quarta-feira, 7 de julho de 2010

Reconciliar os portugueses com a política (II)



Claro que uma reforma deve ser uma mudança gradual: para que os actores possam adaptar-se devidamente a ela e para que se possam maximizar as vantagens e minimizar os inconvenientes das transformações. Por isso, e porque não faz sentido retirar todo o poder às direcções partidárias e transferi-lo todo para os eleitores, designamente porque os partidos devem ter uma palavra a dizer na composição das bancadas parlamentares (para assegurar a presença de determinadas valências técnicas e políticas), propusemos um sistema com dois conjuntos de círculos: um nacional onde se aplicam as “listas fechadas e bloqueadas” e que tem também funções de manutenção da proporcionalidade; pequenos círculos regionais (6 a 10 lugares) onde então se aplicaria o voto preferencial. Neste particular, a redução do número de deputados (que nenhuma comparação internacional justifica) seria contraproducente: ou obrigaria a reduzir o círculo nacional, reduzindo a proporcionalidade e o papel das direcções partidárias; ou obrigaria a reduzir mais os círculos regionais, prejudicando a representação territorial e a possibilidade de os pequenos partidos elegerem aí deputados. Além disso, o voto preferencial só pode ser aplicado em pequenos círculos: para os eleitores terem capacidade de processar informação sobre os candidatos em disputa e para que a medida seja logisticamente exequível (os boletins passariam a conter os nomes dos candidatos efectivos de todos os partidos). Por isso é que a ideia expendida por um tal Félix António neste jornal (aplicar o voto preferencial num cículo único com 100 deputados) é completamente descabida.


Resumindo, o voto preferencial pode dar um importante contributo para a reconciliação dos portugueses com a política.

Mas há outros:

Primeiro, é crucial preservar a proporcionalidade: ela é a condição do pluralismo multipartidário que temos e, por essa via, um esteio essencial da participação política (se comprimissemos a representação dos pequenos muitos dos seus eleitores passariam a abster-se: veja-se a Grã Bretanha) e da clareza das alternativas (sem os pequenos a competição passaria a focalizar-se só no centro).

Segundo, é preciso reforçar a governabilidade sem beliscar a proporcionalidade (moção de censura construtiva, orçamento construtivo, incentivos institucionais à cooperação entre os partidos): as pessoas querem que os partidos se entendam, como prova o bom desempenho do PSD apesar da cooperação com o PS.

Por último, é preciso que os políticos mudem as suas atitudes e comportamentos para que os eleitores possam encarar o Estado como uma pessoa de bem. Por exemplo, o PS está propor a privatização de 17 empresas públicas (muitas delas estratégicas e lucrativas) sem ter dito nada sobre o assunto na campanha: uma subversão da Constituição material (do governo representativo). E não é aceitável fazer-se um acordo sobre a reforma das pensões e na legislatura seguinte voltar com a palavra atrás. Mais: nenhuma estabilização financeira legitima a subversão do principio da não retroactividade das leis. Se os representantes políticos querem ser tidos como pessoas de bem têm que comportar-se como tal, mas para isso não é preciso nenhuma mudança institucional.

Publicado originalmente no Público de 5/7/2010.

3 comentários:

Anónimo disse...

Assino por baixo o comentário de André Freire.

PMatos disse...

Sou um seguidor e admirador do seu trabalho, prova disso é que "o fiz" a autografar 5 ou 6 livros depois de uma "acção de formação" duma fundação e, sem desvalorizar a sua análise e estudo, sou levado a dar uma enorme importância ao seu último parágrafo.

Parece-me que antes de qualquer medida ou mudança institucional, a classe política tem mesmo que mudar a sua atitude e comportamento tendo, assim, muito trabalho pela frente nomeadamente para afastar a péssima imagem que construiu de si mesma e voltar a chamar a si o eleitorado.

Basta olhar a evolução da abstenção, e sabe isto muito melhor que eu, que este afastamento já vem de longa data.
Há muito trabalho para fazer...

Parece-me que o primeiro passo poderia passar pelo recurso cada vez menor aos homens do marketing e mais aos homens da ciência política e da sociologia

Descobri hoje este blogue... serei com certeza seguidor assíduo.

Anónimo disse...

Obrigado pelos comentários, com que concordo!
AF