terça-feira, 18 de novembro de 2008

Obamanomics: proteccionismos há muitos

A ficção do comércio livre, segundo a qual os Estados não devem poder moldar ou influenciar o padrão de especialização e de desenvolvimento económico, é um dos produtos intelectuais que os EUA exportam com mais determinação para o resto do mundo. E, no entanto, como lembra Ha-Joon Chang, em oportuno artigo no Financial Times, os EUA são a pátria do proteccionismo.

O apoio previsível do governo norte-americano à indústria automóvel em dificuldades faz parte da tradição da política industrial deste país. Como defende Chang, um apoio temporário bem desenhado e com condições pode facilitar a reestruturação, modernização e viabilização económica deste sector, evitando um processo de destruição industrial e de emprego que sairia muito mais caro. Paul Krugman, cujos modelos de comércio internacional permitem justificar acções de protecção, mas que sempre foi céptico em relação às suas possibilidades práticas, parece agora, com o bom pretexto da crise, apoiar a iniciativa democrata. A crise vai obrigar a muito mais.

Chang assinala um dos padrões a que já aqui tínhamos feito referência: em democracias, um Estado Social forte parece ser um substituto, pelo menos parcial, do proteccionismo comercial directo. De qualquer forma, a política industrial inteligente e o Estado Social são altamente complementares. Como mostra a história dos países desenvolvidos.

Sairão as causas da esquerda reforçadas com a actual crise?

Um dos aspectos fascinantes da actual crise económica é ver muitos dos liberais de sempre - incluindo Sarkozy, Merkel, Barroso, entre muitos outros - a defender o regresso em força do Estado, jurando a pés juntos que a intervenção deste é fundamental para controlar os ímpetos destrutivos das forças de mercado. Para aqueles que, como os autores deste blog, andam há anos a apontar as limitações dos argumentos liberais, estes são momentos algo confortantes (e até risíveis). Mais ainda, a sucessão de discursos vindos de partes inesperadas acerca das razões desta crise e das soluções necessárias para a combater, levam a crer podermos estar perante a possibilidade de avanços substanciais no que respeita à possibilidade de um maior controlo democrático do funcionamento dos mercados, o qual contrarie as tendências centrais da evolução do capitalismo nas últimas décadas - aumento das desigualdades, instabilidade crescente, crescimento anémico, desemprego.

Como sugere o Jorge no post anterior, a história ensina-nos que foi em momentos de crise aguda que as alterações institucionais mais profundas ocorreram. Mas é preciso termos em conta que essas alterações tanto podem ser no sentido do New Deal de Roosevelt como na chegada ao poder do Partido Nazi na Alemanha, para usar dois exemplos históricos concomitantes. A necessidade de mudanças profundas, quando existe, tende a ser aproveitada por quem consegue mobilizar as forças sociais relevantes. No momento actual, nem a crise atingiu proporções de ruptura (embora os sinais que nos vão chegando sejam cada vez mais preocupantes para os tempos que aí vêm) - nos EUA teme-se que o desemprego chegue aos 10%, no auge da crise de 1929 atingiu 25% da força de trabalho - nem é nada claro que as forças no terreno favoreçam as causas da esquerda.

No plano internacional, a administração Bush não surge isolada na defesa da lógical liberal de funcionamento do sistema financeiro internacional. Sendo ainda cedo para perceber quão longe irá a reforma do sistema que sairá da cimeira do G20 em Março, não é de esperar, pelo menos para já, que dela emerja a decisão de uma regulação global do sistema financeiro que evite a concentração mundial das poupanças num número reduzido de mãos e que permita colocar o sistema financeiro ao serviço da economia real (em vez do inverso que hoje se verifica).

Também na Europa não sabemos em que resultará a crise. Alguns esperam que ela torne clara a necessidade de uma gestão coordenada das políticas macroeconómicas ao nível da UE. Certos autores apostam mesmo que este será o momento para introduzir mecanismos permanentes de gestão dos ciclos económicos ao nível europeu (como temos defendido insistentemente neste blog e que são discutidos com maior detalhe neste artigo que o João e eu publicámos no LMD), ou pelo menos a utilização de instrumentos pontuais, como a emissão de obrigações europeias para financiar projectos de investimento à escala transnacional, que podem constituir precedentes importantes numa arquitectura institucional que torna a UE actual num motor fundamental do neoliberalismo. Mas também do lado do adversário há quem não perca tempo: do think-tank Bruegel (cujo presidente é conselheiro económico de Barroso) estão a sair propostas de uma resposta forte e determinada à crise... sob a forma de redução do IVA acompanhada do reforço dos compromissos com as 'reformas estruturais' (leia-se, resregulamentação, liberalização, privatização) por parte dos países cujo défice público ultrapasse o limite de 3% do PIB devido à quebra das receitas associada (ou seja, quase todos).

Em suma, o momento é de combate político e ideológico e o desfecho está longe de estar determinado. Não é tempo para a esquerda ficar sentada no sofá.

O trabalho de casa das esquerdas


Alguns comentadores, alinhados à esquerda, têm visto na actual crise do capitalismo neoliberal uma excelente oportunidade política para o robustecimento de um reformismo socialista radical – o que vai à raiz das questões – face ao desmoronamento do neo-liberalismo e às actuais dificuldades da deriva social-liberal (vulgo Terceira Via) na social-democracia europeia.

Também eu acho que estamos num importante momento de encruzilhada. Mas, para que os desejos se tornem realidade, as esquerdas ainda têm de fazer o seu trabalho de casa, em Portugal e noutros países da UE. De facto, em momentos de turbulência e renovado entusiasmo, tendemos a esquecer que realidades sócio-políticas e realidades culturais têm autonomia relativa: as lutas das esquerdas por políticas de efectivo crescimento com emprego, e por uma partilha mais igualitária do rendimento nacional, são forçosamente orientadas por conceitos, ideias, valores, ideologias, numa palavra por cultura. Por sua vez, a produção cultural emerge a partir de interacções humanas dominadas por factores sócio-políticos. Trata-se de esferas interdependentes mas também autónomas. De facto, são realidades distintas.

Vejamos. Foram as consequências sócio-políticas da Grande Depressão e da Segunda Grande Guerra nos EUA e na Europa, conjugadas com uma luta tenaz no plano das ideias, conduzida por intelectuais inspirados por Marx, Keynes e muitos outros institucionalistas contra as ideias liberais dominantes, que permitiram grandes mudanças na economia e nas suas relações com o resto da sociedade nas três décadas a seguir à Guerra. Uma guerra no plano das ideias voltou a ocorrer a partir de meados dos anos setenta do século passado, mas desta vez conduzida pelos intelectuais do neo-liberalismo muito inspirados por Hayek e seus discípulos, em conjugação com importantes mutações tecnológicas e demográficas, e com dinâmicas sócio-políticas que entretanto foram interagindo com o mundo da cultura.

O que pretendo dizer é que, por si só, a crise não leva às “reformas estruturais” por que lutam as esquerdas, mudanças que permitam uma progressiva socialização da economia, isto é, a subordinação da economia ao interesse público, tanto no plano nacional como no da UE. Na história das sociedades humanas não há determinismos. Concretamente, não me parece que as medidas que estão a ser discutidas pelos governos da UE e do G20 para superação da presente recessão/depressão nos conduzam a uma política económica em que o pleno emprego seja um objectivo central da política económica e o sistema financeiro se torne um instrumento ao serviço desse objectivo. Para que tal aconteça as esquerdas têm de travar, mais uma vez, uma guerra de ideias no espaço público, por muito que isso incomode alguma “esquerda instalada”.

Concluo. Para que as esquerdas europeias sejam credíveis, não podem continuar a apresentar-se ao eleitorado sem um projecto global quanto à economia. Não irão lá com propostas avulsas. Usando uma expressão de Thomas Palley, não basta apresentar uma política económica do tipo “lista de compras”.

A tarefa da esquerda é bem mais exigente porque o eleitorado está à espera de uma visão convincente do funcionamento da economia capitalista neoliberal, de como esse funcionamento gerou a presente crise, e do que está ao nosso alcance mudar e como. Na economia, Palley defende que o discurso terá de ser feito pela positiva afirmando três vectores centrais: a) política de concertação social ligando a evolução dos salários à evolução da produtividade; b) definir o pleno emprego como objectivo explícito da política económica; c) adoptar a ‘sustentabilidade’ como critério de avaliação dos défices.

Se é verdade que as esquerdas têm pela frente algum trabalho de casa por fazer, não é menos verdade que acumularam nos últimos anos muitas ideias e muita investigação. O importante é mesmo começar já a trabalhar ... porque o caminho também se faz caminhando.

sábado, 15 de novembro de 2008

Um certo paradigma das políticas públicas



Diz ainda Luís Capucha:

«O que está em causa, de facto, não é nem um problema técnico do modelo da avaliação, nem o estilo da governação. O que está em causa é saber se um governo legitimamente eleito pode ou não realizar uma reforma do maior alcance estratégico, sem ceder aos interesses corporativos e/ou políticos de sectores capazes de se mobilizar para paralisar a mudança e manter privilégios ilegítimos.

Errado! Não está em causa a legitimidade política do Governo. O que está em causa, isso sim, é o seu paradigma das políticas públicas. Uma vez mais, recorro a Michel Crozier (p. 19):

"O que significa estratégia? ... Na sua visão organizadora do mundo, o planificador não tem inimigos, sente-se capaz de organizar tudo racionalmente e alcançar plenamente os seus objectivos escolhendo os meios adequados, para não dizer os melhores. Mas os meios, sobretudo quando são humanos, não se adaptam tão facilmente aos objectivos e acabam por bloquear - e ainda bem - a maravilhosa ordem racional. Pelo contrário, o estratega sabe, tem consciência, de que o inimigo pode reagir às suas acções. Por isso, escolhe os seus objectivos em função dos meios, quer dizer, dos recursos de que dispõe e das condicionantes da sua intervenção. Depois, com pragmatismo, procura enfraquecer as condicionantes cooperando da melhor forma com os seus recursos. Dito de outro modo, enquanto o comandante apenas vê o seu plano, o estratega apoia-se na realidade do terreno."

Pois é, no seu "ímpeto reformista", ignorando que os tempos são outros, o Governo comportou-se como um planificador central.

O mais interessante disto tudo é que, paradoxalmente, os críticos deste paradigma de políticas públicas correm o risco de serem catalogados de pró-soviéticos e anti-europeístas.


sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Quem tudo quer tudo perde

Acabo de ler no Canhoto um texto de Luís Capucha que, num contra-ataque aos críticos do actual Governo, diz o seguinte:

"Neste momento a controvérsia e a contestação anda à volta da avaliação dos professores. Mero pretexto para fazer regredir todo o processo de modernização que está em curso. Neste quadro, as alegadas questões técnicas do “modelo de avaliação do Ministério da Educação”, não passam de “fumaça”. A maioria delas, aliás, foi deliberada e artificialmente fabricada para lançar a suspeição sobre a medida, incendiar o país e criar o pânico. Qualquer especialista em recursos humanos subscreveria esse modelo e os muitos exemplos de uma correcta aplicação do modelo provam-no."

Tenho a maior consideração por Luís Capucha, mas não posso deixar de lamentar que, no actual contexto, tenha perdido um mínimo de sentido crítico sobre o que está em causa.
1) Como é possível pensar que a esmagadora maioria dos professores foi manipulada por sindicatos com o objectivo político (oculto) de fazer regredir a acção "modernizadora" do Ministério da Educação? Como é possível pensar que a questão do modelo de avaliação é apenas "um mero pretexto" quando o autor sabe que os sindicatos foram a reboque da contestação e, agora, fazem o que podem para tirar partido da paralização do processo de avaliação decidida nas muitas escolas onde nem há sequer um delegado sindical?
2) Infelizmente, não aponta nenhum especialista em recursos humanos que dê a cara por este processo, nem menciona qualquer país onde este modelo esteja a ser aplicado. Pela minha parte, não partilho a ideia de que as pessoas são "recursos humanos". Em todo o caso, um especialista nessa área da gestão, escreveu há uns anos o seguinte:
"Alguma vez alguém viu uma reflexão séria sobre a aplicação de instrumentos específicos de gestão das pessoas na administração [pública], tivesse ela origem nos sindicatos, nos dirigentes ou na intervenção dos governantes? ... Ninguém gere sem ideias. Nem mesmo quando a actividade dominante é a política. ... Se não for pensada, a gestão das pessoas na administração não passará de um latifúndio de problemas emparedado entre minifúndios de interesses: o que na prática significa que tudo ficará na mesma, ainda que a vontade de fazer tenha a marca contrária." (Estêvão de Moura, Público/Economia, 06.05.2002)
Esta afirmação continua válida. O Governo não propôs uma visão mobilizadora do que deve ser a escola pública e do papel central que os professores teriam no processo de mudança. Antes, invocando o interesse público, inventou uma "corporação de preguiçosos" que era preciso enfrentar com determinação. Ou seja, conseguiu o impensável: uma unidade dos professores como nunca se viu.
3) O Governo não propôs uma visão mobilizadora do que deve ser a escola pública porque trabalha com pressupostos problemáticos sobre as motivações dos professores, sobre a natureza e o papel do Estado, e sobre as políticas públicas. Inspira-se em teorias simplistas como a da "captura do Estado" por grupos de interesses. A minha crítica a esses pressupostos está feita (ver aqui a referência).
4) A equipa do ministério da Educação ignora o que de mais básico se diz nos manuais de gestão sobre gestão da mudança (ver este que conheço em edição de 1993). Como dizia numa entrevista ao Expresso (14.04.1995) um especialista em gestão de mudança em organizações da administração pública, e em particular na educação, ouvir a realidade implica "passar da tal democracia de acesso [onde os sindicatos têm o monopólio da representação] a uma democracia de deliberação." Acontece que este não é o paradigma do actual Governo.
Termino com uma frase que fui buscar ao mesmo sítio de onde veio a figura: "podemos criar mudança mesmo quando o apoio é escasso se começarmos em pequena escala."
É bem verdade, quem tudo quer tudo perde.

O espectro anda por aí...

O Público traz hoje uma excelente reportagem sobre o importante congresso Karl Marx. O João Rodrigues é um dos que opinam. O espectro anda por aí... Nas ciências sociais, onde se inclui a Economia, e nas ciências humanas. E na acção política, claro.

Sim, e o Partido Socialista?

Através do País Relativo, cheguei a esta declaração de Paulo Pedroso: «Só que nós não podemos dizer que gostamos do euro à segunda, quarta e sexta e dizer que podemos não cumprir o PEC à terça, quinta e sábado». No momento em que a zona euro entra, pela primeira vez, em recessão, em que o uso da política fiscal é consensual em todos os quadrantes políticos e em que existem países (como a França) a anunciar a violação do Pacto de Estabilidade, é incrível como o PS continua obcecado com o défice. Ou talvez não, tendo em conta que toda a sua governação nos passados três anos foi feita segundo os desígnios do famigerado PEC. O que é mesmo incrível é o facto desta profissão de fé vir de alguém que pertenceu a uma direcção do PS (a de Ferro Rodrigues) que advogava a revisão do mesmo PEC.

O discurso do combate às corporações - IV

(Conclusão da série com este título iniciada aqui)

O discurso do combate às corporações assume um modelo de políticas públicas de causalidade linear: a concepção cabe ao governo que dá orientações e ordens à Administração Pública, competindo a esta última a execução.
Evidentemente, a prática governativa nunca é exactamente assim, mas isso em nada invalida o meu ponto de vista. O que conta é que o modelo aqui identificado existe e é assumido como uma norma pelos actuais decisores políticos. Embora isto seja negado em público, qualquer desvio à norma é visto como um percalço, um preço político a pagar para levar a cabo a reforma.
Faltando-lhe a percepção da complexidade dos processos sociais, o governo ignora que as políticas públicas são processos interactivos envolvendo diferentes níveis de responsabilidade interdependente. Uma concepção dinâmica e aprendente das políticas públicas permitiria perceber que, no exercício das suas tarefas, as chefias intermédias e os quadros que interagem com os cidadãos recolhem informação preciosa para o diagnóstico dos problemas e a concepção das medidas, ao mesmo tempo que captam em primeira-mão o que não funciona.
Ora, no que toca ao nosso país, grande parte das chefias da administração pública foi recrutada através das redes partidárias e, no caso deste governo, a negociação colectiva é um dos seus pontos fracos. Neste contexto, tendo em conta que as políticas públicas têm sempre a “marca” dos quadros da administração, o mínimo que se pode dizer é que as expectativas sobre a eficácia das reformas em curso são baixas.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Instrumentos para evitar as crises financeiras

Dani Rodrik da Universidade de Harvard é um dos responsáveis pela reabilitação, nos círculos académicos convencionais, dos controlos de capitais e das fórmulas keynesianas de taxação das transacções financeiras. As conversões a esta sensata posição não param. Como dizia Keynes, citado por Rodrik, «Se os factos mudam, eu mudo a minha opinião. E o senhor o que faz?». Acumulam-se estudos empíricos que suportam uma das grandes lições de Keynes: «as deslocações maciças e altamente caprichosas de fundos de curto prazo constituíram a principal fonte de perturbações do sistema financeiro internacional». Acumulam-se as soluções para domar a finança de mercado. Acumula-se a evidência de que os países que não aderiram ao antigo «Consenso de Washington» resistiram melhor.

Que países são mais vulneráveis? Os que alinharam na «regulação ligeira» dos mercados financeiros à Gordon Brown, os que acreditaram que a nacionalidade dos bancos já não interessava para nada (olhem para a Hungria…), os que subscreveram ingenuamente o romance dos mercados financeiros eficientes. Na realidade, foi mais importante, no caso dos países em vias de desenvolvimento, a força dos condicionalismos do «complexo Wall Street-Tesouro-FMI» (a expressão foi cunhada pelo economista liberal Jagdish Bahgwati).

A utópica hipótese dos mercados financeiros eficientes, uma ideia politicamente poderosa, mas intelectualmente muito frágil, como muito do que saiu de Chicago, foi transformada em dogma e inspirou a configuração neoliberal responsável pela crise. E, no entanto, até Jean-Claude Trichet começa a ter dúvidas. É bom que comece também a ter muitas dúvidas sobre a desgraçada actuação do BCE. A recessão está aí. Os consensos esboroam-se lá fora. Em Portugal, onde o debate público ainda é excessivamente dominado pelos economistas de todas as direitas intelectuais, parece que não se passa nada. É só mais uma crise. Tão natural como as estações...

A crise da inteligência

Revisitando um académico com grande experiência profissional na consultoria de grandes organizações em crise, dou com os olhos nesta passagem (Edição de 1995; p. 87): "A deriva tecnicista e tecnocrática da classe política francesa afasta-a do empírico, do conhecimento prático e da experiência dos operacionais."

Aplica-se ipsis verbis à classe política que nos tem governado.
Assim, sugiro ao nosso Primeiro-Ministro que encomende já este livro. Talvez ainda possa ser útil para quem vier a seguir na Av. 5 de Outubro, Lisboa.

E, entretanto, medite no sentido profundo da "Carta à ministra da Educação sobre a minha incredulidade" que encontra na secção de opinião do Público de hoje. É uma "operacional" de uma escola pública que fala do que sabe e vive no seu quotidiano.

O discurso do combate às corporações - III


(continuação dos nº I e II)

O discurso do combate às corporações assume que o Estado se encontra no vértice da sociedade, num lugar privilegiado que permite obter a visão mais informada sobre o que está mal e lhe confere o poder de conduzir reformas (cujos efeitos interessam ao conjunto da sociedade) segundo processos de comando e controlo que regra geral se revelam profundamente inadequados. Com esta visão, o governo tem dificuldade em entender a autonomia dos actores sociais e a sua exigência de diálogo sério em tudo o que os afecta. Partindo da ideia de que as soluções que apresenta são as melhores, e no essencial não estão em discussão tendo em conta o mandato político que as sustenta, o governo cai numa atitude auto-suficiente como se dispusesse de acesso privilegiado ao conhecimento nos vários domínios. Ao mesmo tempo, revela um entendimento autoritário do funcionamento do Estado já que, pelo menos em democracia, nenhum governo deve relacionar-se com os corpos profissionais que sustentam os serviços públicos numa lógica de comando e controle, muito menos quando se pretende introduzir mudanças importantes no seu funcionamento. Contudo, tendo em conta os pressupostos implícitos na actual lógica governativa, percebe-se que a prática da democracia deliberativa esteja fora do horizonte deste governo. A democracia deliberativa pertence a outro paradigma.

(conclui amanhã)

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

O Autor Proibido


A Cultra e o Instituto de História Contemporânea vão organizar, no próximo fim-de-semana, o Congresso Karl Marx, que se irá realizar na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, em Lisboa. O programa está aqui.

Será um espaço de reflexão sobre os mais variados temas, aberto à participação de todos.

A viragem neoliberal do PS não terminou: trabalho

«O princípio do tratamento mais favorável deixa de ser aplicado genericamente, restando um conjunto de 14 situações de excepção. É a inversão de valores e de princípios defendidos antes pelo PS. O combate à precariedade, a principal bandeira apresentada pelo governo como uma questão decisiva em favor do trabalhador fica desde logo desmentida pelo Artº 112 da actual proposta de Lei, que estabelece 180 dias de período experimental, durante a qual o contrato pode ser denunciado por qualquer das partes sem aviso prévio». Num informativo artigo na OPS, Elísio Estanque defende que o novo código assinala a viragem da direcção do PS em matéria de direito do trabalho.

Estamos muito longe desta declaração: «A proposta de Lei nº 29/IX [Código do Trabalho de 2003 de Bagão Félix/Governo PSD] assenta numa concepção conservadora e retrógrada, não assegura a protecção da dignidade dos trabalhadores na empresa (...), porque ignora a evolução do Direito do Trabalho ao longo do século XX, retoma uma matriz civilista que assenta na ficção da igualdade das partes na relação laboral, sobrepõe a relação individual de trabalho às relações colectivas de trabalho (...). O que está em causa é a filosofia e a alteração dos poderes do empregador, o enfraquecimento da dimensão colectiva, o acentuar da dependência do trabalhador, visão que, tendo em conta a matriz constitucional do direito do trabalho e a concepção que perfilhamos dos direitos dos trabalhadores, não podemos compreender nem aceitar». É caso para dizer, parafraseando Marx, que todas as sólidas convicções socialistas se dissolvem no ar da governação neoliberal.

O discurso do combate às corporações - II


(Continuação do texto iniciado aqui)

O discurso do combate às corporações assume que a sociedade é dominada por grupos de interesses particulares que disputam os recursos do país, e ao mesmo tempo vê cada grupo como uma soma de indivíduos, todos procurando obter benefícios pessoais dando o menos possível ao grupo. Em linha com o pensamento neoliberal e o seu individualismo metodológico, aquele discurso ignora a natureza intrinsecamente relacional do ser humano tomando as pessoas como átomos sociais. Trata-se de uma visão redutora da realidade social uma vez que descarta a existência de classes e sistemas sociais dotados de causalidades irredutíveis à acção dos seus membros. De acordo com esta lógica, percebe-se que o voluntarismo reformador do governo dê uma atenção especial ao controlo dos comportamentos individuais através de múltiplos procedimentos burocráticos (descritores, indicadores, fichas, etc.). No fim de contas, ignora que a mudança das organizações se tece nos locais de trabalho a partir da reconstrução das relações entre pessoas e redes de pessoas em torno de uma visão partilhada sobre o sentido das respectivas tarefas. Como disse um autor da gestão empresarial, “nas transformações falhadas encontramos frequentemente muitos planos, directivas e programas, mas nenhuma visão.” (continua amanhã)

terça-feira, 11 de novembro de 2008

A viragem neoliberal do PS não terminou: aeroportos e prisões

«Dentro de pouco [tempo] apresentarei o modelo de privatização da ANA (…) Não nos parece que o Estado tenha de ser dono daquela infra-estrutura» (Mário Lino ao Público). O Estado não tem de ser dono de nada. Esta gente não aprende nada. E ainda não viram nada. Chegou a vez das prisões. Em parceria público-privada porque estamos numa área de fronteira: «O secretário de Estado diz que o governo não pretende ‘apostar numa gestão do próprio sistema por privados’, mas salienta que esse modelo ‘existe já em Inglaterra e nos Estados Unidos’». As grandes referências da «esquerda liberal». Lá chegaremos.

Escrevi isto no Jornal de Negócios há alguns meses: Para além da ênfase nos processos de privatização, de liberalização financeira e comercial ou de desregulamentação das relações laborais, uma das dimensões que tem sido recentemente sublinhada nos estudos sobre o neoliberalismo, como conjunto de ideias que inspiram as políticas públicas, é a sua aposta numa profunda reconfiguração do Estado e das suas funções. O objectivo, sobretudo nos países mais desenvolvidos, é agora encontrar soluções institucionais e de financiamento que favoreçam a progressiva entrada dos grupos privados nas áreas tradicionais da provisão pública, associadas não só ao chamado Estado Social, mas também à gestão e controlo de equipamentos e infra-estruturas públicas. Usar o Estado e os recursos financeiros que este controla para abrir novas áreas de negócio, onde os lucros estão relativamente garantidos, é a orientação de fundo.

Para uma melhoria da representação política.

É com muito prazer que anuncio o aparecimento para muito breve (esta semana ou a próxima), nas bancas, do livro editado pela "Sextante" e que é da minha autoria, do Manuel Meirinho e do Diogo Moreira: "Para uma melhoria da representação política. A reforma do sistema eleitoral". (inexplicavelmente para mim, a imagem da capa tens as cores trocadas: o fundo devia ser azul e a urna de voto no centro do parlamento devia ser vermelha; as bancadas do parlamento são verdes - devem ser problemas meus de literacia informática...)

Foi um prazer não só coordenar esta excelente equipa de investigadores, mas também realizar este estudo encomendado pelo Grupo Parlamentar do Partido Socialista (GP-PS). No primeiro caso, pela qualidade científica e humana das pessoas (de quem sou amigo). No segundo caso, porque apenas acordámos com o Dr. Alberto Martins, enquanto líder parlamentar do GP-PS, os principios fundamentais que deveriam nortear o estudo (e com os quais estamos todos de acordo!). Primeiro, manter os níveis de proporcionalidade e de governabilidade do sistema eleitoral vigente. Segundo, criar condições institucionais mais favoráveis para uma melhoria da qualidade da representação política (isto é, para que os eleitores conheçam melhor os seus representantes - em cada círculo regional/distrital-, tenham um papel mais activo na sua eleição e, por tudo isto, possam responsabilizá-los melhor e sentir-se mais próximos deles). Terceiro, as diferentes soluções de reforma deveriam apenas contemplar círculos plurinominais. Ou seja, acordados os principios, a equipa de investigação teve total autonomia na sua operacionalização e concretização (só assim poderíamos naturalmente aceitar este trabalho). Foi, por isso, um prazer e uma honra trabalhar com o Dr. Alberto Martins, a quem mando daqui uma saudação.

O livro aí está para ser escrutinado e analisado por todos os interessados, não só para que possam avaliar da qualidade do produto final (ou da falta dela, naturalmente), mas também para que possam avaliar da coerência das posições que temos assumido sobre esta matéria, quer na academia, quer na imprensa (ver, nomeadamente, o meu livro "Crónicas Políticas Heterodoxas", Lisboa, 2007, também da editora "sextante", e vários trabalhos académicos que eu e outros membros da equipa temos publicado sobre o tema).

Nós, equipa de investigação, esperamos organizar no futuro alguns debates sobre o livro/a reforma do sistema eleitoral, mas o primeiro será, em princípio, organizado pelo Grupo Parlamentar do Partido Socialista, dia 4 de Dezembro de 2008, na Assembleia da República (aberto ao público), e contará com vários prestigiados especialistas na matéria como discussants. Espero poder anunciar aqui, em breve, o seu elenco final.

Finalizo com uma palavra de agradecimento à editora "Sextante" pelo profissionalismo dos seus membros, nomeadamente o João Rodrigues e o Duarte Bárbara (agora mudado para a "Leya"), e por todo o trabalho e cuidado na edição do livro.

O discurso do combate às corporações - I


O mal-estar que hoje se vive nas escolas, e no resto da Administração Pública embora menos visível, obriga-me a divulgar aqui alguns excertos de um texto que publiquei em Abril no Le Monde Diplomatique (edição portuguesa). Para as referências bibliográficas é preciso comprar o jornal.

O discurso do combate às corporações assume que a racionalidade humana é predominantemente egoísta, um pressuposto essencial ao pensamento neoliberal. Por isso, o seu discurso veicula a ideia de que o comportamento oportunista domina as organizações. Também por isso, concebe a gestão sobretudo como uso de mecanismos de controlo hierárquico através da monitorização do esforço dos subordinados e dos seus resultados. Note-se, antes de mais, que este conceito de racionalidade humana é simplista e não corresponde ao que hoje sabemos sobre a complexidade da natureza humana. Depois, esta visão reducionista do ser humano desvaloriza a generosidade dos actores e a sua capacidade para cooperar na concretização de um projecto de interesse comum. Esse menosprezo do que há de melhor na natureza humana acaba por ter efeitos perversos bem identificados na literatura especializada: os sistemas de gestão que pressupõem um oportunismo generalizado acabam por estimular o tipo de comportamento que visam combater. Por outro lado, os esquemas de avaliação de desempenho não são apenas algo externo, um constrangimento à acção dos indivíduos; também moldam as suas motivações e percepções da realidade em que trabalham. Por isso mesmo, a escolha de um modelo de avaliação não é uma escolha técnica, bem pelo contrário é algo que determinará a natureza (mais ou menos hierárquica, mais ou menos cooperativa) das organizações, com consequências sobre o serviço que prestam. Este é o nó da questão na actual reforma da administração pública, com especial destaque para os sectores da saúde e do ensino.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Líderes europeus unidos na procura da solução para a crise


(Via FT.)

Universidade, Lda.

Será que um orçamento para a universidade que mal cobre as despesas correntes pode decorrer de outras preocupações que não a contenção da despesa e da dívida públicas? A resposta é afirmativa. Em conversas privadas e nas entrelinhas de textos teóricos e de política, a contenção orçamental é apresentada como o incentivo mais eficaz para obrigar a universidade a ‘modernizar-se’. A ‘modernização’ que se tem em vista passa por forçar a universidade a ir ao ‘mercado’ vender os seus ‘produtos’. O ideal de referência é o de uma universidade ‘mercadorizada’.

O resto pode ler-se na Ops que sai na terça-feira.

O presente ilumina o passado?

«É preciso que se diga, com clareza e com distanciamento, que as nacionalizações de 1975, na banca como nos outros sectores, foram a saída que permitiu evitar o caos social. Não só porque muitos dos proprietários das empresas as abandonaram descapitalizadas mas, sobretudo, porque a revolução política que se viveu em 25 de Abril de 1974, para se concretizar, tinha obrigatoriamente implicações na organização económica e social do país. O que implicava o Estado assumir as responsabilidades do processo, sob pena do colapso da economia portuguesa» . Oportuno artigo de São José de Almeida no Público de Sábado.

Os trabalhos de investigação sobre as nacionalizações da banca (em 1975…), que sei que estão em curso, lançarão certamente nova luz sobre este processo. E talvez possam abrir uma agenda de investigação crítica que nos ajude a compreender melhor o predatório processo de construção de grupos privados eminentemente rentistas associado ao ininterrupto ciclo de liberalização da economia portuguesa das últimas duas décadas. Temos de ser capazes de reconstituir as decisões e os processos históricos que nos colocaram no actual buraco económico. Tarefa de historiadores com conhecimentos de economia política ou de economistas políticos com conhecimentos de história.

Algumas das pessoas em que eu estou a pensar dinamizam este congresso internacional sobre o pensamento de Karl Marx e são os principais protagonistas deste seminário internacional sobre a tradição autonomista italiana. Uma semana cheia. Estes dois promissores eventos assinalam a afirmação de um novo e sólido pensamento radical no nosso país. A conversa como aprendizagem, que começa com discordâncias teóricas de fundo e acaba em convergências no que importa, não tem fim.

domingo, 9 de novembro de 2008

As forças da mudança

«Nunca como agora, a União está a revelar os limites da sua própria construção desde que se decidiu pelo grande alargamento. Todos os instrumentos de que dispõe rebentam pelas costuras face à dimensão mundial da crise. Um por um». Vale mesmo a pena ler esta posta de Miguel Portas no seu blogue Sem Muros. Europeísmo crítico. Uma parte da social-democracia europeia parece estar a acordar lentamente, muito lentamente, da sua longa hibernação neoliberal. Digo isto por causa desta notícia: «Os partidos socialistas europeus vão hoje apelar à cimeira de chefes de Estado ou de Governo da UE uma acção musculada contra a recessão económica através da coordenação dos investimentos públicos de maneira a maximizar os seus efeitos no interior do mercado único» (Público, 7/10/08). No entanto, basta ler o resto da notícia para se perceber que o PEC, apesar do seu descrédito generalizado, ainda parece ser sagrado por aquelas bandas. Lá se vai a acção musculada. Afinal de contas, o Comissário Europeu encarregue de o fazer cumprir é Joaquim Almunia, ex-dirigente máximo de um PSOE mais à esquerda, agora transformado no fundamentalista de serviço. O lugar define o pensamento.

No Público de ontem percebemos a tragédia de um PS em aliança com o «novo trabalhismo» britânico: «Países como o Reino Unido, República Checa ou Portugal (representado pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Luís Amado, em substituição do primeiro-ministro) contestaram o teor da proposta de mandato para Washington [cimeira] avançada pela presidência francesa da UE, considerando-a ‘excessivamente limitadora e condicionadora do mercado’». Gordon Brown esteve muito bem na operação de salvamento dos bancos, mas multiplicam-se os sinais de que a City londrina continua a condicionar totalmente a sua actuação em matérias mais estruturais. Foram dez anos nisto. Amado é apenas um socrático de gema, ou seja, um neoliberal suave. É desta liderança «socialista» (as aspas são mesmo necessárias), posicionada à direita de Sarkozy num assunto tão importante, que devemos esperar reformas de fundo?

Definitivamente, as mudanças terão de ser «impostas» a partir de fora dos partidos socialistas europeus. Alteração da correlação de forças à esquerda. Oskar Lafontaine, ex-ministro das finanças alemão e actual presidente do Die Linke, percebeu isso muito bem quando rompeu com um SPD totalmente descaracterizado. O Financial Times, que cobre com inusitada atenção e preocupação o que ali se passa, defende, há já algum tempo, que o clima intelectual e político está a mudar na mais importante economia europeia. O partido da Esquerda não cessa de crescer. Quem ler esta entrevista a Lafontaine percebe algumas das causas das preocupações dos neoliberais inteligentes que só querem socializar a perdas do sistema financeiro e afinar a sua regulação ligeira. Lafontaine mostra como a esquerda socialista é hoje portadora de um programa para combater a crise e para realizar as reformas igualitárias com impactos sistémicos que podem inverter a desgraçada trajectória europeia. Um gráfico ajuda a visualizar a dimensão da tarefa.

sábado, 8 de novembro de 2008

O pecado original

A governação do PS, sob Sócrates, tem vários problemas fundamentais, mas se eu tivesse que erigir o seu pecado original diria que é a falta de diálogo social, sobretudo na educação. Este pecado original não só vem à revelia da tradição que o PS sempre defendeu, como também diverge das modernas tendências da governação democrática nas sociedades europeias (ver abaixo).

Esse pecado original foi hoje, mais uma vez, evidenciado pela gigantesca manifestação de professores do ensino não superior: cerca de 120 mil docentes (ou seja, à volta de 85% dos membros da classe) desfilaram pelas ruas de Lisboa em protesto contra uma avaliação que classificam de “injusta, burocrática e ineficiente” (e para a qual alegam ter propostas alternativas), mas também contra o modelo de gestão escolar (centrado exclusivamente na figura do director, em termos executivos, e que retira a maioria aos professores no órgão deliberativo), defendendo em alternativa um modelo de governação mais colegial e que mantenha os docentes em maioria, e o novo estatuto da carreira docente (sobretudo a divisão dos professores em titulares e não titulares, que pretendem ver eliminada, defendendo em alternativa uma progressão “meritocrática” mas sem quotas).

O pecado original resulta da ilusão de que é possível reformar alguma coisa, em algum domínio que seja, mas nomeadamente na educação, sem mobilizar os profissionais para as mudanças (por maioria de razão quando estes são altamente qualificados e gozam de significativa autonomia), não só tornando claras para esses profissionais as vantagens das mudanças, mas também oferecendo algumas contrapartidas para algumas perdas que porventura se perspectivam no seu estatuto e direitos (é sempre necessário algum trade off numa negociação…) – e nesta área as perdas têm sido muitas, mas o trade off tem sido reduzido ou nulo. (Sobre a importância da mobilização dos profissionais para o bom desempenho das instituições, e o défice da mesma nesta governação PS, veja-se o excelente artigo “autópsia a um reformismo iluminado”, de Jorge Bateira, Le Monde Diplomatique, nº 18, Abril de 2008, também recordado no post anterior).

É flagrante que o Ministério da Educação (ME) nunca conseguiu cativar os profissionais para as mudanças que pretende imprimir. Prova disso é a ausência de um qualquer acordo, com um qualquer sindicato. Inicialmente, alegou que o problema era dos sindicatos, que não seriam acompanhados pelos docentes nas suas reivindicações. Porém, quer a manifestação de cerca de 100 mil docentes, em 8/3/08, quer a mais recente de cerca de 120 mil docentes, em 8/11/08, evidenciaram à exaustação que os professores, na sua esmagadora maioria, subscrevem as críticas dos seus representantes sindicais. O ME diz agora que se trata apenas de pontos de vista diferentes, esquecendo-se que, mesmo se fosse efectivamente apenas isso, deveria imperativamente promover a aproximação de posições, a bem das reformas. Adicionalmente, o primeiro-ministro, aquando desta como da anterior manifestação de professores, diz que “não se impressiona com números, só com argumentos racionais” (cito de memória). Esta alegação, porém, é completamente inconsistente com outras actuações suas/do seu governo: que tipo de impressão lhe causaram os bloqueios de camionistas e de pescadores que quase paralisaram o país este ano, e a que tão rapidamente cedeu? Terão sido argumentos racionais? Ou terá sido apenas a força dos bloqueios?

Aquando da manifestação de 8/3/08, escrevi no Público (11/3/08): “se algumas tendências de mudança na governação democrática europeia existem, nomeadamente dos anos 1960 para cá, elas vão no sentido de se defender e estimular uma crescente participação dos cidadãos nos processos de tomada de decisão, muito para além do voto. Neste domínio, não só se tem assistido a um crescimento das chamadas “formas não convencionais de participação política” (manifestações, ocupações, bloqueios, boicotes, etc.), como tem existido um recurso crescente a novos canais institucionais para a expressão e incorporação das preferências (referendos, iniciativas legislativas populares, petições, etc.). Mais, o uso de formas não convencionais será tanto maior quanto menos bem funcionarem os mecanismos tradicionais de concertação. Passando ao caso português, é imperioso concluir que a gigantesca manifestação de cerca de 100 mil professores não só demonstra uma enorme insatisfação de cerca de dois terços desta classe profissional, como evidencia que os mecanismos de concertação não têm funcionado, dando razão aos sindicatos. Mas esta manifestação, com pessoas de todos os partidos e quadrantes ideológicos (nomeadamente muitíssimos votantes PS, em 2005…), foi também uma grande lição de participação cívica.” Triste é verificar que a situação não só não melhorou desde então, como se terá até agravado (a julgar pelo número de manifestantes). Positiva é apenas mais uma impressionante lição de participação cívica.

Na minha perspectiva, um dos pontos positivos da atitude do governo em funções, quando começou a governar, foi a de rejeitar a ideia de que tudo o que tinha sido feito antes dele estava mal e precisava de ser radicalmente mudado. Na educação, porém, parece que tudo o que existia antes estava mal feito, e o próprio primeiro-ministro deu essa ideia na sua última entrevista ao DN (25 e 26/10/08). Exemplo: os alegados bons resultados deste governo, nas notas, no abandono escolar, etc., seriam tudo mérito exclusivo desta governação. Mas a verdade é esta: ou as mudanças são substantivas, isto é, os alunos sabem efectivamente mais e abandonam menos a escola, e então inscrevem-se num percurso gradual e paulatino que vem de trás (embora possa ter sido amplificado por medidas recentes), ou trata-se de meros artifícios estatísticos (infelizmente, parece existir alguma evidência neste sentido: veja-se o artigo de António Barreto, no Público, 1/11/08, sobre os recentes resultados dos exames, nomeadamente a matemática), pois em apenas 3 anos dificilmente se mudam coisas fundamentais na educação…

Algumas boas medidas do ME, neste mandato, como a escola a tempo inteiro, a ideia das aulas de substituição (embora não necessariamente a sua operacionalização), etc., perdem-se no meio de uma enorme falta de diálogo social e no meio da dúvida (que se avoluma, segundo vários observadores muito mais qualificados do que eu) que muitos dos resultados apresentados derivam de artifícios estatísticos e não de melhorias substantivas. Verdade, rigor, exigência e um verdadeiro diálogo social precisam-se desesperadamente na educação portuguesa (negociando, de raiz, com os profissionais, a matriz do modelo de avaliação, do modelo de gestão escolar e do estatuto da carreira docente, etc.). A bem de uma escola pública exigente e de qualidade, o que só se consegue com profissionais altamente motivados para as mudanças.

Quem quer ser trucidado?

Através do Cinco Dias, tomei conhecimento desta reveladora declaração do Secretário de Estado da Administração Pública: «Trabalhadores, serviços e dirigentes que não estejam com a reforma [da Administração Pública] serão trucidados». Uma boa síntese da atitude que também domina o Ministério da Educação. Trucidar os professores parece ser o objectivo do tortuoso modelo de avaliação em processo de contestada implementação. Estas declarações e estes processos só se compreendem no quadro de um programa mais vasto, e já aqui por nós denunciado, de subversão da provisão pública. Isto passa, entre outras coisas, pela destruição de todas as formas de solidariedade profissional. Uma das marcas da «esquerda moderna»?

Hoje, quando os professores estão uma vez mais na rua em defesa da escola pública e da sua ameaçada dignidade profissional, vale a pena relembrar o artigo do Jorge Bateira que saiu na edição de Abril do Le Monde Diplomatique - Edição Portuguesa. Intitula-se «Autópsia a um reformismo iluminado» e procura analisar criticamente a lógica das transformações em curso em muitos sectores da administração pública e apontar algumas das causas para o seu fatal insucesso. Alguns pontos muito importantes: (1) o discurso do combate aos supostos grupos de interesse assenta no pressuposto de que o oportunismo egoísta é o padrão de comportamento dominante nas organizações públicas; (2) este discurso, sobretudo quando é vertido em sistemas de avaliação e de monitorização, tende a ter efeitos perversos: «os sistemas de gestão que pressupõem o oportunismo generalizado acabam por estimular o tipo de comportamento que visam combater»; (3) a mobilização das motivações intrínsecas dos profissionais - por exemplo, na área da educação -, essencial para um bom desempenho, é bloqueada pela obsessão com o controlo burocrático por parte de quem não concebe a possibilidade da cooperação autónoma para atingir objectivos de interesse público; (4) gera-se uma mentalidade dirigista que assume que o centro político tem todas as soluções e que se trata apenas de as impor com voluntarismo combativo de cima para baixo; (5) o conhecimento dos profissionais é desvalorizado e não é incorporado no desenho das nova soluções.

Um desastre político e de políticas que vai custar muito caro à escola pública. Felizmente, há quem resista. Parece que são muitos, muitos mil…

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

"A crise financeira causas e respostas", por Miguel Portas, no ISCTE

É com muito prazer que anuncio, a seu pedido, mais uma conferência dos meus alunos do Núcleo de Alunos de Ciência Politica do ISCTE:

"O Núcleo de Alunos de Ciência Politica do ISCTE tem o prazer de convidar:

"A crise financeira causas e respostas" apresentado por Miguel Portas (Deputado Parlamento Europeu), Auditório b104, edificio 2 do ISCTE, dia 10 de Novembro (Segunda-feira) pelas 16h30m.

O Núcleo de Alunos de Ciência politica do ISCTE"

A iniciativa promete, não só pela sua actualidade mas também pela qualidade do orador.
É ainda bom saber que há jovens empenhados nos assuntos da polis.
Compareçam!

Que força é essa?

O que se passa nos locais de trabalho afecta as capacidades, os recursos e o poder que cada um de nós detém «cá fora». Também por isso, há poucas coisas mais importantes do que as regras que distribuem os direitos e as obrigações para lá da porta onde está escrito «proibida a entrada a pessoas estranhas ao serviço». O código do trabalho hoje aprovado mede, melhor do que qualquer outra coisa, a extensão da guinada à direita do PS e sobretudo de muitos dos que há algum tempo eram vistos como pertencendo à ala socialista desta formação política. É um padrão muito saliente nesta e noutras áreas da governação. Basta lembrar a posição de Vieira da Silva em 2003, aquando da aprovação do Código de trabalho de Bagão Félix. Manuel Alegre, um dos quatro socialistas com memória, afirmou hoje: «O PS é que infelizmente votou contra aquilo que tinha dito em 2003 (…) Nós [PS] fomos contra o Código do Trabalho apresentado pelo ministro Bagão Félix. Agora quase tinha que pedir desculpa das coisas que disse na altura».

Francisco Van Zeller da CIP deve estar muito satisfeito: «Vieira da Silva fez melhor do que um governo de direita». Jorge Leite, um dos nossos grandes especialistas em direito do trabalho, esclareceu ao Público as razões dessa satisfação: «Creio que o Código continua prisioneiro de concepções antigas, não enfrenta alguns dos mais significativos fenómenos da actualidade, como é o caso das empresas em rede, e insiste na tendência para a empresarialização do direito do trabalho, dele fazendo um instrumento de gestão, assim reduzindo, consequentemente, a dimensão humana do mundo do trabalho e sujeitando os direitos do ser humano no trabalho aos imperativos da economia de mercado».

Reduzir os salários, perdão os custos variáveis, por via da adaptabilidade ou minar a única central sindical que ainda tem peso (partir a espinha à CGTP voltou a ser uma orientação de política) através da promoção de todos os oportunismos laborais. Depois admirem-se se as desigualdades salariais não cessam de aumentar a par com o poder dos patrões. Leiam o dossiê sobre trabalho e sindicalismo na ops! se quiserem perceber para onde o PS nos está a levar. A neoliberalização gradual do PS e do país, que não recua, na prática, perante nenhuma crise do capitalismo purificado, lança um desafio a toda a esquerda socialista. Saibamos estar à altura.

O que ainda falta para a crise bater no fundo


Quem ler com atenção as previsões de Outono da Comissão Europeia e a actualização do World Economic Outlook do FMI, ambas publicadas esta semana, dá-se rapidamente conta de um facto: ninguém sabe neste momento onde esta crise pode parar. Não me lembro de documentos de previsão macroeconómica em que o reconhecimento das incertezas e dos downsize risks (perdoem-me o recurso à expressão original - a natureza eufemística da mesma perder-se-ia na tradução...) fosse tão claro.

Um dos factos que deixa os analistas mais nervosos é o que está reflectido no gráfico acima (que construí com dados retirados do site da OCDE). Desde a a chegada dos neoliberais ao poder nos EUA que o mercado bolsista foi deixando (primeiro lentamente, depois de forma acentuada) de ter qualquer coisa a ver com a economia real.

Acontece que, mais cedo ou mais tarde, a evolução dos preços das acções deve reflectir o desempenho real dos activos que representam. Agora, das duas uma: ou a linha vermelha (a do crescimento da economia real) inflecte acentuadamente para cima ou a linha azul (a dos índices bolsistas) ainda tem muito para descer (o que significará a destruição de riqueza de muita gente, incluindo daqueles que decidiram apostar na bolsa para 'garantir as suas reformas'...).

Olhando para o gráfico, o que é que vos parece mais provável?

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Virar à esquerda para promover o crescimento

O que diz não é novo, nem entra em detalhes. Mas, como de costume, vale a pena ler este texto de Stiglitz.

Perguntas a um social-democrata europeu

A crise do sistema financeiro neoliberal e a ameaça de uma grande depressão vieram, uma vez mais, revelar as insuficiências e perversidades da actual configuração da União Europeia. Há, então, um conjunto de questões que não podem deixar de ser colocadas. Creio que elas vão à raiz da profunda crise política e ideológica da social-democracia europeia como projecto de reforma igualitária das instituições fundamentais do capitalismo, ao mesmo tempo que apontam para as pesadas tarefas de um europeísmo crítico. O resto pode ser lido na minha contribuição mensal para o Jornal de Negócios.

Até quando é que o slogan na Europa vai ser «não, nós não podemos»? Foi tudo bem trancado. Sobre isto, ver o artigo que eu e o Ricardo escrevemos no ano passado para o Le Monde Diplomatique – Edição Portuguesa.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

O revisionismo dos reformistas portugueses

Pelo que percebo destes posts no Canhoto e no País Relativo, nas hostes dos socialistas portugueses discute-se por estes dias se a Terceira Via deve ou não ser atirada para a fogueira da história como uma emanação do neoliberalismo (por ora caído em desgraça).

Aqui teremos sempre a dificuldade de saber o que se entende por Terceira Via: se a análise feita por Anthony Giddens no seu manifesto 'blairista' de 1998 (Por uma Terceira Via, 1998), ou se a prática dos governos de Clinton, Blair, Schoeder, etc. Não é necessário muito para, como Filipe Nunes faz no seu post, encontrar incontáveis semelhanças entre o texto de Giddens e os habituais discursos de Manuel Alegre (nos quais os ataques à Terceira Via são recorrentes...) sobre aspectos como a necessidade de regulação financeira a nível internacional, a falta de democraticidade das instituições europeias, a necessidade do Estado «ter uma intervenção directa na vida económica, enquanto primeiro empregador» (cito Giddens) , garantindo a prestação de serviços públicos em várias áreas da vida social, etc.

No entanto, como afirma Paulo Pedroso, mesmo quando acertou nos diagnósticos, a Terceira Via foi incapaz de assumir rupturas, fosse «no modelo de regulação da actividade financeira de Greenspan (não rompendo com Reagan), na camisa de forças em que permaneceram os sindicatos britânicos (não rompendo com Tatcher) ou na política monetária do BCE que sempre sacrificou o crescimento económico em nome da obsessão com a inflação (não rompendo com Kohl).»

Mas já que os socialistas democráticos estão numa época de olhar criticamente para o passado em busca de novos caminhos, sugiro que não parem em Clinton e Blair e recuem um pouco mais, por exemplo, até Dellors. É ao 'pai' do mercado interno e da moeda única europeia (e a todos os socialistas que o apoiaram, desde o Acto Único Europeu até Maastricht) e não apenas a Kohl que devemos a arquitectura de gestão macroeconómica que hoje temos na Europa. Essa que retirou aos Estados os principais instrumentos de política económica (monetária, cambial e, em larga medida, orçamental), sem garantir que seriam criados instrumentos alternativos ao nível europeu que permitissem uma gestão adequada dos cíclos económicos (em particular quando estes afectam as economias europeias de forma assimétria); essa que atribui ao BCE toda a independência para prosseguir como único objectivo o controlo dos preços, aumentando os riscos deflaccionistas e não precavendo a instabilidade financeira; essa que promove activamente a concorrência fiscal entre países, erodindo a capacidade de financiamento dos Estados Membros para prosseguirem políticas sociais e fomenta a desigualdade social; essa que virtualmente inviabiliza a instituição de standards laborais, sociais e ambientais mínimos que impeçam que a concorrência se faça pela erosão do modelo de desenvolvimento social e ambiental no seio da própria UE.

A esquerda social-democrata europeia parece ter acreditado que a seguir ao aprofundamento da integração económica na UE se seguiria a correcção dos desvios neoliberais então dominantes. O resultado foi outro. Hoje só temos federalismo no mercado interno (tendo na Comissão Europeia como garante máximo da defesa da 'concorrência livre e justa' e da limitação das políticas estatais no domínio económico) e na moeda única (com o BCE preso às orientações que se conhecem). Quanto ao resto, estamos presos ao direito de veto de uns pouco países (a começar pelo Reino Unido) sempre que alguém quiser ir mais além na construção de um modelo social à escala europeia. A facilidade com que a Estratégia de Lisboa (último esforço real que a social-democracia nos governos da UE fez para amenizar este estado de coisas) foi cooptada pela Comissão presidida por Durão Barroso (que não hesitou em utilizar a retórica de 'Lisboa' para aprofundar as 'reformas' liberais que sempre defendeu) mostra bem a dificuldade em inverter o rumo em que segue a UE.

É razão para perguntar: de que é que a social-democracia europeia se pode orgulhar nas últimas décadas? Gostaria que quando se olhasse para trás daqui a 20 anos o balanço fosse melhor.

Furacões, pêndulos e a economia como ciência social


Há dias, Nicolau Santos abria a sua coluna de opinião recorrendo a uma metáfora: “Não é fácil, quando se está no meio de um furacão, acreditar que, por mais violento que seja, vai acabar por passar” (Expresso/Economia, 11 Outubro). Na primeira página do mesmo caderno, Daniel Bessa também comentava a crise e começava assim: “Desde que há capitalismo, há crises económicas. Nada de novo, portanto, no que se está a passar.” O leitor menos informado é assim levado a pensar que o enorme cortejo de sofrimento humano que vem associado à falência das empresas/famílias e ao desemprego tem algo de inevitável, como acontece com os grandes desastres naturais.

Em tom menos dramático, Helena Garrido no Visto da Economia lembrou-se da metáfora do pêndulo para interpretar a actual crise: “O pêndulo foi levado longe de mais na desregulamentação e liberalização. Como antes tinha sido levado longe de mais nas nacionalizações e regulamentação. A tentação é grande, infelizmente, para levar também agora o pêndulo longe de mais na regulamentação e nacionalização - em linha com a lei da física.”

Neste caso, a metáfora é conveniente para os que nunca puseram em causa o neoliberalismo e, agora, pressentem que uma mudança estrutural pode estar a ocorrer no Capitalismo. Permite-lhes encontrar um meio-termo confortável e sem memória. Que limites para a amplitude das oscilações do pêndulo ? Tenderá para o equilíbrio ? Na realidade, o recurso a metáforas provenientes da Física até é consistente com o paradigma dominante na Economia. A lei geral da atracção dos astros de Newton foi a metáfora fundadora do modelo Walrasiano do Equilíbrio Geral, um dos pilares da ortodoxia.

Embora a Economia não possa prescindir do uso de metáforas e analogias inspiradas por outras ciências – em rigor, qualquer ciência necessita da linguagem e esta é por natureza metafórica – o certo é que esses recursos têm armadilhas que os economistas não devem subestimar.

No texto de Helena Garrido, a metáfora do pêndulo está associada à ideia de que no Ladrões de Bicicletas já se antevê o fim do Capitalismo. Sendo assim, o Socialismo seria construído (ex-novo) sobre os escombros de um Capitalismo em crise terminal. E recuperávamos o Gosplan? Voltávamos ao que se chamou em dada altura “capitalismo de Estado”? Não tenho a certeza de que seja isso que pensa a respeito dos Ladrões, mas alguma coisa me diz que Helena Garrido não entende os nossos textos. Vou tentar ser claro.

Quando falamos de regulamentar e (em alguns casos) de nacionalizar, trata-se de recorrer aos instrumentos que melhor submetem os mercados ao interesse público. Esta crise tornou bem evidente a urgência de uma re-institucionalização da economia, começando desde já pelo sistema financeiro, para que funcione ao serviço das sociedades contemporâneas. Stiglitz ilustra bem o que quero dizer com “re-institucionalização”:

“Muitos bancos centrais conduzem-se de acordo com a ideia de uma inflação-alvo – a de que devem ter por alvo apenas a inflação, aumentando as taxas de juro sempre que a inflação aumenta. Mas eu diria que os bancos centrais têm uma responsabilidade mais ampla; espera-se deles que assegurem a estabilidade da economia do país. Enquanto as autoridades monetárias dos EUA e de outros países [incluindo a Zona Euro] se preocuparam com a estabilidade dos preços, permitiram que o sistema financeiro assumisse riscos que prejudicaram o conjunto da economia.” [o destaque é meu]

É isto. Queremos uma outra regulamentação (incluindo nacionalizações, quando adequado) que reduza drasticamente quer a instabilidade inerente ao sistema Capitalista quer as desigualdades de rendimento, logo na repartição primária. Aos leitores da esquerda que não se satisfazem com este reformismo recordo que neste blogue se discute Ciência Social, e em particular a sub-disciplina Economia Política. A crença numa futura sociedade perfeita, o Comunismo, de que o Socialismo seria uma etapa inicial, instaurado por ruptura absoluta com o Capitalismo, é isso mesmo ... uma crença. Acontece que aqui não discutimos religiões.

Aquilo que eu designo por socialismo ir-se-á construindo num processo democrático que faça prevalecer o interesse público sobre os interesses particulares. Confronto de projectos políticos, participação cívica alargada, debate com os interessados e deliberação transparente são essenciais num processo de socialização dos mercados que, necessariamente, recorre a diferentes tipos de propriedade e diferentes formas de gestão das empresas. Assim como a empresa privada e o mercado não são as únicas formas de organizar a economia, também "socializar" a economia não quer dizer "estatizar" a economia.

Karl Polanyi identificou uma tensão inerente ao Capitalismo a que chamou "duplo movimento": por um lado, os actores dominantes na economia pretendem reduzir o trabalho humano, a moeda e a natureza a mercadorias; por outro lado, o resto da sociedade defende-se tentando conter os efeitos desagregadores decorrentes daquele projecto. As variedades de capitalismo que conhecemos são o resultado do modo como em cada sociedade aquelas tensões foram estabilizadas (institucionalizadas).

Assim, estruturas e dinâmicas sociais são ao mesmo tempo resultado e causa das lutas e pactos entre grupos sociais com interesses, ideias e projectos diferentes. Períodos de turbulência, em que a acumulação de mudanças graduais de diferente natureza faz emergir novas qualidades na economia, e nas suas relações com o resto da sociedade, integram-se neste entendimento do Socialismo como processo. Estaremos num desses períodos de "aceleração" da História? Apenas podemos formular hipóteses.

Uma coisa é certa. O “duplo movimento” teorizado por Karl Polanyi – uma explicação para a dinâmica do Capitalismo que, aplicada aos nossos dias, também tem limitações – escapa à metáfora do pêndulo, ainda que sejamos tentados a usá-la. É que o tempo das sociedades é histórico, produz ao mesmo tempo continuidade e novidade, não é repetitivo como o da mecânica!

Obamanomics?

Lawrence Summers. Professor na Universidade de Harvard, último Secretário do Tesouro da administração Clinton e ex-economista-chefe do Banco Mundial. Perante o colapso socioeconómico do neoliberalismo no seu país, vem agora reconhecer todos os efeitos perversos da financeirização que lhe está associada: desigualdades colossais, instabilidade financeira e «uma combinação tóxica de ganhos privados e de perdas socializadas». Os remédios prescritos passam por um aumento do investimento público nas áreas das energias renováveis e das novas tecnologias, pela redistribuição do rendimento, pelo incremento da protecção social e por uma maior regulação financeira.

Eric Schmidt. CEO da empresa Google. Denúncia, também em artigo no FT, a quebra do investimento público em I&D: «o facto da Internet, um grande motor da prosperidade e criação de postos de trabalho, ter começado como um projecto de investigação financiado pelo governo parece ter sido esquecido». Os neoliberais de blogosfera acham que o «empreendedorismo» floresce espontaneamente. Claro que sim. E que os EUA são o país da mobilidade social. Romances de mercado. Schmidt defende um plano de investimentos no sector ambiental para criar milhões de «postos de trabalho verdes». Muito próximo do «New Deal verde».

Jared Bernstein. Economista no Economic Policy Institute. Um dos poucos «think-tanks» dedicados à defesa de uma política económica progressista nos EUA. Um trabalho heróico em condições intelectuais e políticas muito desfavoráveis. O abaixo-assinado de centenas de economistas académicos, alguns deles Prémios Nobel da Economia, a favor do aumento do salário mínimo foi dinamizado pelo EPI. Tal como é reconhecido pelo Financial Times, Bernstein foi um dos pioneiros na exposição do fenómeno da «estagnação do salário mediano» nos EUA. O anuário Working State of America é uma referência. O movimento sindical português, que parece subestimar a luta das ideias, pode inspirar-se aqui.

O que têm em comum? Apoiam Barack Obama. O primeiro é falado para Secretário do Tesouro. O último é conselheiro económico de Obama e, como seria de esperar, defende um programa de relançamento keynesiano numa entrevista recente a Luís Rego do Diário Económico. O New Deal foi assim: uma ampla e contraditória coligação. A história repete-se? Não, mas às vezes parece. Primeiro Obama tem de ganhar as eleições. Uma maioria democrata de sessenta lugares no Senado ajudaria muito. Enfim, talvez o pêndulo oscile nos EUA. Optimismo da vontade.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

O Estado não pode parar à porta dos bancos

A nacionalização do BPN é a melhor forma de garantir a estabilidade do sistema financeiro que é um bem público permanentemente ameaçado pelo aventureirismo cíclico dos operadores financeiros com pouca trela e com poucos escrúpulos. Hoje é claro que as crenças liberais apenas serviram para atrasar a confrontação com a realidade. Os que a elas resistiram estiveram sempre mais atentos.

No sistema financeiro, os problemas numa instituição não são apenas uma questão microeconómica. Os seus efeitos nunca ficam confinados à instituição que os gerou. Por isso, é que sempre aqui dizemos que o Estado não pode parar à porta dos bancos. Muito menos em épocas de crise. O agora reconhecido perigo de «contágio sistémico» exprime a ideia de que os problemas num banco são também uma questão macroeconómica. O sistema de crédito e de pagamentos é demasiado importante para ser deixado unicamente à ganância e à miopia de accionistas e de gestores privados. A ética e os códigos de conduta só podem ser nutridos por um espaço exterior à esfera da concorrência, ou seja, por regulações fortes.

Antes de criticarmos o Banco de Portugal pela sua complacência liberal, devemos apontar baterias à irresponsável e danosa gestão privada que durante demasiado tempo foi deixada à solta no BPN. Felizmente, ainda existe um pólo público dotado de instrumentos e de recursos. Entre o Ministério das Finanças, o Banco de Portugal e a Caixa Geral de Depósitos, temos de ter condições para assegurar a estabilidade do sistema financeiro e para impor os custos do apoio público sobre os accionistas e sobre os gestores dos bancos privados.

O facto dos bancos serem essencialmente nacionais também ajuda. Os países mais vulneráveis são aqueles em que o sistema financeiro é controlado por bancos estrangeiros. Haja então vontade política, debate e monitorização. A intervenção tem pelo menos o mérito de tornar as escolhas políticas muito mais claras e de mostrar aos cidadãos como funciona um sistema até há pouco incensado por tantos.

Nota: Este cartaz, da autoria de João Abel Manta, foi roubado ao Spectrum.

sábado, 1 de novembro de 2008

Crise de um modelo de capitalismo

A quebra acentuada no consumo das famílias dos EUA e da Europa está a provocar uma forte quebra nas exportações da China. Os despedimentos já começaram, num país que combina o pior do comunismo com o pior do capitalismo. Com uma crise global a que nem a China escapa, para onde vamos todos exportar?

Ao longo de muitos anos andaram a dizer-nos que só um crescimento puxado pelas exportações era sustentável. Aumentos de salários ? O menos possível ! Não se podia prejudicar a competitividade-preço. Assim, a pretexto desta competitividade, e da globalização que a impunha, a desigualdade na distribuição do rendimento foi aumentando escandalosamente e, como o consumo das famílias ricas tem pouco impacto no crescimento do PIB, a Europa foi mantendo um crescimento globalmente medíocre. Hoje, discutem-se as previsões do crescimento da economia à décima de ponto percentual. Não tarda muito, discutiremos o de-crescimento.

Nos EUA, a estagnação do poder de compra produzida por este modelo teve solução rápida. Os bancos foram eficazes no assédio à classe média e aos quase-pobres (os "subprime") para que consumissem e investissem a crédito. Alguns países da Europa, deslumbrados com o sucesso americano, já estavam bem lançados nesse caminho. A Islândia é apenas o caso-limite de um modelo também seguido por Britânicos, Irlandeses, Espanhóis, Polacos, e ... (com as nossas limitações) Portugueses.

É bom lembrar que ao longo de muitos anos fomos massacrados com campanhas publicitárias, na comunicação social e por telefone, propondo crédito à habitação e ao consumo. Os bancos assediaram-nos com os cartões de crédito. Em quase todos os bancos, até há pouco, impunha-se a compra do cartão de crédito para aceder ao crédito à habitação. E assim a oferta gerou a própria procura. Como era de esperar, o endividamento das famílias portuguesas rapidamente disparou.

Não era preciso ser génio para perceber que o modelo era insustentável. Além de Thomas Palley que em 2002 discutiu o modelo e defendeu uma alternativa centrada no mercado interno, outros economistas foram capazes de olhar para a realidade com distanciamento crítico. Esses não ficaram calados, assumiram as suas responsabilidades e alertaram para o que aí vinha. Ultimamente a imprensa tem falado muito de Nouriel Roubini como se fosse um sobredotado porque em 2006 "previu" esta crise. Recordo que Patrick Artus, professor em Paris I - Sorbonne e director de gabinetes de estudos em bancos franceses, já em 2005 tinha publicado (em co-autoria com Marie-Paule Virard, jornalista) um pequeno livro intitulado "O capitalismo está a caminho da auto-destruição" .

Pelo meu lado, digo que estamos a viver a crise de um certo modelo de capitalismo. Quanto ao socialismo ... ir-se-á contruindo por evolução do capitalismo; a partir de uma luta continuada pela reinstitucionalização da economia em benefício do interesse público.

Já agora, sem querer ser alarmista, aqueles dois autores publicaram este ano um novo livro: "Globalização, o pior está para vir". Já li o suficiente para dizer que alguém tem de lançar no mercado a edição portuguesa.

O pêndulo e a hipótese socialista

É difícil encontrar um economista mais convencional do que Lawrence Summers. Professor na Universidade de Harvard, último Secretário do Tesouro da administração Clinton e ex-economista-chefe do Banco Mundial, Summers permite-nos identificar o que pode bem vir a ser o novo centro no debate político: "Na esfera económica, tal como na esfera da segurança nacional, acontecimentos dramáticos podem fazer com que o inconcebível se torne inevitável (...) o pêndulo irá oscilar - deverá oscilar - em direcção a um papel acrescido do Estado para salvar o sistema de mercado dos seus excessos e das suas falhas" (Financial Times, 27/10/2008). O resto do artigo pode ser lido no esquerda.

Ainda a propósitos de pêndulos: não me parece que este blogue seja marcado por uma «ante-visão» do fim do capitalismo. Não estamos no ramo das profecias. O futuro está sempre em aberto. Como pode ser de outra forma, se ele é o produto da acção humana orientada por valores? E já aqui várias vezes defendemos que esta crise está longe de representar o fim do capitalismo. Uma hipótese sensata à luz da actual correlação de forças. Rupturas desejáveis serão sempre o resultado de um longo processo de acumulação de forças democráticas e de vitórias socialistas no campo das ideias e das políticas públicas. Como afirmou Vincenç Navarro, um dos meus economistas políticos preferidos, «o socialismo não é uma etapa final, mas sim um processo que se constrói e destrói quotidianamente no desenvolvimento das políticas públicas». Em Portugal, ainda se destrói muito mais do que constrói.