«(...) a que título é que o Banco de Portugal tem legitimidade para se pronunciar sobre a intervenção do Estado na economia, concretizada pelos seus legítimos representantes, eleitos democraticamente? Se a análise é técnica, então é preciso complementá-la com explicações sobre o sucesso de países como os do Norte da Europa - com fortes apoios sociais - ou como a Alemanha (com parte da banca controlada pelos "lander"), ou ainda como o Brasil - com uma política empresarial fortemente intervencionista.

Esta coluna pode criticar a intervenção empresarial do Estado, pode considerar que este Governo foi longe de mais nas redes que construiu de protecção e intervenção em empresas, algumas delas cotadas. O Banco de Portugal não pode, nem deve, pronunciar-se subjectivamente sobre opções que são políticas e determinadas pela escolha dos eleitores.

O trabalho que desenvolve sobre o mercado de trabalho merece ainda mais críticas pela ligeireza técnica com que o tema é tratado. O Banco de Portugal comete um erro de partida que é usar o indicador de rigidez do mercado de trabalho da OCDE quando os seus economistas sabem - ou deviam saber - que a realidade laboral é muitíssimo mais flexível.»


No dia em que a generalidade dos jornalistas em Portugal forem capazes, como Helena Garrido do Jornal de Negócios, de perceber que o que sai dos gabinetes do Banco de Portugal é mais do que trabalho técnico, talvez seja mais fácil quebrar o consenso da Almirante Reis. Até lá teremos de viver com os Ernâni Lopes e os Miguel Beleza deste país a dizer-nos, incólumes, que as receitas que nos oferecem são da mais pura natureza científica.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Socialismo no Século XXI




"Socialismo no Século XXI":
O Deputado e organizador do livro (Duarte Cordeiro, lider cessante da JS) convidou-me para escrever um capítulo ("Democracia, representação e participação") para este livro que será lançado na Bulhosa de Entrecampos na quinta-feira às 19h30.
A apresentação será feita por Augusto Santos Silva e Duarte Cordeiro.
Vou tentar ir, claro, e recomendo, obviamente.

Mestrado em Ciência Política do ISCTE-IUL



Objectivos
O Mestrado em Ciência Política visa a formação avançada no campo da Ciência Política, com especial enfoque nos tópicos da cidadania e democracia na Europa. O mestrado assenta numa base pluridisciplinar (Ciência Política, Direito, História, Economia Política, Metodologia das Ciências Sociais, Análise de Dados, etc.) e aposta na simbiose entre teoria e investigação empírica.


Estágios
Os alunos têm a possibilidade de realizar estágios com vista a desenvolver a dissertação de mestrado. Com este propósito estão em processo de assinatura (em fase de finalização) protocolos com diversas entidades: a Assembleia da República, a Comissão Nacional de Eleições, a DGAI - Ministério da Administração Interna, as Confederações Sindicais (CGTP e UGT), a GLOBAL NOTÍCIAS (holding detentora da TSF, JN, DN, etc.), Câmaras Municipais (Lisboa e Sintra), a Representação da Comissão Europeia em Portugal, Organização Internacional das Migrações (OIM), Fundação Friderich Ebert, Amnistia Internacional, entre outras.

Investigação
Há ainda (e simultaneamente) a possibilidade de desenvolver a investigação em articulação com o Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-ISCTE-IUL), centro avaliado pela FCT com classificação de “Excelente”. E, seja por esta via, seja por via dos estágios, os estudantes terão acesso a ricos mananciais de dados (do ICPSR: Inter-university Consortium for Political and Social Research, das instituições receptoras dos estágios, etc.) que facilitarão a feitura de das teses de mestrado com dados secundários de grande qualidade e representatividade.

Protocolos com universidades estrangeiras
Os alunos podem candidatar-se a frequentar um semestre ou realizar a dissertação de mestrado numa universidade estrangeira (ou nacional).

Destinatários
Licenciados das áreas das Ciências Sociais e Humanas e do Direito, e outras áreas científicas com interesse em desenvolver investigação e/ou actividade profissional na área dos estudos políticos; profissionais da administração pública; membros das instituições políticas nacionais e comunitárias; dirigentes políticos; profissionais das sondagens; jornalistas; profissionais de organizações da sociedade civil, de organização não governamentais ou de inter-governamentais, entre outros.


Coordenação
Fernando Farelo Lopes (coordenador cientifico), José Manuel Leite Viegas e André Freire (comissão executiva).


Corpo docente
Fernando Farelo Lopes – ISCTE-IUL
José Manuel Leite Viegas – ISCTE-IUL e CIES-ISCTE
André Freire – ISCTE-IUL e CIES-ISCTE
Ana Belchior – ISCTE-IUL e CIES-ISCTE
Catherine Moury – CIES-ISCTE e ISCTE-IUL
José Ramon Montero – Universidade Autónoma de Madrid
Gustavo Cardoso – ISCTE-IUL e OBERCOM
Ainda a designar pelos respectivos Departamentos:
Outros Professores (do ISCTE-IUL) para leccionar as cadeiras das áreas do Direito, História, Economia Política, etc.
Outros: conferencistas a convidar, nomeadamente investigadores do CIES-ISCTE.


Plano de estudos (e outras informações)

Ver aqui.


Candidaturas:
3 de Maio a 13 de Julho de 2010 (1ª época) e 16 de Agosto a 13 de Setembro de 2010 (2ª época).
Inscrições:
26 de Julho a 6 de Agosto de 2010.
Propina:
2.000 euros (pagável em 4 prestações).
Horário: pós-laboral.
Duração: 2 anos (120 créditos ECTS), incluindo a elaboração de tese.
Vagas: 30.
Bolsas: possibilidade de candidatura a bolsas internacionais (Rede Iberoamericana) e nacionais.
Condições de acesso: licenciatura ou experiência profissional relevante.


Contactos:
Secretariado do Departamento de Sociologia/Departamento de Ciência Política e Políticas Públicas, Ala Autónoma, 3.º piso, sala 336
ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa
Av.ª das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal
Telefones: +351 217 903 016
Fax: +351 217 903 017
E-mail: secretariado.ds@iscte.pt

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Todos os passos políticos são ideológicos

José Sócrates decidiu dizer coisas de esquerda: apodou de "ultraliberal" a posição da Comissão Europeia crítica da presença dos estados em empresas estratégicas e acusou Passos Coelho de querer constitucionalizar o neoliberalismo e assim destruir o Estado social. A decisão do Tribunal de Justiça europeu, que considerou o resquício de poder que o Estado detém na PT "uma restrição não justificada à livre circulação de capitais", e a política de austeridade com escala europeia tornam cada vez mais claro que a União Europeia realmente existente é uma peça política fundamental no enfraquecimento dos estados e da generalidade dos cidadãos face aos interesses do capital global e das facções mais predadoras do capital nacional. O resto da minha crónica semanal no i pode ser lido aqui.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Crise e regressão social (em homenagem a Saramago)


«O capitalismo tem a pele dura», dizia José Saramago numa entrevista em 2008 (Expresso, 11 de Outubro). A partir de agora as suas palavras são ainda mais nossas. Estas, proferiu‐as ele numa altura em que a desmontagem crítica da crise parecia poder abrir uma janela de oportunidade para, finalmente, caírem por terra os mitos em que assentam os princípios neoliberais (eficiência dos mercados, capacidade de auto‐regulação do sector financeiro para evitar grandes sobressaltos na economia, dispensabilidade do Estado por parte dos sectores privados, «globalização feliz» e todas as teorias do «fim da história»). Apesar de ser hoje muito diferente o conhecimento que os cidadãos têm dessa complexa construção ideológica e institucional que é o neoliberalismo, e diferentes também as potencialidades de intervenção cidadã, o certo é que, por agora, tudo parece apontar para que os grandes culpados pela crise vão ser os seus grandes beneficiários. Dito de outra forma, esta crise do neoliberalismo está a servir para aprofundar o modelo neoliberal. A possibilidade, referida por Saramago na mesma entrevista, de «que se mude alguma coisa para que tudo continue na mesma», parece estar a ser substituída por uma arte, deveras impressionante, de não se mudar nada... para que tudo fique pior. (O resto do meu artigo do número de Julho do Monde diplomatique - ed. port. pode ser lido aqui.)

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Reconciliar os portugueses com a política (I)



No livro Representação Política – O Caso Português em Perspectiva Comparada verificámos uma profunda insatisfação dos portugueses com o funcionamento da democracia e um cavado distanciamento entre eleitores e eleitos.
A satisfação com o funcionamento da democracia atingiu, em 2008, o ponto mais baixo desde 1985 (cerca de 30 por cento) e está abaixo da média dos cerca de 30 países usados como comparação. O sentimento de distância dos eleitores face aos representantes revelou-se também muito elevado e acima da média dos 30 países. Não é de crer que a situação tenha mudado muito desde 2008. Numa altura em que o PSD parece estar prestes a apresentar o seu projecto de revisão constitucional e em que um dos elementos é a reforma do sistema político, designadamente com a proposta do “voto preferencial” (PÚBLICO, 2/7/2010; Visão, 1/7/2010), vale a pena reflectir sobre em que medida esta solução pode ajudar a reconciliar os portugueses com a política. De caminho, aproveito para responder a vários leitores (subscritores da petição defendendo uma redução de deputados de 230 para 180) que me escreveram pessoalmente (ou em cartas a este jornal) por causa do meu artigo de 31/5/2010 (“A democracia debaixo de fogo”) onde eu abertamente contestava a argumentação dos peticionários.


Antes de apresentar as vantagens do voto preferencial, recordemos o status quo (“listas fechadas e bloqueadas”) e os problemas associados. Quando votamos podemos apenas pôr uma cruzinha num dos partidos e, por isso, mesmo que estejamos profundamente desagradados com a performance de alguns deputados nada podemos fazer a não ser mudar de partido. Este sistema foi escolhido (e bem) para fortalecer os partidos. Mas hoje os partidos estão consolidados e sobressaem os problemas. Primeiro, os deputados preocupam-se sobretudo em agradar às direcções partidárias, subalternizando os eleitores, pois a sua reeleição depende da posição nas listas. Segundo, os eleitores têm muita dificuldade em saber quem são os deputados que os representam e, sobretudo, estão impossibilitados de os responsabilizar. O “voto preferencial”, que também propusemos num livro publicado em 2008 (Para uma melhoria da representação política – a reforma do sistema eleitoral), pode precisamente ajudar a reconciliar os portugueses com a política: dando mais poder aos eleitores na escolha dos deputados e, assim, criando incentivos para que estes se preocupem mais com aqueles. Mais, esta via nada tem que ver com a redução do número de deputados. Pelo contrário, tal redução é contraditória com o voto preferencial, como veremos.

Publicado originalmente no Público de 5/7/2010.

Reconciliar os portugueses com a política (II)



Claro que uma reforma deve ser uma mudança gradual: para que os actores possam adaptar-se devidamente a ela e para que se possam maximizar as vantagens e minimizar os inconvenientes das transformações. Por isso, e porque não faz sentido retirar todo o poder às direcções partidárias e transferi-lo todo para os eleitores, designamente porque os partidos devem ter uma palavra a dizer na composição das bancadas parlamentares (para assegurar a presença de determinadas valências técnicas e políticas), propusemos um sistema com dois conjuntos de círculos: um nacional onde se aplicam as “listas fechadas e bloqueadas” e que tem também funções de manutenção da proporcionalidade; pequenos círculos regionais (6 a 10 lugares) onde então se aplicaria o voto preferencial. Neste particular, a redução do número de deputados (que nenhuma comparação internacional justifica) seria contraproducente: ou obrigaria a reduzir o círculo nacional, reduzindo a proporcionalidade e o papel das direcções partidárias; ou obrigaria a reduzir mais os círculos regionais, prejudicando a representação territorial e a possibilidade de os pequenos partidos elegerem aí deputados. Além disso, o voto preferencial só pode ser aplicado em pequenos círculos: para os eleitores terem capacidade de processar informação sobre os candidatos em disputa e para que a medida seja logisticamente exequível (os boletins passariam a conter os nomes dos candidatos efectivos de todos os partidos). Por isso é que a ideia expendida por um tal Félix António neste jornal (aplicar o voto preferencial num cículo único com 100 deputados) é completamente descabida.


Resumindo, o voto preferencial pode dar um importante contributo para a reconciliação dos portugueses com a política.

Mas há outros:

Primeiro, é crucial preservar a proporcionalidade: ela é a condição do pluralismo multipartidário que temos e, por essa via, um esteio essencial da participação política (se comprimissemos a representação dos pequenos muitos dos seus eleitores passariam a abster-se: veja-se a Grã Bretanha) e da clareza das alternativas (sem os pequenos a competição passaria a focalizar-se só no centro).

Segundo, é preciso reforçar a governabilidade sem beliscar a proporcionalidade (moção de censura construtiva, orçamento construtivo, incentivos institucionais à cooperação entre os partidos): as pessoas querem que os partidos se entendam, como prova o bom desempenho do PSD apesar da cooperação com o PS.

Por último, é preciso que os políticos mudem as suas atitudes e comportamentos para que os eleitores possam encarar o Estado como uma pessoa de bem. Por exemplo, o PS está propor a privatização de 17 empresas públicas (muitas delas estratégicas e lucrativas) sem ter dito nada sobre o assunto na campanha: uma subversão da Constituição material (do governo representativo). E não é aceitável fazer-se um acordo sobre a reforma das pensões e na legislatura seguinte voltar com a palavra atrás. Mais: nenhuma estabilização financeira legitima a subversão do principio da não retroactividade das leis. Se os representantes políticos querem ser tidos como pessoas de bem têm que comportar-se como tal, mas para isso não é preciso nenhuma mudança institucional.

Publicado originalmente no Público de 5/7/2010.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Resignados ao capitalismo medíocre?

O retrato da variedade portuguesa de capitalismo é traçado com estudos. Dois estudos recentes - "Necessidades em Portugal", promovido pela Tese (www.tese. org.pt) e "Emprego, Contratação Colectiva de Trabalho e Protecção da Mobilidade Profissional em Portugal", encomendado pelo Ministério do Trabalho - mostram que o nosso desigual e desqualificado capitalismo gera demasiada precariedade, insegurança socioeconómica, pobreza laboral e uma saliente estagnação salarial. A fraude da opinião dominante que defende a sua benignidade, assim cumprindo a sua função de assegurar o conveniente conformismo político, torna-se clara. O resto da crónica de ontem no i pode ser lido aqui.

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

Ferro Rodrigues, pré-OCDE, sobre o Pacto de Estabilidade e Crescimento, em 2003:

"Segundo Ferro Rodrigues, os governos da União Europeia deverão encontrar "uma solução para o PEC, de forma a que seja um instrumento de crescimento em vez de recessão e que permita a convergência real entre os países mais pobres com os mais ricos".

Para Ferro Rodrigues, o novo PEC deverá "dar um maior peso ao equilíbrio da dívida pública face ao critério do défice" e "observar que a qualidade de despesa é feita por cada Estado-membro".

Ou seja, segundo o líder socialista, importa "diferenciar o investimento público da despesa corrente primária". (Público, 10/12/2003)


Ferro Rodrigues, pós-OCDE, sobre o Programa de Estabilidade e Crescimento, cujo objectivo é um défice de 3% em 2013, conforme o pacto de Estabilidade:

Apesar de Ferro frisar, como Soares, que os "grandes responsáveis" pelo "monstro" da crise são a ausência de regulação e a especulação, o embaixador na OCDE admitiu que Portugal não tem outra escolha se não "seguir as orientações europeias dominantes: consolidação orçamental credível e rápida, primado das exportações face à procura e paragem do endividamento externo".

Mas o ex-líder socialista notou que os planos de austeridade não devem escamotear a equidade social. E alertou: "As medidas que têm sido tomadas eram inevitáveis e com o número de desempregados que temos era imprescindível multiplicar os cuidados com a equidade social." Querendo dissipar quaisquer ilusões, afirmou: "A verdade é para se dizer: nos próximos anos o crescimento dos salários e a queda do desemprego não estarão no primeiro plano das políticas económicas." (Público, 06/07/2010)

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Deolinda - "Um contra o outro"

Salvar o euro? IV - Propostas e cenários de saída da crise


A economia nacional encontra-se hoje numa trajectória descendente, onde as perspectivas de saída da crise não existem no debate público. O debate fez-se, até aqui, no campo da justiça social das propostas por detrás do ajustamento orçamental, sem o colocar em causa e assumir caminhos para a saída da crise. É fácil perceber porquê. As alternativas políticas progressistas colocam-se aparentemente em planos, ou demasiados distantes no espaço, a reforma das instituições europeias, ou no tempo, a saída do euro.

A primeira alternativa implicaria toda uma nova arquitectura institucional da zona euro, correctora dos desequilíbrios macroeconómicos dos diferentes países pertencentes à moeda única, promotora do crescimento económico ambientalmente sustentável e favorável ao trabalho. As propostas são muitas, e precedem a actual crise : orçamento europeu reforçado, ultrapassando o mísero 1% do PIB europeu, que corrija as assimetrias nacionais; criação de mecanismos de coordenação salarial que promovam o crescimento salarial como motor dinâmico da procura interna; refundação do BCE, permitindo uma política que tenha o emprego como prioridade, comprando, por exemplo, dívida directamente aos Estados; redefinição das regras do mercado único, permitindo aos diferentes países a autonomia necessária para a prossecução de políticas industriais promotoras da reconversão das economias; regulação do espaço financeiro europeu (compartimentação dos diferentes agentes, taxação das transacções, reintrodução dos controlos de capitais), etc.

No entanto, perante a improbabilidade de uma conjugação de forças sociais e políticas à escala europeia conseguir avançar com o programa acima proposto, a urgência da crise obriga a pensar outros cenários. Com todos os países europeus a enveredarem por programas de austeridade conducentes a uma nova recessão europeia, a almejada consolidação orçamental é uma miragem. Se nada for feito para disciplinar os mercados financeiros, um novo ataque especulativo sobre os países do Sul é só uma questão de tempo.

É necessário pois pensar numa possível estratégia imediata de reestruturação da dívida e consequente quebra do tabu nacional de que está envolto o debate sobre a saída do euro. Embora o nível da dívida pública nacional esteja dentro dos padrões médios europeus, a sua reestruturação obrigaria, pelo seu efeito externo, a uma reestruturação da dívida privada (de empresas e famílias), verdadeiro lastro da nossa economia impeditivo do investimento. O sector financeiro seria fortemente afectado e a sua nacionalização tornar-se-ia quase obrigatória. No entanto, o Estado adquiriria assim instrumentos vitais de intervenção na prossecução de uma política industrial que apostasse na reconversão ambiental e requalificação do tecido económico. Por outro lado, a saída do euro permitiria a desvalorização cambial e aumento da competitividade externa da nossa economia, corrigindo assim os seus desequilíbrios estruturais.

Dois argumentos contrários a esta estratégia podem ser apresentados: as fontes de financiamento externo secariam; a desvalorização cambial implicaria um aumento da inflação. É certo que, no curto prazo, os países que entram em default não conseguem aceder aos mercados de capitais internacionais. No entanto, este período, se olharmos para experiências passadas, costuma ser de poucos anos, sobretudo se o Estado optar por uma reestruturação antes de a isso ser forçado, obtendo os credores internacionais melhores condições posteriormente. Entretanto, o Estado pode optar pelo financiamento monetário da dívida e pela introdução de controlos de movimentos de capitais, cujo automático efeito seria um aumento da taxa de poupança interna graças ao fim da fuga dos capitais que agora procuram os paraísos fiscais. Por outro lado, o aumento do investimento que as novas margens das exportações permitiria, graças à desvalorização monetária, resultaria naturalmente em taxas de poupança privada mais elevadas.

Existiriam certamente pressões inflacionistas, mas no actual contexto internacional deflacionário não é credível que esta chegasse a níveis suficientemente elevados para afectar o ritmo de crescimento económico. Este é um caminho que não está isento de riscos, todavia a experiência dos países que atravessaram situações similares recentemente (Rússia, Argentina, Uruguai, Equador) mostra que, depois da crise e de quebras no PIB, a recuperação é rápida e robusta . Acresce o facto de a antecipação e concertação de tal opção acarretar menos custos e permitir um ajustamento mais fácil.

Perante políticas públicas que não nos fornecem qualquer horizonte de superação da crise, esta pode ser a única alternativa. O euro não se/dificilmente se salvará, para desilusão de José Sócrates. A nossa economia e os seus trabalhadores talvez sim.

Salvar o euro? III -Um ajustamento imposto



Uma das causas estruturais da actual crise foi o acumular de desequilíbrios macroeconómicos dentro da moeda única. Os países periféricos entraram na moeda única com taxas de câmbio sobrevalorizadas e sujeitaram-se a uma política monetária ortodoxa, obcecada pela inflação, e determinada pela economia dominante da zona euro, a Alemanha. Face aos constrangimentos fiscais (do Pacto de Estabilidade) e monetários, o único mecanismo de competição e ajustamento das diferentes economias fez-se através do mercado de trabalho, comprimindo os trabalhadores nos seus salários e retirando progressivamente o enquadramento legal da protecção do trabalho conquistado no pós-guerra.

Nesta corrida para o fundo, onde todos os países competiram, a economia alemã foi campeã, com os seus salários reais a crescerem consecutivamente menos do que a produtividade. Se tal processo resultou na estagnação da sua procura interna e consequente crescimento medíocre, o seu sector exportador ganhou competitividade em relação aos parceiros europeus, agora impedidos de desvalorizar as suas moedas como mecanismo de ajustamento. Esta política monetária e salarial, orientada para a geração de excedentes comerciais que são reciclados como fluxos de capitais externos, resultou em crescentes défices externos (públicos e/ou privados) dos países periféricos do Sul, financiados pelos bancos alemães e franceses. Estes desequilíbrios não provêm pois de uma qualquer superior eficiência da economia alemã face a aumentos salariais excessivos das economias periféricas, mas da compressão das condições dos trabalhadores europeus, processo promovido pelas próprias instituições europeias em que o resultado foi a perda generalizada de peso dos rendimentos do trabalho face aos do capital.

Devido à perda de competitividade dos países periféricos, muitos têm sido por isso os economistas portugueses que propõem um corte generalizado dos salários nominais em 10% ou 20% (conforme as estimativas), de forma a recuperarmos competitividade externa. Esta seria a receita perfeita para a depressão. Uma contracção desta magnitude conduziria a uma brutal contracção da procura interna e consequente aumento do número de falências, aumento do desemprego e do crédito mal parado. Contudo, este é o caminho seguido pelo governo, ainda que numa versão moderada, onde o empobrecimento dos trabalhadores se faz lentamente, mas a integração nacional no euro e a posição das elites nacionais, na sua actual configuração, fica preservada. Os salários reduzem-se na vã esperança de que o aumento da competitividade externa resulte em crescimento económico sustentável.

Salvar o Euro? II - Quem paga o quê?

Se dúvidas houvesse sobre o que estava em causa na reunião de emergência de Maio, as condições impostas aos Estados periféricos como contrapartida do fundo de emergência rapidamente as dissipam. Depois das medidas anunciadas em Março por todos os países do Sul da Europa no sentido de ajustarem os seus défices orçamentais aos arbitrários 3%, definidos pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento, até 2013, entretanto ultrapassados pela generalidade dos países devido à crise financeira global, estes Estados viram-se obrigados a anunciar um segundo pacote de medidas visando a aceleração dos seus ajustamentos orçamentais e assim assegurar os pagamentos aos credores internacionais. Os efeitos destas medidas são, como José Sócrates confessa, conhecidos. A contracção imposta, agora de 2% de redução do défice em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) para Portugal, já em 2010, terá como natural efeito o retorno à recessão. Num contexto de forte retracção do investimento privado (com uma redução de 17% durante o ano de 2009) e dos mercados exportadores (já que os nossos mais importantes mercados, como a Espanha, embarcaram na mesma austeridade), não é só o aumento do desemprego que devemos esperar. A famigerada estratégia de consolidação orçamental fica condenada, já que os impostos arrecadados serão menores e a despesa será maior, graças, por exemplo, ao crescente número de desempregados. O cenário de novo ataque especulativo aos títulos dívida com consequente incumprimento por parte do Estado português torna-se um horizonte próximo.

Todavia, este PEC não deve ser tomado como mero exercício de austeridade condenado ao fracasso. O que se propõe com as novas regras de atribuição do subsídio de desemprego (cujo impacto orçamental Sócrates confessava desconhecer), o «plafonamento» das prestações sociais, o congelamento de salários da função pública, o aumento do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) e do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) é uma efectiva ofensiva sobre os salários e os trabalhadores. O governo esforça-se por mostrar a justiça social das medidas anunciadas com o fim dos múltiplos benefícios fiscais, a extraordinária taxa de 2,5% de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC) sobre as grandes empresas ou a taxação das mais-valias bolsistas. No entanto, se nos guiarmos pelas estimativas fornecidas pelo próprio governo quanto ao impacto orçamental das diferentes medidas, observamos a sua assimetria. Para 2011, o impacto orçamental das medidas, atrás listadas, que afectam os trabalhadores e os mais vulneráveis equivale a 1,8% do PIB, enquanto que o impacto orçamental das medidas visando os rendimentos do capital e dos mais ricos equivale a 0,6% do PIB . Acrescente-se o plano de privatizações que incide sobre empresas de bens não transaccionáveis, como a Rede Eléctrica Nacional (REN), com pouca ou nenhuma concorrência e com lucros garantidos, e um conjunto de importantes serviços públicos, como os Correios e Telecomunicações de Portugal (CTT), e temos a receita para uma brutal redistribuição de rendimento, onde são os mais pobres que pagam a factura. Com o desemprego a crescer, aumenta a violência sobre os mais vulneráveis para aceitarem qualquer trabalho a qualquer preço. Assim se cumpre o verdadeiro objectivo das medidas de austeridade, a redução salarial como forma de ajustamento estrutural da economia portuguesa.

Salvar o euro? I

Artigo publicado na edição de Junho do Le Monde Diplomatique - edição portuguesa.



Em 2007, o primeiro-ministro José Sócrates colocava o desemprego, então em 8% da população activa e já acima da média europeia, como «o problema mais sério do nosso país». Em Maio de 2010, o mesmo José Sócrates, em entrevista à RTP, anunciava os dois pacotes de medidas de austeridade como necessários à defesa do euro, novo desígnio da política nacional. Entretanto, com o desemprego já nos dois dígitos, o primeiro-ministro apresentava os chamados Programas de Estabilidade e Crescimento (PEC), que terão um carácter recessivo, como o «bê-á-bá» da teoria económica. O governo do Partido Socialista assumia assim o aumento do desemprego nos próximos anos.

José Sócrates tem razão ao apresentar o Fundo Europeu de Estabilização como o resgate do euro. Mas o que esconde esta defesa, aparentemente fetichista, do euro na concepção neoliberal da arquitectura monetária que presidiu à sua evolução desde o Tratado de Maastricht, em 1992? Não foram certamente as necessidades de financiamento dos Estados periféricos (Grécia, Portugal, Espanha) que comandaram este plano de resgate. O ataque especulativo sobre os títulos de dívida tinha surgido em Janeiro e agudizara-se desde então, sem que a União Europeia (UE) tomasse qualquer iniciativa concertada. Só quando o risco de incumprimento do Estado grego se tornou um cenário provável, e o pânico tomou conta dos mercados financeiros, reuniram, durante um fim-de-semana, os governos europeus.

A verdade é que os bancos europeus, grandes detentores de dívida pública grega, sob a ameaça de fortes perdas no caso de não pagamento, a juntar às suas necessidades de financiamento em dólares (estimadas em 500 mil milhões de dólares) que a desvalorização abrupta do euro aumentou exponencialmente, começaram a ter dificuldades de acesso aos mercados onde conseguem a vital liquidez. O seu colapso, e consequente contágio internacional, pareciam ser um horizonte demasiado próximo. A abertura de linhas de crédito entre o Banco Central Europeu (BCE) e Reserva Federal norte-americana, permitindo acesso ilimitado dos bancos europeus a dólares, a humilhante intervenção do Fundo Monetário Internacional (FMI), financiado e controlado pelos Estados Unidos, e a compra de títulos de dívida pública europeus por parte do BCE no mercado secundário, permitindo aos bancos, mas não aos Estados, a venda dos seus activos, denunciam quais os verdadeiros beneficiários do plano de salvamento.

Crise Animada

Palestra do geógrafo marxista, David Harvey. Muito giro. Infelizmente, não consegui encontrar uma versão com legendas.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Economia Política em português

Luís Carlos Bresser-Pereira é um economista brasileiro cada vez mais conhecido e ouvido na Europa. É professor emérito da Fundação Getúlio Vargas onde tem ensinado deste 1959. Em 1987 foi Ministro da Fazenda (finanças) do Brasil, depois (em 1995) foi Ministro da Reforma do Estado e ainda (em 1999) Ministro da Ciência e Tecnologia. A partir de 1999 de dedicou-se a tempo inteiro ao ensino (Fundação Getulio Vargas, Universidade de Paris I, Universidade de S. Paulo) e à escrita. O seu vigor e actividade são impressionantes (ver a página pessoal) e o que escreve ajuda a perceber uma das razões pela qual a economia Brasileira é emergente. Não é só pela demonstração prática da possibilidade de uma redistribuição que não espera pelo crescimento e de um crescimento que beneficia da redistribuição, é também pela renovação do pensamento económico nas universidades, no espaço público e na tomada de decisão pública.

Em Outubro de 2010 Bresser-Pereira estará em Portugal para participar na Conferência “The Revival of Polítical Economy” organizada pelo CES. Como aperitivo leiam por favor "A crise financeira global, e depois: um novo capitalismo?".

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Antes Islândia que Irlanda

No Blog do Paul Krugman, vem hoje referido um estudo de Stefan Olafsson and Arnaldur Solvi Kristjansson que, entre outras coisas, compara o desempenho da economia Islandesa depois da crise (e depois da desvalorização monetária e medidas de controlo da circulação de capitais) com o de outros países que têm seguido receitas mais consentâneas com a economia dos manuais. E não querem lá ver que...



Para os que, como eu, confundem cores, esclareço que a linha da Islândia é a que acaba em cima em ambos os gráficos. Isto só vem provar como os factos podem ser enganadores quanto à melhores soluções para uma crise como a que estamos a viver. Felizmente, os economistas que comandam as instituições europeias não se deixam levar por disparates empíricos...