terça-feira, 3 de maio de 2022

O liberalismo "funciona".. e dá dinheiro às gasolineiras

Site Correio da Manhã, 2/5/2022

Até parece o lado negro das ideias da Iniciativa Liberal. 

Para fazer baixar os preços dos combustíveis, parecia suficiente baixar a "carga fiscal" que incidisse sobre esses produtos que, imediatamente, por artes fluidas da economia de mercado, os preços se ajustariam, o consumo aumentaria e todos lucraríamos, felizes. Só que alguém se apropriou da felicidade colectiva. 

Afinal, há interesses que conflituam entre si e o mercado, afinal, não é uma entidade etérea, onde os agentes económicos competem entre si através da baixa de preços, mas sim uma organização dominada por um número muito limitado de grandes operadores, sob suspeita permanente - às vezes provada - de cartelização de preços.  E - como era de esperar - a baixa dos impostos foi apropriada por quem reina no mercado e por quem determina o preço e a quantidade a vender. 

A receita fiscal - que poderia ser usada pelo Estado em proveito dos cidadãos, na educação, saúde, etc. - passou a ser um "subsídio" aos donos das empresas gasolineiras, pago directamente pelos consumidores.  

Mas por que razão não era isto evidente para o Governo? Lembram-se da criação do "IVA da restauração" (criação da taxa intermédia de IVA em 1996, em vez da taxa normal) que, como foi alegado, era suposto baixar os preços praticados e que apenas fez aumentar a margem dos restaurantes? 

Há coisa de um ano, em meados de Julho de 2021, o Governo deu sinais de querer intervir no mercado.

 

Foi logo após a divulgação do relatório da própria Entidade Nacional para o Setor Energético (ENSE) em que se concluía que a subida dos preços dos combustíveis se devia ao aumento das margens das petrolíferas e que as margens brutas em 2020 e 2021, em tempo de pandemia, tinha sido superiores às de 2019:

"Durante os meses críticos da pandemia foi evidente que os PMVP [preços médios de venda ao público ] desceram a um ritmo claramente inferior à descida dos preços de referência, com as margens a atingirem máximos no período em análise (na gasolina com 36,8 cts/l a 23 de março de 2020 e no gasóleo com 29,3 cts/l a 16 de março de 2020), que pode ser em parte explicado pela necessidade das empresas tentarem acomodar no aumento destas mais valias as perdas resultantes nos volumes globais de vendas devido aos confinamentos decretados (em Abril de 2020 o volume total de vendas no retalho de combustíveis rodoviários registou uma descida de 49,82% face ao mês homólogo de 2019 depois de em Março essa redução ter sido de 21,74%), sabendo-se que foi uma área de atividade que manteve globalmente as operações (mesmo com restrições no comércio extra-combustíveis) e as suas estruturas de custos de operação."

A ideia do Governo era a de que, sempre que se verificasse uma descida dos preços da matéria-prima, a mesma fosse "sentida e apropriada pelos consumidores ao invés de apropriada pelas margens de comercialização, evitando, ainda, subidas bruscas e, potencialmente, injustificadas”. 

Mas as empresas do sector reagiram mal. O secretário-geral da Associação Portuguesa de Empresas Petrolíferas (Apetro), António Comprido, protestou e reiterou que 

“não há razão fundamentada que justifique uma intervenção administrativa do Governo” nos preços dos combustíveis em Portugal, nomeadamente nas margens. “Este é um mercado que funciona, que é concorrencial, livre, e não nos parece que uma intervenção administrativa traga qualquer benefício para o funcionamento desse mercado, seja para os consumidores ou para os operadores, e para a sua capacidade em continuarem a manter o eu negócio ao nível que está”, disse o responsável. “Nunca nos tinha sido feito qualquer reparo nesse sentido, de nos dizerem: vejam lá o que é que se passa, ou expliquem-nos o que se está a passar. Nunca houve qualquer tentativa de entender o porquê destes ‘duvidosos’ aumentos das margens, como disse o senhor ministro”, afirmou o responsável da Apetro. “É um pouco injusta esta referência às margens”. “O setor não reduziu em nada a sua oferta no período da pandemia, apesar de uma queda brutal na procura e de o consumo ter caído, o que faz com que os custos fixos que não desapareceram fossem refletidos nos preços e daí a explicação simples para um eventual, pontual, aumento das margens brutas mas não dos lucros. Era inevitável”, disse ainda António Comprido. E atestou: “O principal responsável pelos preços altos que estamos a viver hoje são as cotações dos produtos petrolíferos nos mercados internacionais depois de uma quebra muito significativa no ano passado. Ao contrário do que diz o senhor ministro, que a carga fiscal se manteve estável, não é verdade, porque houve um aumento da taxa de carbono em janeiro de 2020 e de 2021 e isso não pode ser ignorado”.

A 21 de Outubro de 2021 foi publicada a lei nº69-A/2021 que criou "a possibilidade de fixação de margens máximas de comercialização para os combustíveis simples, alterando o Decreto-Lei n.º 31/2006, de 15 de fevereiro". A lei permitia limitar as margens praticadas pelas empresas petrolíferas do armazanamento à distribuição. Mas, depois das críticas de Marcelo Rebelo de Sousa no dia da sua promulgação, e das críticas dos donos das petrolíferas - por ser "cheque em branco" à intervenção num mercado liberalizado - e de terem agitado pareceres jurídicos atestando a sua inconstitucionalidade, o seu regulamento nunca foi criado.

Talvez faltem mais elementos na história. Mas em meados de Março, o então ministro do Ambiente e da Acção Climática João Matos Fernandes declarava no Parlamento, numa sessão Comissão Permanente da Assembleia da República, a pedido do PCP sobre o preço dos combustíveis, voltou à versão não intervencionista: 

"O Estado não fixa o preço do litro do gasóleo ou da gasolina". "Nem fixa nem quer fixar porque poderia com isso arrastar os gasolineiros e com isso aumentar preços"

E os lucros das petrolíferas subiram. Veja-se o caso da Galp

Há cinco dias, o  primeiro-ministro António Costa estava confiante na estratégia seguida, ao anunciar a descida do ISP:

"Perante um cenário de inflação - ainda que temporário -, o Governo agiu de forma rápida e identificou respostas para fazer face a esta crise, com medidas económicas robustas e eficazes". Essas medidas vão "ajudar a conter os preços da energia e a mitigar o choque inflacionista, apoiar as famílias e as empresas e acelerar a transição energética, protegendo a coesão social e o crescimento económico"."Posso por isso anunciar que, já na próxima segunda-feira, a nova descida do ISP, permitirá baixar a carga fiscal em 20 cêntimos por litro, o que permitirá reduzir 62% do aumento do preço da gasolina e 42% do aumento do preço do gasóleo sofrido pelos consumidores desde outubro", declarou. "É, portanto, um orçamento concreto, virado para o país real; um orçamento que nos permite prosseguir o rumo que traçámos, ajustando-se à nova conjuntura, sem nos desviar dos grandes desígnios nacionais".

Era isto: ..."permitirá baixar a carga fiscal"... se alguém deixar. Mas o problema é que a realidade não se compadece com a (des)ilusão liberal a que, muitas vezes, os socialistas cedem. E o resultado é sempre o mesmo. 

7 comentários:

Anónimo disse...

A mim que não sou economista explicaram-me que o preço de um produto é determinado pelo valor que o comprador está disposto a pagar por ele, não pelo seu custo. Evidentemente que se o custo de produção for superior ao preço que o consumidor quer pagar não há produção, mas isso é outra história.
O consumidor pagava a gasolina ao preço pedido, logo o preço era justo. Se a parte do custo respeitante aos impostos desce então a margem de lucro sobe.
Ou se controlam os preços finais, ou se assume que o Estado precisa do imposto e este é o mais alto possível, qualquer outra alteração nos impostos é só uma transferência de custos entre margens e impostos.

Anónimo disse...

Permitir que a descida de imposto sobre um produto se traduza num aumento do lucro da empresa que o comercializa quando o objetivo é baixar o preço do mesmo não é uma falha é uma fraude, este governo tem de ser responsabilizado pela indiferença que demonstra ter por quem vive do salário, este é o mesmo governo que diz que subir salários é mau porque prova aumento da inflação.

Anónimo disse...

Permitir que a descida de imposto sobre um produto se traduza num aumento do lucro da empresa que o comercializa quando o objetivo é baixar o preço do mesmo não é uma falha é uma fraude, este governo tem de ser responsabilizado pela indiferença que demonstra ter por quem vive do salário, este é o mesmo governo que diz que subir salários é mau porque prova aumento da inflação.

Anónimo disse...

Quem sustenta governos que declaradamente enganam e adulteram é obviamente desonesto.

Anónimo disse...

Lucros da Galp disparam 496% no primeiro trimestre, primeiro ministro anuncia baixa do ISP da ordem dos 20 cêntimos por litro o preço baixa 10 cêntimos e está tudo bem.

Anónimo disse...

Ao que parece baixar salários também faz bem à competitividade das empresas, tudo a bem da economia e do país.

Anónimo disse...

Não tenho dados para poder afirmar que as empresas de distribuição de produtos petrolíferos em Portugal estejam a lucrar com a subida do preço do petróleo. Sou economista e resido há mais de 40 anos nos subúrbios de New York e há meses atrás decidi fazer uma investigação em torno do relação preço petróleo /preço do produto refinado /impostos/transporte/ custo final no posto de abastecimento, tendo por base preços pre e pós aumento do produto . Suspeitei que estaríamos em presença de “price gauging”… e para meu “espanto” cheguei a conclusão que as gasolineiras estavam/estão a embolsar em média cerca $0.50/galão no país , com valores extremados na Califórnia e na costa Este.
Por certo a “estratégia” não será muito diferente em Portugal.
A. Pais