quinta-feira, 22 de junho de 2017

"Isso é muito abstracto para as pessoas..."

Jornal da noite da TVI, 20/6/2017. Entrevista ao primeiro-ministro sobre os incêndios. Mas sobretudo sobre um tipo de questões.

(...) Judite de Sousa (JS): É isso que lhe pergunto: se vai retirar esse tipo de ilações agora?

António Costa (AC): No final do ano passado, de 2016, tivemos uma época de incêndios também muito grave. E em 2016, eu disse: "É altura, agora, de fazer a reforma na floresta ao nível do que fizemos há dez anos na protecção civil". E ao longo deste ano, trabalhou-se. Eu sei que é muito pouco mediático. Mas o que é verdade é que, no dia 27/10/2016, reunimos um conselho de ministros especial sobre o tema da floresta, colocámos um conjunto de diplomas em discussão pública; no dia 21/3/2017, foram aprovados doze diplomas, sete deles já estão publicados em forma de decreto-lei, há cinco propostas de lei que estão pendentes na Assembleia da República...

JS: Isso é muito abstracto para as pessoas, senhor primeiro-ministro.

AC: Eu sei que é abstracto, mas se me der o bocadinho mais de tempo...

JS: Claro que sim!

AC: ...para poder explicar o que é que isto significa. Nós temos um problema estrutural nas nossas florestas e que se expressa em várias medidas. Primeiro, temos uma floresta muito fragmentada em pequenas propriedades, que não têm rentabilidade...

Pedro Pinto (PP): Mas vai finalmente reordenar, ao fim de tantas décadas e de tantos anos de incêndios?

AC: É o que os diplomas aprovados, uns já publicados e outros pendentes na AR, prevêem: a realização do cadastro, a criação de entidades de gestão florestal, a posse administrativa dos terrenos abandonados...

PP: Mas já passou um ano e efectivou-se uma tragédia!

AC: Mas eu não posso pedir à AR que faça uma reforma desta dimensão em cima do joelho. Isto significa afectar direitos de propriedade. Por alguma razão, durante muitos anos não se fez isto. E também lhe digo mais: também seria demagógico dizer que, se a AR já tivesse aprovado alguma coisa, alguma coisa seria diferente. Porque as pessoas têm que tem noção: comprar um avião para comprar o incêndio, eu compro hoje e amanhã ele está a combater esse incêndio. A reforma estrutural da floresta é um trabalho para a próxima década seguramente. (...) Com o tipo de plantação que nós temos, com a densidade e o desordenamento florestal que nós temos, com a estrutura de propriedade que nós temos, não resolveremos o problema estrutural da floresta em pouco tempo.

(...)

JS: Senhor primeiro-ministro, temos 3 minutos...

AC: Esse trabalho de fundo, da reforma estrutural da floresta, esse tem de ser feito...

JS: Senhor primeiro-ministro, temos 3 minutos para fechar esta entrevista.

AC: Isso exige um consenso político alargado, um debate muito sério - porque significa que vamos ter de identificar proprietários ou, não identificando, tomar posse administrativa das terras, criar entidades que giram aquelas terras, devolver-lhes valor económico, que assegurem a rentabilidade...

JS: Senh...

AC: ... que permita a limpeza e a diminuição do risco de incêndio.

JS: Senhor primeiro-ministro, recentremos estes 3 minutos finais na situação actual. Muito concretamente pergunto-lhe se mantém a confiança política na ministra da administração interna.

Imagem congelada na cara de Judite de Sousa.

Ora aí está, o tema essencial.

Claro que é mais fácil falar de diplomas aprovados. Claro que o tempo passa. Mas isso acontece também porque - a par da reforma estrutural da floresta - faz falta uma alteração estrutural na comunicação social. Os assuntos estruturais são esquecidos e, quando os epifenómenos acontecem, discute-se o mais fácil. A falta de tempo, imposta comercialmente, afunila os temas importantes para outros circunstanciais, que podem ser respondidos por "sim" ou "não". Tudo o resto "é muito abstracto para as pessoas", que são cidadãos sem formação ou capacidade de concentração. Ainda hoje, no 360 da RTP3, o jornalista João Garcia, ex-director da revista Visão, pediu desculpa à Ana Lourenço por ter de ser chato a explicar como se faz actualmente o cadastro das terras...

O que vai acontecer é que o assunto importante vai ser discutido algures, fora dos holofotes, sem que a comunicação social alguma vez se preocupe com isso. No fundo, actualmente, é para isso que serve. Não é, mas é assim que a querem e há quem aceita isso.

5 comentários:

Jaime Santos disse...

Falar em 'muito abstrato' significa afirmar que o povo é estúpido sem remissão. O contrário é que é verdade, até porque ignorância e estupidez são coisas distintas e se se explicar às pessoas que num Estado de Direito onde se respeitam entre outros direitos de propriedade, não se pode governar por decreto, elas compreendem (até porque nem querem tal coisa). O que esta postura dos media potencia é a ideia que este País não tem emenda e que só se lá vai se se dotar o Governo de poderes especiais. Ora, nós vimos pela amostra de 2011-2015 o que isso é e vimos que não funciona...

Anónimo disse...

Se o Senhor Primeiro Ministro se emocionasse, se lhe caísse uma furtiva lágrima pelo canto do olho, se ele cinicamente, à la Marcelo, se lembrasse agora dos esquecidinhos da nossa portentosa marcha civilizacional, isso sim seria um grande momento de "informação". Pensar e pensar os problemas em concreto? Isso de pensar incomoda mais que andar ao sol em pleno Agosto... O que a malta precisa é da instantânea emoção, o que a malta anseia é a adesão tão epidérmica quanto fugaz ao drama pessoalíssimo e intransmissível do singular "caso humano". É sabido - e os nossos jornalistas são autênticos poços de sabedoria - que nesta era internética o comum dos mortais não tem capacidade para descodificar enunciados mais longos do que um "sim" ou um "não". Mais que isso e a malta boceja e abandona-se aos braços de Morfeu.

Filipe Martins disse...

Muito boa crónica. Verdadeiro serviço público mesmo sem o ser.

PS: É pena o AC não perguntar à JS se tem caçado muitos cadáveres ultimamente...

MR disse...

É sempre bom lembrar aos josés e porque não a tantos outros deste país...
"A ministra da Agricultura, Assunção Cristas, admite a possibilidade de autorizar e incentivar a progressão da cultura do eucalipto em zonas de regadio público, que estão agora ao abandono."
https://www.rtp.pt/.../assuncao-cristas-admite-autorizar...

Portuguesinha disse...


Que repúdio!!
Têm aí a AP «forte repúdio» da Rádio Comercial??
Pois ponham em loop...

Nunca gostei das perguntas da Judite de Sousa...
Mas isto...
Falta-lhe tino jornalístico...
O que ela faz é interrogatório. E quando a coisa começa a interessar, ela muda para algo desinteressante!